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Reflexões sobre Arte, Museus de Arte e Aprendizagem de Arte

Maria Tornaghi

Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

Acabei de ler, com entusiasmo, o trabalho da professora Maria de Lourdes Tura: Escola, Homogeneidade e Diversidade Cultural no livro Educação e Cultura: pensando em cidadania, da coleção Educação e Sociedade recém publicado pela editora Quartet. Lourdes tem se dedicado a investigar o campo da cultura escolar e a escola básica. Ela encerra sua argumentação ressaltando que rompendo-se o isolamento da escola com a comunidade que a cerca "O que se estará adquirindo, então, são ferramentas conceituais necessárias para interpretar a realidade e tomar decisões a partir daí. Uma dessas ferramentas será a capacidade de analisar o mundo em que se vive, dialogar com suas diferenças e inserir-se em um processo de emancipação, que possa acolher diferenças percebidas não apenas como organizadas numa justaposição que mantém suas fronteiras intactas, mas em uma interação que contamina as partes e instaura processos de transmissão/assimilação."

Gostaria de usar este último parágrafo da Lourdes como o começo desta nossa conversa, e examinar com vocês a possibilidade de se tomar o museu de arte, como um espaço onde, através de uma interlocução entre educação e cultura, se caminha na direção da aquisição destas capacidades.

Para chegar à argumentação final, Lourdes faz um breve relato da história da escola. Copiando sua tática começo com um breve relato da história da arte.

O brevíssimo relato , conta a versão que o filósofo e artista plástico Marco Veloso gosta de usar e que por sua vez, como ele diz "é de segunda mão" já que é retirado das teses do filósofo e crítico de arte Arthur Danto. Vou repetir aqui, quase textualmente, a descrição do Marco em uma palestra na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Ele diz que a história da arte moderna (e aqui estamos considerando moderna a história que vem do renascimento até quase nossos dias) se deu mais ou menos assim: subtrai-se de um conceito que se concebe como tradicional de arte, aquilo que se acredita que não seja essencial à ideia de arte. A modernidade teria sido um processo de subtrações sucessivas. Essa história estaria calcada em três momentos. O primeiro momento seria o da experiência do que poderia ser chamado de representação. Esta ideia surgiu no século XVI, com Giorgio Vasari, pintor que escreveu a primeira história da arte no Ocidente moderno - para ele a história da arte é a história da conquista das aparências, ou seja, um pintor é tão mais pintor quanto mais ele consiga aproximar a representação que ele está pondo na tela, da experiência que nós temos ao perceber o mundo, a natureza - como se tratava na época. Essa ideia deixa de ser dominante no século passado.

O segundo momento da história da arte seria o da expressão. Nele, a ideia de representar o mundo ainda persiste, mas não mais aquilo do mundo que nos é visível, e sim uma espécie de interioridade sua. O mundo seria uma coisa da ordem do não-visível que a arte representaria. Não se trata mais de conquista das aparências, mas de alguma coisa que está para além das aparências. Não seria mais um momento de representação mas de expressão. O expressionismo representaria estados de alma, ou representaria sentimentos sociais como barbárie, brutalismo, violência.

Vamos chamar o terceiro momento de purista. Os americanos o datam de 1945, mas na Europa já o encontramos desde o começo do século. É a posição que assume nos EUA o teórico Clement Greenberg. Este momento é caracterizado pela ideia de que a arte não visa nem representar o mundo nem expressar nada, mas se autoconhecer. A pintura é tão boa quanto mais pintura ela for. Ou seja, a pintura não se preocupa com aquilo que não seja pintura, não se preocupa com a terceira dimensão porque ilusão não é própria da pintura. Isso é um purismo, porque a pintura se legitimaria historicamente na medida em que ela conseguisse se manter dentro de seus próprios meios. A característica mais particular do modernismo, na visão de Greenberg, é a preocupação com a pureza do meio, a eliminação de todo o elemento que não pertencesse, por essência, ao seu próprio meio.

Quando Andy Warhol, em 1965, expôs as suas Brillo Boxes, aparentemente, estaria eliminando as fronteiras que separariam um objeto de arte de um objeto qualquer. Tudo pode ser arte. Danto foi à exposição e escreveu sobre ela, mas foi muitos anos depois, nos anos 80, que ele levantou a seguinte hipótese: naquela exposição Andy Warhol não acabou com a distinção entre arte e não arte. Ele apenas mostrou que essa distinção não é mais perceptível. Não é que as diferenças não existam, elas simplesmente se tornaram indiscerníveis. Com isso, Andy Warhol estaria dando fim à história moderna da arte. A partir de então, nenhum desses paradigmas de definição da arte poderia mais ser usado. É preciso ressaltar que esses paradigmas anteriores só existiam na medida que eles foram vistos como uma espécie de linha histórica correta. A história da arte teria se retraído, chegado a um fim na medida em que não teríamos mais critérios únicos ou definidos para avaliar a obra de arte. E Danto usa uma frase um tanto teatral, para o meu gosto, mas extremamente pertinente "E artistas, livres do fardo da história, eram livres para fazer arte do jeito que quisessem, com o propósito que quisessem, ou sem nenhum propósito . Esta é a marca da arte contemporânea, e, pequena maravilha, em contraste com o modernismo, não existe isso de estilo contemporâneo."

