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Violência e direitos humanos
In: "Políticas Públicas para as Mulheres no Brasil - 5 anos após Beijing" Articulação de Mulheres Brasileiras, Brasília, 2000
Panorama
O Brasil carece de dados globais sobre a incidência da violência contra mulheres e meninas. lsto não significa que o fenômeno não esteja visível, e que não se disponha de elementos para traçar políticas públicas efetivas no combate às diferentes formas que este tipo de violência assume em nossa sociedade. O principal entrave nesta questão tem sido a falta de vontade política e a banalização do problema, característica da cultura da subalternidade feminina construída ao longo da história do país, a qual ganha contornos mais acentuados quando se trata das mulheres negras, descritas pelos indicadores sociais oficiais como um dos grupos mais discriminados e vulneráveis da sociedade.
Em 1999, a Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos (Rede Saúde) lançou o Dossiê Violência contra a Mulher, apresentando um panorama geral sobre a violência intrafamiliar, a violência sexual, a exploração sexual de crianças e adolescentes e a violência institucional contra as mulheres, reunindo dados extraídos de estudos e levantamentos recentes feitos por organismos estaduais, organizações não governamentais ou pelo sistema das Nações Unidas:
- Registra o Dossiê que, no final da década de 80, "o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatou que 63% das vítimas de agressões físicas ocorridas no espaço doméstico eram mulheres. Pela primeira vez, reconhecia-se oficialmente este tipo especifico de criminalidade".
- De acordo com dado divulgado pela ONU/Ministério da Justiça em 1998, as delegacias de defesa da mulher de todo o país registraram, no ano de 1992, mais de 205 mil casos de agressões contra mulheres.
- Sobre a violência doméstica, o dossiê traz resultados parciais do estudo das professoras Heleieth Saffiotti e Suely Souza Almeida, que estão analisando os boletins de ocorrência feitos a partir de 1994 nas delegacias de defesa da mulher de 22 capitais. A maior parte (81,5%) das queixas foi por lesões corporais dolosas; o estupro e o atentado violento ao pudor perfazem 4,47% dos boletins analisados; 70% dos processos foram arquivados; 1 em cada 10 casos foi a julgamento e resultou na absolvição do acusado e 60% dos casais permanecem juntos após a queixa. Ainda segundo Saffiotti, em publicação de 1995, a proporção entre meninas e meninos vitimizados/as sexualmente é de 9/1.
- Estimativa da Organização pan-americana de Saúde (OPAS) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que apenas 2% dos casos de abuso sexual contra crianças em que o autor é um parente próximo são denunciados à polícia.
- Sobre o estupro, pesquisa feita por Ana Maria Costa e Maria Aparecida Vasconcelos Moura (Universidade de Brasília) ressalta a necessidade de considerar-se que "a grande maioria dos casos intrafamiliares não são denunciados, seja por constrangimento, seja por medo de alguma implicação nas relações familiares" e apresenta estatística extraída da Delegacia de Atendimento à Mulher do Distrito Federal, com uma média de 60 casos de violência sexual por mês, sendo a maioria queixas de estupro ou tentativa de estupro.
- Dados do UNICEF (1998) mostram que a faixa etária das meninas sexualmente exploradas, em 1990, estava entre 12 e 16 anos, com registro de casos de meninas entre 4 e 7. E que a rede de exploração dessas meninas envolve caminhoneiros, motoristas de táxi, donos de bares e boates, policiais, agências de turismo, hotéis, agências de modelos e shopping centers; com ganhos reduzidos, essas meninas estão frequentemente em situações de dívida para com as pessoas que as exploram.
- O Dossiê da Rede Saúde traz ainda um mapeamento da exploração sexual de crianças e adolescentes por regiões do país, a partir de dados da ONG CECRIA (1999). No Norte: "os garimpos propiciam as formas mais violentas de exploração sexual, que incluem cárcere privado; venda e tráfico de crianças e adolescentes; leilões de meninas virgens; mutilações; desaparecimento e turismo sexual portuário e de fronteiras. No Nordeste, a região em que a prostituição infantil começa a se estender para o sertão, a rede de aliciamento "inclui agências de turismo nacionais e internacionais, hotéis, taxistas, tráfico de menores para países estrangeiros". No Centro-oeste: as regiões de fronteira e a rota do narcotráfico estão povoadas de prostíbulos fechados, onde acontece o "leilão de virgens". No Sudeste: "acentua-se o pornoturismo e a exploração sexual comercial de meninas e meninos de rua, nas estradas e prostíbulos, com regime de cárcere privado". No Sul: "predomina a exploração de meninas e meninos de rua, prostituição nas estradas, exploração de crianças pelo narcotráfico e denúncias de tráfico de crianças".
