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Uma perspectiva da ciência no limiar do século XXI
Luiz Pinguelli Rosa
Vice-diretor da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia da Universidade Federal do Rio e Janeiro (COPPE)
Os conceitos e teorias da ciência não se desenvolvem autonomamente. Eles têm uma profunda relação com o contexto histórico em que se desenvolvem, tanto no aspecto cultural como no econômico, social e político. Esta relação se dá em mão dupla. A ciência é influenciada pelo contexto social em que nasce e se desenvolve, de onde se nutre com os meios materiais e institucionais de que necessita, com a motivação intelectual e ética, bem como com a demanda econômica e política para equacionar e resolver problemas. A ciência, em outro sentido, influi neste contexto social através dos seus resultados apropriados pela sociedade ou pelos setores nela dominantes para aplicações tecnológicas. Influi, também, na visão de mundo, exportando através da filosofia, para outras áreas do saber e da prática, seus paradigmas.
Assim, os paradigmas exportados da ciência são usados para legitimar a ordem social e econômica. Para servirem aos interesses dos setores dominantes, ou para contestá-los, como fez Galileu. Por isso é importante entendê-los. A física tornou-se a matriz dos paradigmas de maior abrangência e permanência da modernidade. E assumiu este papel em nome da ciência como um todo. Atribuímos isso a vários fatores: sua precedência histórica, a posição chave e instrumental para outras ciências e para a tecnologia, o êxito de seu método matemático-experimental, generalizado como o método científico, embora poucas áreas das ciências o usem plenamente fora da física. Por essa razão, nossa abordagem tem por base a física. Destacamos, nela, o determinismo newtoniano; a ele é associada, em geral, a previsibilidade a capacidade de fazer previsões.
Assistimos, hoje, a uma disputa entre a influência da física e a crescente influência da biologia. Este processo decorre da ruptura do paradigma newtoniano, que teve início no âmbito interno da física, em pleno apogeu da mecânica no século XIX, com a Revolução da Termodinâmica e do Eletromagnetismo. Completou-se no século XX, no âmbito da física, com a Revolução da Relatividade e da Mecânica Quântica. Mas o determinismo da mecânica newtoniana sobreviveu até agora como paradigma geral ou um supraparadigma para outras áreas do conhecimento, como a economia neoclássica, e para a sociedade como guia de ação prática. Seu recuo efetivo está ocorrendo contemporaneamente. Contribui para isto a crescente influência da matemática experimental propiciada pela difusão do uso dos computadores, que revelou a imprevisibilidade da evolução de sistemas dinâmicos governados por equações diferenciais não lineares muito sensíveis às condições iniciais. Isso ocorre, portanto, na própria mecânica de Newton, em problemas não lineares, como percebera Poincaré, na virada do século, no problema de três corpos. Chamamos isto de caos determinista.
Um sistema pode transitar do regime bem comportado para o regime do caos. Na fronteira entre a ordem e o caos, surge o que se convencionou chamar de complexidade, caracterizada pela possibilidade de emergência do novo, do inusitado. Esta complexidade é associada ao fenômeno da vida, inspirando um novo paradigma influenciado pela biologia.
O determinismo significa que o futuro está determinado pelo presente. Deve-se distingui-lo modernamente da previsibilidade, admitindo que algo pode estar determinado, mas ser imprevisível. O paradigma da mecânica, passado à sociedade como modelar e seguido por outras áreas do conhecimento, como a economia neoclássica, era determinista e com capacidade de previsibilidade.
A Revolução Industrial foi caracterizada pela aceleração da produção, do uso dos recursos naturais e de energia, com grande crescimento econômico, ampliação de empregos e de consumo, apesar das desigualdades na distribuição. Os impactos no ambiente são crescentes. O capitalismo, alavancado pela Revolução Industrial, é consolidado politicamente com a Revolução Burguesa do século XVIII.
Vivenciamos hoje a Revolução Tecnológica da Informática, com o desenvolvimento exponencial da micro eletrônica, computadores popularizados na sociedade, grande influência da mídia, telecomunicações por satélite e uso da Internet. Há enorme aceleração da produtividade e da globalização de base financeira. Por outro lado, ocorre crescente desemprego por razões estruturais propiciadas pelas mudanças tecnológicas, com crescimento da pobreza e da miséria em contraste com grandes realizações científicas e com o poderio das grandes empresas transnacionais. Ocorre o colapso do socialismo realmente existente. Novas formas de política envolvem a luta de minorias, contra as armas nucleares ou contra a poluição. As organizações não-governamentais proliferam. Surge, no limite na tecnologia, a questão da poluição global da atmosfera: o inverno nuclear, o buraco da camada de ozônio e o efeito estufa. Há quem fale no fim da ciência (Hogan, 1997).