E aqui me volto para o museu, embora me dê ao comodismo de continuar apoiando minha reflexão no pensamento de Danto. Os que o conhecem devem concordar comigo que sua inteligência e humor o tornam muito agradável de ler. Pois bem, em um texto intitulado "Museus e os Milhões de Sedentos" ele se refere a uma novela de Henry James cujo personagem principal, Adam Ververs, tendo enriquecido com o trabalho de um número incomensurável de trabalhadores, em pagamento de sua dívida ergue um "Museu dos Museus" para os "milhões de sedentos" do conhecimento que os libertaria "da servidão da feiura" a que ele, Ververs, tinha estado preso até o momento em que, visitando uma coleção de azulejos de Damasco, se deparou com a "profunda realidade da beleza artística".

Ververs tinha certamente tido contacto com a arte antes mas não tinha experimentado-a "de uma maneira que lhe proporcionasse uma visão do mundo e do significado de viver no mundo " (...) "Arte como alguma coisa que revela e ao mesmo tempo redime a desolação da vida ordinária"

John Ruskin (o crítico de arte inglês do século XIX) teria tido experiência equivalente diante de um quadro de Veronese cuja autoria, aliás, é, hoje em dia, questionada. Danto acredita que "é a possibilidade de experiências como estas que justificam a produção, manutenção e exibição de arte, mesmo se a possibilidade, pela razão que for, é irrealizável para a maioria das pessoas. Experiências de arte são imprevisíveis. Estão condicionadas a algum estado de espírito antecedente, e o mesmo trabalho não vai afetar pessoas diferentes da mesma maneira ou mesmo a mesma pessoa, da mesma maneira, em diferentes ocasiões."

De todo jeito, os museus se justificariam por viabilizar este tipo de experiência. Mas seria isto o que os "milhões de sedentos" estão procurando?

Examinando a hipótese de que "a experiência estética profunda e indispensável" não responde aos desafios políticos e sociais americanos, Danto se reporta à exposição Cultura em Ação, no Art Institute de Chicago, para pensar a questão. Nesta exposição entres outras obras controvertidas estava Nós conseguimos! uma barra de chocolate produzida pelo o Sindicato Internacional Americano dos Trabalhadores de Padarias, Confeitarias e Tabacarias, Local Nº 552, e descrita num texto "O Doce dos Sonhos deles". O que "milhões de sedentos" estariam procurando, ao menos segundo uma visão corrente hoje em dia nos Estados Unidos, seria "uma arte deles mesmos".

E onde encontrar "a arte deles mesmos"?

Danto examina a Arte Pública. Se o público não vai ao museu, levamos o museu ao público usando espaços públicos para expor obras às quais o público deve responder do mesmo modo - esteticamente - que se elas estivessem no museu. A escolha do que ver, fica a cargo de um curador, um especialista que sabe o que é ou não bom. O trabalho de Richard Serra na Federal Plaza em Nova Iorque é um exemplo de que a comunidade nem sempre está de acordo com esta escolha. A pouco tempo, no Rio, a transferência de uma obra de Ângelo Venosa para a praia do Leme provocou uma grande mobilização da comunidade com manifestantes contra e a favor. A controvérsia que estes trabalhos geram , expõe o componente de poder do museu. Enquanto o museu era o templo da verdade através da beleza, isto não era aparente.

E a Arte do Público? Vamos considerar dois enfoques. No primeiro, o público que vai conviver com a obra em espaços extra museu, participa das decisões que afetam a obra e consequentemente sua vida estética. A Cerca que Corre, obra do Christo que atravessa a Califórnia, teve para alguns dos donos das terras por onde ela passou, impacto semelhante ao provocado por Veronese em Ruskin.

Ao lado da ideia de "estética participatória", está o enfoque que leva em conta um aspecto da arte contemporânea que a distingue de toda a arte produzida desde 1400 - sua primeira ambição não é estética. Ora, se arte não se dirige mais ao que a contempla como contemplador (ao que a vê como vedor), então, um museu constituído para ser ocupado por obras de arte antes de tudo estéticas precisa se transformar para atender à nova característica.

Podemos identificar três momentos nos museus americanos - e aqui digo americanos porque sigo acompanhando Danto, mas encontro correspondência nos museus brasileiros ou de outros países. Num primeiro momento tomou-se como certo que o museu contém tesouros de grande beleza visual - o visitante estaria na presença da verdade, da qual a beleza é uma metáfora. Num segundo momento a arte é definida por seus aspectos formalistas - nada deveria distrair o visitante deste interesse formal visual, nem as molduras. As pinturas não eram mais janelas mas objetos em si. No terceiro momento, para existir arte não é preciso nem mesmo existir um objeto e os que existem podem ter qualquer aparência. Como fica então o museu? "A arte contemporânea é pluralista demais em intenção e realização para ser capturada em uma única dimensão". Para um museu se comprometer com este tipo de arte tem que abrir mão da estrutura e teoria que consideravam o museu como um "tesouro de beleza" ou "um santuário da forma espiritual".

