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Receitas contra o racismo

Rosana Heringer

Socióloga, professora da Ucam e pesquisadora da Cepia

Introdução

Ao longo dos últimos anos, o Brasil passou por um grande processo de mudanças, no que diz respeito às relações raciais. A percepção do País como uma democracia racial é cada vez menos consensual, e, hoje, diferentes setores da sociedade têm sua agenda política marcada pelo debate sobre o racismo como elemento constitutivo de nossa sociedade (veja a referência bibliográfica). Embora ainda exista a autoimagem do Brasil como homogêneo e indiferenciado, encontra-se, progressivamente, maior abertura a experiências que procuram beneficiar grupos específicos, que tenham, historicamente, menor acesso a oportunidades. O debate nacional sobre ação afirmativa é bastante recente, datando dos últimos cinco anos. De maneira geral, o movimento negro brasileiro tem sido o responsável pela introdução do tema no debate público nacional. Frequentemente o assunto é alvo de muitas críticas e existem resistências à sua incorporação. As críticas mais comuns destacam que políticas específicas trariam conflito e divisionismo. As críticas relacionam-se também à inadequação de políticas desse tipo, uma vez que a situação desvantajosa da população negra estaria associada ao seu baixo grau de escolaridade. Portanto, uma melhoria geral das políticas educacionais traria os benefícios esperados à população afro-brasileira.

O atual quadro de enfrentamento das desigualdades raciais no Brasil inclui um espectro de medidas que vão desde a proposta de adoção de cotas para negros em universidades até programas que procuram beneficiar grandes contingentes da população negra por meio de políticas focalizadas em comunidades pobres. O impacto de programas como esses ainda é limitado em termos do número de pessoas beneficiadas, devido ao seu alcance localizado, ao caráter voluntário de algumas iniciativas e à falta de recursos. Entretanto, o fato de que projetos como esses existam, em um país que tem historicamente se negado a reconhecer a situação socioeconômica desigual entre indivíduos segundo sua classificação racial, já é algo que deve ser levado em consideração. Apesar dessas iniciativas, é difícil afirmar que a sociedade brasileira possui um compromisso com a diminuição das desigualdades raciais. O que existe é a percepção de que a maioria dos pretos e pardos é pobre e de que a maioria dos pobres é preta e parda - o que pode ser transformado em ponto de partida para a adoção de medidas específicas.

Número de atividades identificadas em cada capital

Os resultados apresentados a seguir refletem as informações obtidas na pesquisa "Mapeamento de ações e discursos de combate às desigualdades raciais no Brasil" (veja detalhes abaixo) realizada ao longo de dois anos (1999 e 2000), com estudos de caso em dez capitais brasileiras (Tabela 1). Partindo da constatação empírica de que algumas instituições estavam desenvolvendo novas experiências de luta contra as desigualdades raciais, o objetivo do estudo foi levantar, conhecer e analisar experiências que vêm sendo desenvolvidas como estratégias de combate às desigualdades raciais no Brasil.

Tabela 1
  Frequência %
Belo Horizonte 17 13,7
Brasília 3 2,4
Campo Grande 10 8,1
Porto Alegre 3 2,4
Recife 2 1,6
Rio de Janeiro 18 14,5
Salvador 23 18,5
São Luís 11 8,9
São Paulo 16 12,9
Vitória 7 5,6
Brasil (alcance nacional) 14 11,3
Total 124 100,0

Fonte: Pesquisa Ierê/IFCS, 1999.

A pesquisa

A pesquisa foi realizada no âmbito do projeto "Cor e educação: políticas alternativas de combate à exclusão", coordenado pelas professoras Yvonne Maggie e Gláucia Villas Boas (IFCS/UFRJ). O projeto contou com o apoio da Fundação Ford. Além da autora, os sociólogos Andréa Costa Vieira, Eduardo H. P. de Oliveira e José Jairo Vieira fizeram parte da equipe de pesquisa, juntamente com a estagiária Érika Lopes (Belo Horizonte).