As ciências físicas no século XX mantiveram sua hegemonia e influência com a Revolução da Teoria da Relatividade e da Mecânica Quântica, que põe por terra o domínio do paradigma newtoniano. A última delas confronta-se definitivamente com o determinismo, ao admitir a incerteza no movimento de uma partícula como um elétron no átomo e não apenas, como fazia a mecânica estatística no século XIX, em um conjunto de uma infinidade de moléculas de um gás. Neste fim do século XX, os fenômenos não-lineares do caos determinista e a possibilidade da matemática empírica, aberta pelo uso generalizado dos computadores, terminam por deslocar a física como paradigma do modo de ver o mundo. Ganha espaço hoje a biologia, com a decodificação do genoma/DNA e inspirando modelos computacionais baseados na lógica “fuzzy”, algorítimos genéticos, redes neurais, criticalidade auto-organizada, automata celular e, de forma mais geral, a complexidade.
O nosso objetivo, ao dar um olhar neste panorama do ponto de vista do nosso tempo, vindo do passado ao presente, foi procurar entender melhor como surgiram os paradigmas, o que são as mudanças, e o que poderá resultar no futuro. Além da ruptura do paradigma newtoniano, houve uma revolução da lógica, com as questões colocadas por Frege, Russell e Godel, e na teoria da linguagem, com Wittgenstein e Chomsky. Assim, chegamos aos problemas científicos atuais. Entre eles estão o da mente e o da inteligência artificial. Vamos a eles, pois são muito interessantes.
Para Moravec (1993), um pesquisador que dirigiu o Laboratório de Robótica da Universidade Carnegie Mellon, o gênero humano poderá vir a perder sua posição dominante no planeta, substituído pela vida pós-biológica. A despeito do sabor fantástico desta conjetura, ela se baseia em um cenário tecnológico que extrapola a tendência atual de crescente presença dos computadores na sociedade, desempenhando funções antes restritas aos seres humanos. Os computadores são criações da nossa mente, mas, se pudessem se reproduzir e se desenvolver autonomamente, poderiam ganhar vantagem sobre nós na luta pela sobrevivência, livres dos limites biológicos na seleção natural. Estamos estendendo o conceito de seleção natural para incorporar a vida artificial na competição pela sobrevivência. Seriam então os robôs nossos descendentes!
Embora isto não seja verdade à luz do estado atual da arte, poderá vir a ser uma possibilidade do ponto de vista científico? A verdade muda historicamente no campo técnico. Hoje a capacidade dos computadores está longe de superar a capacidade humana, exceto para tarefas muito específicas, como cálculos e manipulação de dados extenuantes. A mente humana e a inteligência artificial são assuntos novos na ciência e polêmicos. Será possível vir a haver vida não biológica? Cairns-Smith (Moravec, 1993), especulou que a forma de vida atual, baseada em cadeias de átomos de carbono nas moléculas da química orgânica que constituem as células vivas, já seria a segunda forma de vida na Terra. Teria sido antecedida por uma primeira, muito incipiente, pré-biológica, formada por cadeias de cristais de argila. Logo, os computadores poderiam vir a ser a terceira forma de vida na Terra, sucedendo a atual. A primeira forma de vida, nesta concepção, também teria sido baseada em moléculas da química inorgânica, como são na sua essência os computadores, pelo menos os atuais.
Não é claro o que o autor considera ser a vida nesta regressão de conceitos da biologia para o mundo pré-biológico. Como a definição científica de vida é interna à biologia, a extrapolação do conceito torna-se uma questão não científica, mas epistemológica - ou da filosofia da ciência. Nesta linha de pensamento especulativo, ao criarmos os computadores podemos ter decretado a substituição a longo prazo de nossa forma de vida por outra - à base de silício e outros materiais - mais apta a sobreviver. E, acrescentemos, as mudanças do meio-ambiente podem dificultar muito a vida biológica atual e a sobrevivência do homem sobre a terra, pela poluição e pelo esgotamento de recursos naturais ou por uma guerra nuclear, hoje reavivada com a tensão entre a OTAN e a Rússia na Iugoslávia.
O problema da inteligência nos conduz inevitavelmente ao problema da mente humana, que requer uma explicação científica. Longe de ser trivial, esta explicação - ainda não consensual sequer no âmbito da neurociência - envolve aspectos filosóficos polêmicos, como o dualismo cartesiano, que separa a mente do corpo, e o reducionismo. Popper associa a inteligência à linguagem e essa à estrutura do cérebro humano. Assim, "o aparecimento da linguagem humana criou uma pressão seletiva", que alterou a estrutura do córtex cerebral, e daí se originou a consciência humana do "eu" (Popper e Eccles, 1991). Portanto, viu na linguagem uma característica genética humana, embora potencializada pela cultura, como é a posição de Chomsky.
