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Um remédio para as cinzas

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Lendo a biografia de Bertrand Russell, um dos filósofos mais populares do século XX e um dos grandes responsáveis pelo impacto do uso da matemática no campo da lógica, nós nos deparamos com a seguinte confissão acerca do período de sua adolescência quando morava no litoral sul da Inglaterra: "Eu costumava a ir lá sozinho para olhar o pôr-do-sol e pensar em suicídio. Mas não me suicidei, porque queria saber mais sobre a matemática".

Todo folião é, em última análise, um suicida em potencial. Sempre que chega perto o carnaval, começo a pensar numa certa má interpretação acerca da natureza da felicidade. No Brasil costuma-se relacionar a felicidade a um certo estado de euforia, típica daqueles que têm o riso fácil e o rosto sempre aberto para um sorriso amigo. O homem feliz é o homem alegre. Aquele que não se entristece, que não conhece o silêncio, que recusa a solidão e está sempre pronto a um gesto de cortesia e uma palavra agradável dita numa hora conveniente. Conviver no Brasil parece fácil à primeira vista, mas as exigências da alegria, de vez em quando, costumam a massacrar seus usuários.

Eu, particularmente, me considero um brasileiro típico. Incapaz mesmo de ser sincero ou autêntico diante dos momentos de tristeza. Sorrir sempre. Dizer sempre a piada certa na hora certa e nunca, nunca mesmo, ser sincero a ponto de desagradar o interlocutor. Essas são instruções básicas para se tornar alguém bem-visto no país do carnaval.

Mas a alegria é um estado de espírito, uma circunstância fisiológica. A felicidade não. Confundir a felicidade com um estado do cérebro pode ser algo extremamente lucrativo para os grandes laboratórios que oferecem seus produtos de euforia nos balcões dos bares, das farmácias ou das lojas de departamento, mas produz uma pressão devastadora no espírito das pessoas. A felicidade é muito mais uma postura, um conjunto de práticas que nem sempre levam ao abestalhado estado eufórico do riso fácil.

A imagem mais forte do carnaval não é a das mulatas rebolando ou dos machos da espécie, vestidos de saias coloridas e perucas violetas. Acho que o que sintetiza a imagem do carnaval é a do pierrô no meio da multidão, chorando o amor de uma colombina inacessível. Todos nós temos as faces marcadas com a máscara do pierrô. Procuramos diariamente nossa colombina. Como a pérola que poderíamos encontrar no meio da estrada. Como o pote que mora no fim do arco-íris. No carnaval, as ruas são invadidas por uma multidão feroz de pierrôs. Eles cantam, dançam, sujam-se de farinha e tinta, travestem-se, bebem litros de cerveja, entram em comunhão com a massa, fazem muito sexo, oferecem seus corpos aos grandes deuses pagãos das festas e são arrebatados para o paraíso fisiológico de um deus que dança.

Mas o pierrô está lá. No meio da multidão. Guardado como uma lembrança inconveniente de que a Quarta-feira de Cinzas que sempre chega e de que, depois da festa, sempre se tem que juntar o lixo e pô-lo fora de casa. Não querer que o carnaval acabe é um sintoma bastante curioso, de um mundo que se recusa a abandonar a alegria e acaba caindo com ela no oposto da tristeza, sem saber que a felicidade é muito mais uma proporção, uma medida justa entre o que está muito acima, na estratosfera do riso, e o que está muito abaixo, na imensidão profunda de nosso próprio sofrimento.

Ars totum requirit hominem (A arte requer o homem por inteiro).

Publicado em 31 de dezembro de 2005

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