Principais atividades pesquisadas

  1. Estímulo e ampliação do acesso de afro-brasileiros ao ensino superior (organização de cursos preparatórios para o exame de admissão às universidades brasileiras).
  2. Atividades comunitárias, geralmente em favelas ou bairros de periferia, destinadas à promoção social de crianças e jovens, por meio de reforço escolar, de atividades profissionalizantes e de educação voltada para o exercício da cidadania.
  3. Atividades de apoio e estímulo a microempresários afro-brasileiros.
  4. Cursos de qualificação patrocinados pelo FAT.
  5. Criação da Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra de Belo Horizonte.
  6. Programa "Oportunidades Iguais para Todos" (Prefeitura de Belo Horizonte).
  7. Programa de combate à anemia falciforme.
  8. Reconhecimento e titulação de terras de comunidades remanescentes de quilombos.
  9. Núcleo de Combate à Discriminação e Promoção da Igualdade de Oportunidades (DRTs/ Ministério do Trabalho e Emprego).
  10. Plano Nacional de Direitos Humanos.
  11. Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra (GTI).
  12. Legislação que prevê a presença obrigatória de negros em campanhas publicitárias veiculadas pela administração pública.
  13. Projeto Geração XXI: Geledés - Instituto da Mulher Negra e Fundação Bank Boston.
  14. Acordo entre a rede de supermercados Zaffari e a prefeitura de Porto Alegre (contratação de no mínimo 5% de empregados negros como condição para uma nova loja na cidade).
  15. Advocacy action, ações voltadas para o recebimento de denúncias e o apoio, até mesmo jurídico, às vítimas de discriminação racial.

Cardápio étnico

Os dados levantados ao longo da pesquisa permitiram conhecer melhor como a sociedade brasileira vem desenhando estratégias destinadas a enfrentar as desigualdades raciais. Trata-se de um retrato parcial, dentro de um quadro mais amplo de iniciativas, que pode, entretanto, indicar alguns caminhos para a discussão. Eis os principais resultados sobre a natureza das ações estudadas:

  1. as iniciativas concentram-se nas áreas de educação (capacitação de professores em pedagogia antirracista e pré-vestibulares alternativos) e trabalho (geração de renda e qualificação profissional);
  2. iniciativas não-governamentais predominam, mas há um número significativo de ações governamentais, nos diversos níveis;
  3. propostas em discussão sobre a adoção de cotas para estudantes negros no ensino superior não são consensuais, nem mesmo dentro do movimento negro;
  4. governos de partidos de esquerda são alvos de críticas no que diz respeito às políticas voltadas para a população negra.

Estes dados são o retrato, dentro de um espaço de tempo determinado, de uma realidade dinâmica, na qual muitos atores estão inventando novos caminhos, cuja natureza ainda estamos por conhecer. É significativo que tenhamos tido condições de realizar esse mapeamento justamente ao longo dos dois anos que precederam a realização da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e formas correlatas de Intolerância, convocada pela ONU e realizada em Durban, África do Sul, em setembro de 2001.

Como pudemos observar durante o processo preparatório da conferência, houve uma intensa mobilização por parte das organizações do movimento negro no sentido de debater o tema do racismo no Brasil e cobrar ações concretas do Estado. Essa mobilização, amplificada pela mídia, permitiu inaugurar no debate público brasileiro, a partir do ano 2001, um novo patamar em termos de propostas, no campo dalegislação, das políticas sociais e das prioridades orçamentárias. Apenas num futuro próximo teremos condições de avaliar o impacto real dos debates hoje em curso.

É muito oportuno, portanto, que tenhamos tido a chance de observar o "estado da arte" no que diz respeito às iniciativas de combate às desigualdades raciais no Brasil tal como se apresentavam às vésperas da Conferência Mundial contra o Racismo.

As cidades de Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo aparecem como as capitais em que foi identificado um maior número de atividades. Em Brasília, foram identificadas 14 atividades, que, no entanto, se relacionam a iniciativas no âmbito do governo federal. Por isso, foram classificadas como de alcance nacional.

