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Viagem ao apartheid
Maurício Santoro
Jornalista e pesquisador do Ibase
O cartão vem em africâner e inglês, e nele está escrito Nie-Blankes/Non-Whites - não-brancos(as). Visitantes separam-se segundo a cor e vão para uma das duas entradas do museu. Grupos de amigos e amigas, turistas e famílias se afastam com expressões aflitas. A angústia das pessoas ao se despedirem faz pensar nos filmes sobre o Holocausto. Mas essa história tem final feliz: dentro do Museu do Apartheid, os corredores se encontram novamente e todas as tonalidades de pele são vistas lado a lado no passeio pela exposição que narra a ascensão e queda do regime de repressão racial da África do Sul.
Da década de 1940 até a eleição de Nelson Mandela à Presidência da República, em 1994, a África do Sul foi governada por um conjunto de leis racistas conhecidas como apartheid (separação, na língua africâner). Essa legislação estabelecia limites rigorosos à posição de cada pessoa na sociedade, de acordo com sua cor de pele, que regulava todos os aspectos da vida – moradia, escola, trabalho, relações amorosas, direitos políticos etc. O Museu do Apartheid, em Johannesburgo, foi inaugurado após a democratização sul-africana, no esforço de compreensão do passado do país.
A arquitetura do prédio lembra uma prisão, ou mesmo um campo de concentração, com muros altos, arame farpado e um aspecto de desolação e opressão. O objetivo é fazer com que as pessoas que visitam o museu sintam desde o início do passeio uma sensação de desconforto. O impacto de receber o cartão com a classificação pela cor da pele é forte, o sentimento é de diminuição da humanidade, de tratamento como um objeto ou animal.
O acervo é excelente e mostra como a África do Sul formava, no início do século 20, uma sociedade multirracial, constituída a partir da imigração em massa à procura de ouro – o país tem algumas das minas mais ricas do mundo. O medo de perder o controle político para os povos negros fez com que a elite africâner construísse um sistema de controle racial para garantir o domínio da minoria branca. A população negra não tinha direito a voto e, em muitos casos, não podia nem mesmo morar nas cidades brancas, sendo deslocada para as townships, das quais a mais famosa é Soweto, centro da luta contra o apartheid.
Nação arco-íris
A história de resistência contra a injustiça é um dos grandes orgulhos dos povos negros da África do Sul. Ela teve diversas fases: resistência pacífica contra as leis racistas por passeatas e boicotes, enfrentamento armado na forma de sabotagem e guerrilha, mobilização política por meio de partidos (os mais importantes foram o Congresso Nacional Africano e o Partido Comunista) e igrejas – principalmente as de origem anglicana, mas também a Igreja Reformada Holandesa, dos africâneres.
A desigualdade de forças sempre foi grande e foram muitos os massacres perpetrados pelos governos sul-africanos, em especial contra a juventude negra. Os mais conhecidos deles foram os confrontos de Sharpeville (1960) e os combates durante o levante de Soweto (1976). Uma história de lágrimas, torturas e mortes, mas também de esperança e determinação, Amandla! (poder ou garra), como expresso no brado contra o apartheid.
Em meados da década de 1980, a situação na África do Sul se tornou insustentável, com uma mistura de crise econômica, isolamento internacional e resistência negra. O governo iniciou negociações que culminaram num governo de transição encabeçado por Nelson Mandela – célebre líder do Congresso Nacional Africano, que venceu as primeiras eleições livres do país em 1994, sendo sucedido por seu colega de partido, Thabo Mbeki, em 1999. A África do Sul se tornou uma democracia que gosta de se definir como "a nação arco-íris", em virtude de suas 11 etnias.
O panfleto turístico do Museu do Apartheid afirma que lá é o único lugar no qual a segregação deve ficar. Infelizmente, não se mudam décadas de leis racistas da noite para o dia. As tensões permanecem e a população negra é a principal vítima da exclusão econômica (o desemprego é de 40%), da violência e da Aids (25% do país está contaminado pelo HIV).
Apesar de 14 mil mortes em conflitos políticos entre 1990 e 1994, a África do Sul venceu as previsões pessimistas que afirmavam que o país iria se fragmentar em tribos rivais, entrando em colapso como Somália, Ruanda ou Iugoslávia; ou então que sua minoria branca seria alvo de vinganças e perseguições, como no Zimbábue.
O pior foi evitado. A transição do apartheid para a democracia, por mais difícil que tenha sido, é também um exemplo de negociação. O país promulgou uma nova Constituição e iniciou uma longa jornada para entender seu passado, em particular por meio de debates na Comissão de Verdade e Reconciliação, presidida pelo arcebispo e Prêmio Nobel da Paz Desmond Tutu – que revelou muitos dos crimes contra os direitos humanos cometidos durante o apartheid, ao mesmo tempo em que defendeu o entendimento rumo a uma nova sociedade. O desafio para a África do Sul é encontrar um caminho democrático que ofereça soluções para a pobreza, as desigualdades e a injustiça a qual sua população está submetida.
Para saber mais, visite o site www.apartheidmuseum.org
O povo africâner
O apartheid foi obra do povo africâner, que partiu da Holanda no século 17 e ocupou a região que hoje forma a África do Sul. Foi expulso das terras no litoral pelos britânicos, perseguido até o interior na sangrenta Guerra dos Bôeres (1899-1902). Às vezes, chamado de "a única tribo branca da África", o povo africâner desenvolveu um nacionalismo agressivo, baseado na percepção de que estava rodeado por inimigos e só sobreviveria se mantivesse seu domínio sobre as dez etnias negras que formam a África do Sul. Além do nacionalismo e do racismo, a economia também pesou: o apartheid garantia mão-de-obra negra farta e barata, à disposição das indústrias, lojas e casas da minoria branca. Com a democratização do país, a população africâner perdeu grande parte do poder político, mas continua a formar a elite econômica.
Fonte: Jornal da Cidadania, Rio de Janeiro, ano 10, n. 126, jan. 2005, p. 15.
Publicado em 31 de dezembro de 2005
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