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Reflexões sobre a construção da interdisciplinaridade presente nos PCNs do ensino médio

Íris Rodrigues de Oliveira

Chefe do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da UFRJ e doutoranda em Filosofia

Após oito anos da assinatura da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) 9.394/96, e seis anos depois da publicação dos primeiros Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), professor brasileiro ainda sente insegurança quanto à utilização de contextos interdisciplinares, no ensino médio, e de transversalidades, no ensino fundamental. Como promover a interdisciplinaridade com um currículo escolar dimensionado tão estritamente que não deixa margem para uma atividade interativa ou para uma reflexão mais profunda sobre o conhecimento, sua produção, seu discurso e sua reprodução, entendida como reatualização dos conceitos, métodos e práticas científico-filosóficos e artísticos?

A primeira constatação que fazemos ante essa preocupação diz respeito à formação docente.

As últimas décadas do século XX tornaram possível uma reflexão sobre a formação do professor e sua relação com os componentes de sua prática efetiva. As articulações presentes nos discursos pedagógicos tornam visível que não se trata apenas de questionar o papel do professor, do aluno (centro do processo denominado de ensino-aprendizagem) ou da escola (lócus da socialização do homem/extensão do ambiente familiar/lócus de ação política que está para além da "simples" socialização).

A formação do docente encaminha-se para questionar currículo (oficial, não oficial, "oculto" etc.), metodologias (indutivismos, dedutivismos, dialéticos, psicologismos, sociologismos etc.), técnicas de ensino (presenciais, semipresenciais, a distância etc.), avaliação (de conteúdo, de comportamento, interativa, global, permanente, massiva, institucional etc.), materiais didáticos (livros, mídia, etc.), além de promover um redimensionamento de todos os elementos que compõem as categorias citadas, que não são as únicas em que se apoia a dimensão formadora desse novo profissional de ensino.

Mesmo sendo considerado "produto" dessa nova perspectiva de formação em que se procura superar o "iluminismo racionalista" e a "racionalidade técnica", esse professor, ao assumir suas funções sociais, encontra-se dividido entre o que lhe foi ensinado como "conteúdo" (o que ensinar), os métodos e as técnicas necessárias para fazê-lo (como ensinar) e a avaliação dos resultados (por que ensinar e sua interação com o aluno, a escola, a sociedade etc. e para que ensinar). Velhas questões que são atualizadas tão logo o "novo professor" assume uma turma.

Diante do desafio que põe em xeque não apenas toda a sua formação profissional, como também seu engajamento ao ser lançado em um mundo de saberes e fazeres cujo movimento desconhece e pelo qual será considerado responsável a partir de sua atuação, seu primeiro embate teórico-prático diz respeito a algumas indagações. Como conciliar, reformular, ressignificar, transpor didaticamente os conteúdos, ensinados de maneira científica, filosófica, artística em unidades universitárias que primam pela exclusão dos componentes pedagógicos? Como encarar os determinantes sociopolíticos, econômicos e legais que condicionam sua atuação? Como agir diante de determinismos de natureza burocrática que o impelem a se qualificar seguidamente, tornando infrutífera toda a produção de saberes, que, duramente, formulou e colocou em prática ao longo de sua vida escolar? Como entender o vai-e-vem das exigências metodológicas assumidas acriticamente pelos gestores dos sistemas de ensino?

Essas questões ficam, muitas vezes, sem resposta e entravam o processo de formação real do professor, a formação "instrumental", a formação "cidadã" que lhe propiciará um contato concreto com os alunos, a escola, os sistemas e todas as exigências decorrentes do exercício da docência.

Outra constatação que fazemos diz respeito à relação que o professor estabelece com o conteúdo a ser ensinado.

Ante todos os determinantes/condicionantes acima listados, até o ex-aluno mais brilhante - agora professor -, aquele que lê, escreve e discute as formulações de sua formação específica, pasma ao verificar que a ressignificação dos saberes, na maioria dos casos, apresenta-se como minimização e até adequação ideológica do cabedal de produção científico-filosófica da humanidade em favor de uma parte que, em momentos historicamente situados, está detendo o poder.