Depois do fim da arte, na idade do pluralismo, como Beuys dizia, qualquer coisa pode ser arte e qualquer um é um artista. "Uma barra de chocolate que é um trabalho de arte não precisa ser especialmente gostosa. Só precisa ser uma barra de chocolate produzida com a intenção de ser arte."

O que está acontecendo então, segundo Danto é "uma tripla transformação - na produção de arte, nas instituições de arte e no público de arte".

Neste ponto, e já preocupada com tantas citações, considero suficiente o contexto que desenhei, abandono Danto e passo a contar como temos, no setor de educação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, lidado com estas questões.

"Temos" porque daqui por diante vou relatar um trabalho de equipe. A equipe que coordeno reúne professores que, com formação diversificada, desenvolvem trabalho pessoal na área de artes plásticas na qual, a maioria, atua profissionalmente.

Esta equipe foi se formando a partir de 1992, quando fui chamada para coordenar o Núcleo de Crianças e Jovens da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. A "formação diversificada" é apenas um aspecto das diferenças entre nós que enriquecem o trabalho da equipe pela "contaminação das partes" como diz a Lourdes em seu texto.

A ênfase nas diferenças é um aspecto importante do trabalho, e não podia ser de outro modo se estamos nos movimentando no contexto que eu desenhei. Esta " interação que contamina as partes" procuramos também provocar entre nossos visitantes, entre as diferenças dos diferentes visitantes, entre suas diferenças culturais, no confronto com o que encontram no Museu. O professor tem claro o objetivo que quer atingir e as informações que julga importantes. Tem a preocupação de encorajar uma atitude questionadora em relação à arte. As visitas visam provocar a curiosidade dos visitantes pelas obras expostas e seu interesse pelos artistas e suas pesquisas. É, entretanto, partindo do cotidiano do participante, tecendo suas observações, dúvidas, reflexões e informações, que se constrói o trabalho com o grupo e que se atinge os objetivos. Para facilitar estes procedimentos as visitas são articuladas com atividades na sala do setor de educação, e enfocam aspectos particulares de cada exposição, de cada artista.

Além da ênfase nas diferenças dois outros aspectos estão implícitos nesta estratégia. No primeiro a crença de que a aprendizagem artística se dá através de um processo no qual o fazer e o refletir estão intimamente ligados. Abrange a habilidade crescente de se envolver com um trabalho, examinando-o e apreciando-o sob os múltiplos pontos de vista de quem faz (encontra problemas, vence dificuldades), de quem percebe (reconhece o que está vendo, relembra outras imagens, provoca memórias) e de quem reflete (escolhe, articula conhecimentos, julga). Embora a visita exija concentração e reflexão, é importante que ela seja lúdica e prazerosa.

O outro aspecto implícito na estratégia e que considero muito importante é a capacidade de ficar numa tarefa o tempo suficiente para encontrar onde estão problemas e para inventar maneiras de perseguí-los. A capacidade de desenvolver trabalhos com continuidade e aprofundamento. Falar de demora quando todo o tempo que temos é o tempo da visita parece loucura, e talvez seja. O que acreditamos estar fazendo é, convidar o visitante - através de encontros com o novo, através da "interação que contamina as partes" e possibilita novos encontros com o que já parecia conhecido - a criar demora, a criar processo. A sua visita tem um antes e depois que "fazem parte", que possibilitam a construção e aquisição de conhecimento, que dão significado à experiência.

Um dos princípios que a Conferência da UNESCO em Estocolmo, no ano passado, reconhece é o acesso à vida cultural, e a participação na mesma, como sendo um direito fundamental de indivíduos em todas as comunidades, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Entendo que esta "via de mão dupla" que engloba o direito de acesso à produção e o direito de produzir, está sendo usada por nós quando procuramos desmitificar o museu e valorizar a experiência cultural dos visitantes, criando laços entre sua cultura e os bens culturais a que eles têm acesso através do museu que - acredito - "é um espaço legítimo e potente para a troca de experiências vitais".

Gostaria de terminar com um texto de Umberto Eco que, no fim dos anos 70, era um dos textos favoritos meu e de um grupo de artistas e professores, que tinham em comum a atitude de indagação sobre arte e sua prática pedagógica, e que ergueram comigo a Armação Oficinas de Arte. Diz o texto: "Perguntamo-nos então se a arte contemporânea, educando para a contínua ruptura dos modelos e dos esquemas -escolhendo para modelo e esquema a efemeridade dos modelos e dos esquemas e a necessidade de seu revezamento, não somente de obra para obra, mas dentro de uma mesma obra - não poderia representar um instrumento pedagógico com funções libertadoras; e nesse caso seu discurso iria além do nível do gôsto e das estruturas estéticas, para inserir-se num contexto mais amplo, e indicar ao homem moderno uma possibilidade de recuperação e autonomia."

Era o que eu tinha a dizer sobre: Pós-Modernidade e a Socialização dos Recursos Tecnológicos e Patrimoniais da Arte.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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