Vinculação institucional

As 124 atividades identificadas foram classificadas segundo o vínculo institucional, isto é, a natureza da principal organização responsável pela sua execução. Os casos em que essas atividades são realizadas em parceria entre governo e organizações não-governamentais (ONGs) foram destacados. No caso de outras parcerias, foi identificado o principal executor. Apesar de uma quantidade mais expressiva de iniciativas vinculadas a organizações não-governamentais, ao somarmos o número de atividades promovidas por órgãos do governo nas três esferas (federal, estadual e municipal), observamos que este totaliza 33 casos, aproximando-se do número de atividades desenvolvidas por ONGs (42). Chama a atenção também o número de 17 parcerias entre governo e ONGs identificadas (Tabela 2).

Tabela 2
  Frequência %
Governamental - federal 15 12,1
Governamental - estadual 5 4,0
Governamental - municipal 13 10,5
Não-governamental 42 33,9
Parceria governo/ ONG 17 13,7
Universidade 17 13,7
Igreja 2 1,6
Partido 8 6,5
Setor privado 2 1,6
Outro 2 1,6
Não informado 1 ,8
Total 124 100,0

Fonte: Pesquisa Ierê/IFCS, 1999.

Área de atuação

A pesquisa revelou que atividades ligadas ao campo da educação têm despertado maior interesse entre os agentes que buscam enfrentar as desigualdades raciais no Brasil. Em segundo lugar, estão atividades voltadas para a área de trabalho e geração de renda - programas de qualificação profissional. Na área de educação, destacam-se os pré-vestibulares, em diferentes modalidades, a capacitação de professores, além de atividades recreativas e oficinas culturais com crianças e adolescentes. Algumas atividades educativas e de qualificação profissional confundem-se quanto aos seus objetivos, principalmente quando se destinam a adolescentes e jovens pobres. A classificação foi feita segundo a ênfase maior, muitas vezes de caráter subjetivo, dada à profissionalização ou à escolarização formal (Tabela 3). Uma outra área que concentra grande número de atividades é a de direitos humanos e advocacy, que reúne denúncia e acompanhamento jurídico de casos de discriminação racial, mas também envolve divulgação de legislação antirracista, campanhas e eventos sobre o tema. Trata-se da área que concentra um maior número de atividades tradicionais, que são desenvolvidas principalmente pelas organizações do movimento negro.

Tabela 3
  Frequência %
Educação 38 30,6
Trabalho e geração de renda 25 20,2
Direitos humanos e advocacy 24 19,4
Saúde 3 2,4
Informação 12 9,7
Legislação 8 6,5
Cultura 10 8,1
Outros 2 1,6
Não informado 2 1,6
Total 124 100,0

Fonte: Pesquisa Ierê/ IFCS, 1999.

Tempo de existência e Principal fonte de recursos

A maioria das atividades identificadas teve seu início nos últimos cinco anos, demonstrando que a implantação dos programas é relativamente recente. Na maior parte dos casos, a data registrada diz respeito à atividade em questão e não ao funcionamento ou à existência da organização executora (Tabela 4).

Tabela 4 - Tempo de existência
  Frequência %
Menos de 1 ano 13 10,5
1 a 5 anos 56 45,2
Mais de 5 anos 24 19,4
Não informado 31 25,0
Total 124 100,0

Fonte: Pesquisa Ierê/IFCS, 1999.

Os recursos advêm principalmente de fundos públicos ou de agências de cooperação internacional. O número expressivo de atividades que contam com recursos públicos deve-se principalmente à transferência de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), do Comunidade Solidária e de outros fundos que fomentam programas de qualificação profissional. Muitos deles contam com recursos públicos, porém são executados por ONGs, sindicatos ou outras organizações privadas (Tabela 5).