Nesse contexto problemático-existencial em que o homem entra em choque com a(s) instituição(ões), nós nos ocuparemos da questão, apresentada formalmente pelos PCNs, no fim do século XX e amplamente discutida pelos profissionais de educação desde a década de 50 daquele século, ou seja, da interdisciplinaridade.

No contexto dos documentos oficiais, a interdisciplinaridade "poderá ser uma prática pedagógica adequada aos objetivos do ensino médio", articulada concretamente ao "relacionar as disciplinas em atividades ou projetos de estudos, pesquisa e ação". Pressupõe um diálogo entre os saberes específicos por meio de suas formulações teóricas e metodologias de estudo. Para que o diálogo seja possível, é necessário um olhar diferenciado do professor - o sujeito da ação - que supere a estigmatização dos saberes em castas: a ciência que tem por objeto a própria ciência, a filosofia que tem por objeto a reflexão em si mesma, e a arte que tem por objeto a competência em transformar em si mesma.

No contexto da atuação do professor, sua formação é dicotomizada em saberes científicos e saberes didático-pedagógicos, e sua atuação profissional condicionada pelos documentos públicos gerais e específicos - LDBEN, Parâmetros e Diretrizes Curriculares, Currículo da Região, Currículo da Escola, Projeto Político Pedagógico da escola etc. - aos quais deve "obediência" e a partir dos quais deve articular seu planejamento pessoal.

Nota-se, com frequência, nos planejamentos docentes, uma adequação à "política educacional" desenvolvida pelas secretarias, escolas e coordenações, que não exigem diluição das disciplinas, e sim a manutenção de sua "individualidade", pressupondo que a comunicação, ou seja, o diálogo, só é possível a partir do conhecimento específico, do "domínio de uma determinada área", colocando-nos diante da formulação subjacente de que o diálogo só se realiza entre iguais.

Efetivamente, pondo-se em prática a articulação entre os contextos, teremos uma nova prática pedagógica que, em seu desenvolvimento, criará novos saberes propiciando novas articulações. As antigas divisões das ciências, por exemplo, serão meros fatos históricos, com os quais o discurso narrativo informará aos futuros cidadãos sobre a produção humana naquela área, e o discurso interpretativo adicionará as concepções presentes no vivido da geração em formação, abrindo espaço, com uma metodologia interativa para que o educando conceba e adicione novas interpretações.

É nosso entendimento que a interdisciplinaridade, em vez de ser tomada como "prática pedagógica", poderia ser assumida como uma nova visão formadora, não apenas do professor em sua dimensão instrumental/cidadã, mas como uma política de transformação dos saberes necessários à formação do homem, que, por exemplo, já não pode conceber tempo e espaço na linearidade e universalidade expressos em uma só linguagem, mas como elementos que se expandem e se retraem condicionados pelos saberes, linguagens e técnicas que os concebem, articulam e põem em prática.

Mas não se conseguirá implementar esses novos saberes responsabilizando apenas o professor em exercício, abrindo espaços na iniciativa pública e privada para a "formação continuada" dos docentes em cursos restritos a fins de semana, ou cópias mal organizadas do ensino presencial feitas a distancia. É preciso muito debate, muita coordenação de esforços que alie a formação do professor e sua atuação. É necessário que os sistemas se preparem para o novo, do mesmo modo que exigem que o professor tenha um novo olhar sobre as tecnologias de informação e comunicação que serão utilizadas como elementos fundamentais na dimensão da interdisciplinaridade. Não há como trabalhar interdisciplinarmente com a mesma prática sistêmica utilizada na formação feita pela racionalidade iluminista ou técnica.

O olhar interdisciplinar não deve ser apenas o do professor. Em primeiro lugar, ele, na verdade, não é o centro do processo de formação educacional, até a Constituição reconhece a responsabilidade múltipla no que concerne à educação e, em segundo lugar, por mais bem formado que seja, por mais que domine conteúdos em sua área de atuação e estabeleça conexões e discursos diferenciados entre as demais áreas, ele nada poderá fazer se prevalecerem no comando legisladores e gestores ultrapassados e malformados.

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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