Podemos colocar o problema da inteligência artificial dos computadores versus a inteligência humana. Penrose escreveu dois livros polêmicos, acessíveis a não-especialistas, embora tratando de aspectos difíceis desta questão: The Emperor´s New Mind (1989) e Shadows of the Mind (1994), o primeiro traduzido para o português (Penrose, 1997). Ambos foram muito criticados. No primeiro deles, é colocada a pergunta: pode um computador ter mente? O que significa pensar? O que é a mente? Ela depende de uma estrutura física à qual é associada, tal como o cérebro humano? Ou pode ser reproduzida em um aparato tecnológico como um computador?
Godel mostrou que na matemática há resultados verdadeiros que não podem ser obtidos com base na lógica. Isso coloca a criatividade da inteligência humana acima de regras pré–estabelecidas por algoritmos, e nos leva a crer que a inteligência humana não se reduz a um conjunto de regras computacionais programável. Essa é a posição de Penrose.
Entretanto, a inteligência artificial - ou a imitação da inteligência humana em computadores - se desenvolve em várias direções: na robótica, aplicada principalmente em dispositivos mecânicos na indústria, para tarefas inteligentes que exigem versatilidade e envolvem grande complexidade; nos sistemas especialistas, para abranger os conhecimentos de profissionais, como médicos e advogados, codificados em pacotes computacionais com bancos de dados. Uma fase que já está se iniciando e deverá ocupar as primeiras décadas após 2000 é a dos computadores ubíquos, presentes por toda a parte.
A ubiquidade ocorre há muito tempo com a eletricidade, presente nas fiações em todos os prédios, nas tomadas, nas ruas, na iluminação. No automóvel, há dezenas de dispositivos e motores elétricos, alguns invisíveis ao observador. Agora, há chips dedicados controlando os veículos, os equipamentos domésticos, como aparelhos de som. Mas o limite do crescimento da capacidade dos computadores será dado pelas lâminas de silício cuja espessura, função do diâmetro molecular, não pode reduzir-se abaixo de um certo limite. Procuram–se, então, caminhos tecnológicos alternativos: chips tridimensionais, computadores óticos, computadores de DNA, computadores biônicos e computadores quânticos.
Sistema | Localização | Décadas | Tecnologia | Principais usuários | Computador/usuário |
---|---|---|---|---|---|
Computadores centrais | instituições, empresas | 50 e 60 | IBM, CDC Borroughs | Cientistas, engenheiros | 1/100 |
Computadores pessoais- PC | escritórios, residências | 70 e 80 | Xerox ( Palo Alto) e Apple | técnicos, funcionários | 1/1 |
Redes | computadores interligados | 90 e 2000 | Microsoft (software) | público em geral | 100/1 |
Chips ubíquos | equipamentos utensílios | 2010 2020 | Presumível - já em uso em certos equipamentos pode se generalizar | ||
Inteligência artificial? | computadores e robôs | 2020 2050 | Visão tecnológica especulativa (depende da definição) | ||
Consciência artificial? | computadores e robôs | 2050 2100 | Visão tecnológica puramente especulativa e polêmica |
As perguntas que colocamos em geral recebem uma negativa categórica de intelectuais humanistas e de muitos cientistas céticos, de um lado, e uma eufórica resposta afirmativa de tecnólogos otimistas e confiantes quanto às realizações da tecnologia. Penrose afirma que o escopo da ciência não resolve a questão da mente, pois seu objetivo tem sido a pesquisa do universo material acessível ao método científico. Nossa existência mental fica, assim, fora desse escopo. Indaga, portanto, se poderemos entender cientificamente o mistério da mente, ou se o fenômeno da consciência humana fica fora do alcance da ciência. Para ele, falta um ingrediente na descrição do mundo pela ciência atual, pois não há teoria física nem biológica que explique nossa consciência ou nossa inteligência; o que fazemos com o nosso conhecimento científico hoje é outra coisa.
Referências bibliográficas
MORAVEC, H. Mind Children. The Future of Robot and Human Inteligence. Harvard University Press, 1990 (versão para o espanhol: El Hombre Mecánico. Barcelona: Salvat, 1993).
HORGAN, J. The End of Science. Cidade: Broadway Books, 1997.
PENROSE, Roger. The Emperor´s New Mind. Cidade: editora, 1989.
________. Shadows of the Mind. Cidade: editora, 1994.
POPPER, Karl & ECCLES, John. O Cérebro e o Eu. Cidade: editora, 1991.
Fonte: Democracia Viva, Ibase, nº 6, agosto de 1999.
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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