Tabela 5 - Principal fonte de recursos
  Frequência %
Orçamento público 50 40,4
Setor privado/ fundações 7 5,6
Doações em geral 8 6,5
Cooperação Internacional 19 15,3
Outro 7 5,6
Não se aplica 6 4,8
Mensalidades 2 1,6
Não informado 25 20,2
Total 124 100,0

Fonte: Pesquisa Ierê/ IFCS, 1999.

Pessoas atendidas/beneficiadas

No que diz respeito ao público-alvo de cada atividade, o estudo distinguiu, entre aquelas ações que objetivam ter um impacto sobre uma comunidade específica, as que atuam voltadas para a opinião pública em geral, as que se dedicam ao acompanhamento de casos individuais (principalmente o acompanhamento jurídico) e aquelas que atuam em relação a públicos específicos (estudantes, alunos de cursos oficinas, funcionários de uma empresa, funcionários públicos, professores etc.). Neste sentido, quase metade das atividades investigadas procura atender principalmente aluno e participantes de cursos e oficinas, reforçando a prioridade dada a ações na área de educação e capacitação profissional (Tabela 6).

Tabela 6
  Frequência %
Comunidade 10 8,1
Público em geral/ opinião pública 36 29,0
Acompanhamento de casos individuais 7 5,6
Alunos/ participantes de cursos e oficinas 57 46,0
Funcionários/ empregados 12 9,7
Não informado 2 1,6
Total 124 100,0

Fonte: Pesquisa Ierê/ IFCS, 1999.

Atividade específica para a população negra

Entre as atividades pesquisadas, foi identificado o número de iniciativas voltadas especificamente para a população negra - uma das principais formas de revelar a orientação da atividade: se voltada para as ações mais tradicionais do movimento negro ou se direcionada para atividades inovadoras, que procuram incidir diretamente sobre as condições de vida e o acesso a oportunidades por parte da população negra. A Tabela 7 mostra que cerca de um terço das atividades tem como público-alvo principal (ou, às vezes, exclusivo) a população negra. A categoria "não se aplica" refere-se a atividades que, por sua natureza, não possibilitam a definição de um público-alvo específico (por exemplo, inclusão do quesito "cor" em levantamentos de dados e cadastros).

Tabela 7
  Frequência %
Sim 40 32,3
Não 70 56,5
Não se aplica 14 11,3
Total 124 100,0

Fonte: Pesquisa Ierê/ IFCS, 1999.

Atividade específica para a população negra (por entidade responsável)

Foram identificadas atividades específicas para a população negra em todas as capitais, com exceção de Vitória, no Espírito Santo. As capitais que apresentaram um maior número de iniciativas específicas foram Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, além das atividades de alcance nacional, promovidas pelo governo federal. Nesse último caso, incluem-se principalmente as atividades voltadas para as comunidades remanescentes de quilombos e atividades no âmbito do Ministério do Trabalho, como cursos com apoio do FAT e o programa Brasil, Gênero e Raça, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). As atividades específicas são de responsabilidade tanto de ONGs quanto de órgãos do governo ou de ações de parceria (Tabela 8).

Tabela 8
  Sim Não Não se aplica Total
Governamental - federal 7.. 5.. 3.. 15..
Governamental - estadual 0.. 3.. 1.. 4..
Governamental - municipal 3.. 7.. 4.. 14..
Não-governamental 12.. 27.. 3.. 42..
Parceria governo/ONG 5.. 11.. 1.. 17..
Universidade 6.. 11.. -.. 17..
Igreja 1.. 1.. -.. 2..
Partido 4.. 2.. 2.. 8..
Setor privado 1.. 1.. -.. 2..
Outro   2.. -.. 2..
Não informado 1.. -.. -.. 1..
Total 40.. 70.. 14.. 124..

Fonte: Pesquisa Ierê/IFCS, 1999.

Referência Bibliográfica

SKIDMORE, Thomas. "Taking Stock: Studying Brazilian Race Relations Today". Texto apresentado no Seminário "Que país é este: imaginação social e interpretações do Brasil". Rio de Janeiro, 1999.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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