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Suicidando Kalashinikov

 Pablo Capistrano

 Escritor e professor de filosofia

Já escrevi um artigo sobre a violência. Nele, eu falava sobre o fuzil AK-47. AK vem de avtomatni Kalashnikova (automática de Kalashinikov) e 47 tem a ver com o ano (1947) em que a arma, desenhada por Mikhail Kalashinikov, ganhou uma competição de design de armas para o Exército Vermelho. Até aí tudo bem. O problema é que eu suicidei o Kalashinikov (e, para completar, ainda escrevi o nome dele errado).

Não sei se foi um ato falho, um desejo inconsciente ou um deslize de uma mente que, vez por outra, é tomada por alguns arroubos poéticos, mas eu imaginava um Kalashinikov atormentado. Um homem dividido alternando entre o orgulho e a culpa. Perseguido por fantasmas. Um homem consciente do sentido mortal de seu invento, que, por não suportar a dor de ter causado tanta dor aos outros, acaba por dar cabo da própria vida. Imaginava o Kalashinikov com seu fuzil. Espatifando os próprios miolos com a arma que ele mesmo havia inventado. Mas eis que o mundo destroça os personagens românticos, com o mesmo cinismo que constrói os personagens pós-modernos. O amigo Oswaldo, pela lista de discussão do Beco da Lama, me manda um artigo do The Guardian, datado de 10 de outubro de 2003, no qual o jornalista Nick Paton Walsh conta a verdadeira história de Kalashinikov.

Com 83 anos bem vividos, o velho "kalá" leva uma vida tranquila no campo, à beira de um lago cristalino, na região dos montes Urais. A única sequela de seu invento parece ser uma surdez que se instalou com a velhice e com o uso recorrente de seu fuzil. O velho "kalá" teoriza sobre seu invento e diz que desenhar armas é "como uma mulher que espera um bebê. Por meses, ela carrega seu bebê consigo e pensa nele. Um designer faz a mesma coisa com o seu protótipo. Eu me sinto como uma mãe - sempre orgulhoso. É um sentimento especial. Eu atiro muito com meu fuzil. Eu ainda o faço. Por isso, fiquei surdo".

Apesar do AK-47 ser dez vezes mais usado do que o M-16 (seu rival americano) e ter produzido nada mais nada menos do que 300 mil mortes nos conflitos armados dos anos 90, o velho "kalá" se sente orgulhoso. Diz que a culpa é da política (parece piada essa história). Se a arma que ele fez não está sendo usada para defender a sua pátria em guerras justas, não é culpa dele. O argumento é simples: "As pessoas morrem pelo AK-47 não por causa do designer, mas por causa dos políticos". Para quem não lembra (tem memória fraca), essa afirmação se parece com o argumento de Eichmann, um carrasco nazista do campo de Auschwitz, em seu julgamento em Jerusalém. Estava só cumprindo ordens, fazendo seu trabalho, executando tecnicamente bem a tarefa para a qual foi treinado, nada mais. Se os resultados de seu esforço foram utilizados para produzir mais dor e sofrimento para um maior número de pessoas, não é culpa dele. A culpa é dos políticos que pensam e mandam. Ele só mexe o dedo e executa ordens. Esse é o argumento da banalidade do mal, analisada por Hannah Arendt em seu relato sobre o julgamento de Eichmann.

O esvaziamento moral da razão, a redução do racional ao meramente processual, ao insuportavelmente técnico. O isolamento do sujeito em seu mundo pessoal de justificativas mirabolantes que consolidam a própria alienação. Bem que eu gostaria de viver num mundo no qual não houvesse armas de fogo (perdi dois membros queridos de minha família por causa do uso de armas de fogo; por isso, tenho razões pessoais para não gostar delas). O problema é que as armas de fogo geram capital (o tal do mercado definindo o modo que a gente vive e morre), e, diante do capital, meu amigo, não escapa nada nem ninguém. Mas poderíamos ser menos utópicos e imaginar um mundo onde, ao menos, existisse consciência moral. Bem, a escolha é sua, amigo leitor, o que você acha mais fácil: banir do mundo os fuzis AK-47 ou a cômoda e cínica alienação de seu inventor?

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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