- Sem apresentar dados, o dossiê aponta ainda o assédio sexual no local de trabalho e a violência contra mulheres encarceradas como fenômenos que estão a merecer estudos e mensurações.
- Sobre a violência praticada nos serviços de saúde, "não são raros os relatos de casos de [...] abuso sexual por parte dos profissionais"; e o dossiê traz dado da Casa de Cultura da Mulher Negra (1999), mostrando que "apenas uma em cada dez mulheres em situação de violência que procuram atendimento médico é oficialmente reconhecida pelos profissionais de saúde como mulher espancada. As respostas médicas às mulheres espancadas tendem [...] a culpar a vítima pela violência".
- Este quadro poderia ser complementado em diferentes nuanças: há estudos que mostram que a maioria dos casos de agressões e abuso sexual na família tem pais ou padrastos como autores do crime; existe desconfiança e medo, por parte da população, com relação à atuação da polícia a vergonha que as mulheres revelam de denunciar ofensas sexuais redundando na não apresentação da queixa; o medo de perder o emprego que também impede a reação diante das ofensas nos ambientes de trabalho; a contribuição negativa da grande mídia que transmite quotidianamente mensagens de reforço às atitudes de discriminaçao que perpetuam a violência; as atitudes de pais, mães e educadores em geral, e os próprios conteúdos e mensagens educativas que reforçam/naturalizam a subalternidade das meninas ou o recurso à violência para a resolução de conflitos.
As primeiras delegacias de defesa da mulher datam de 1985 e as primeiras casas de apoio às mulheres vítimas de violência datam do final da década de 80. Foram resultados da luta do movimento de mulheres contra a impunidade e por políticas de combate a esta categoria de violência. Ainda no período pré-Beijing, diferentes pressões somaram-se à do movimento de mulheres, como a atuação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) que tomou a questão dos direitos humanos das mulheres e da violência contra mulheres e meninas como um de seus temas prioritários, desenvolvendo campanhas de opinião pública e ações de apoio e proposição de políticas públicas; e a pressão exercida a partir de organismos internacionais, gerando no país uma atenção especial ao tema e ações nos diferentes âmbitos do poder.
A Lei brasileira é democrática no que diz respeito ao item família, mas ambiguamente permanecem os estereótipos de gênero que ainda colocam as mulheres em lugar de subalternidade neste domínio. Na Constituinte de 1988 logrou-se introduzir um texto avançado, como o do artigo 226, § 80 que dispõe: "O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações". Quase todas as Constituições dos 26 estados da Federação - promulgadas após 1988 - fazem também referência à coibição da violência no âmbito doméstico e familiar, com exceção de três: Pernambuco, Roraima e Alagoas. A Constituição Federal prevê ainda punição legal ao abuso, violência e exploração sexuais de crianças e adolescentes.
Entretanto a legislação penal brasileira não tem acompanhado os avanços da Constituição de 1988 no que diz respeito à igualdade de mulheres e homens, inclusive ao alargamento do conceito de entidade familiar. O Código Penal (1940) e o Código Civil (1917) brasileiros reforçam-se mutuamente reproduzindo princípios anacrônicos e discriminatórios valendo-se, por exemplo, de termos como "honestidade" e "virgindade" da mulher.
Por sua vez, o Poder Judiciário no Brasil não está estruturado de forma a atender à demanda da grande maioria da população brasileira, sobretudo quando se trata das camadas populares. É muito baixo o número de mulheres vítimas da violência que têm acesso ao sistema judicial, e a morosidade da justiça contribui para o distanciamento entre o Poder Judiciário e a população.
Alguns processos referentes a estupro, estudados em pesquisa realizada em 1992, ultrapassaram o período de oito anos entre a data de instauração do inquérito policial e o trânsito em julgado da última decisão. Mas é importante assinalar que a maioria dos processos pesquisados não ultrapassou o período de três anos de duração.
Existem no país apenas dois núcleos da defensoria pública especialmente voltados para o atendimento à mulher, um no Rio de Janeiro e um no Ceará.
Pesquisa realizada em São Paulo em 1993, analisando processos judiciais na área de família, revelou a predominância de uma concepção conservadora e patriarcal nas decisões estudadas. Para tal concepção, permanece intacta a posição prevalecente do homem como chefe da sociedade conjugal, e da mulher como colaboradora. Consagra-se a ideia da fragilidade e subordinação da mulher, que tem seus comportamentos vigiados, controlados e qualificados; institucionaliza-se, deste modo, a desequiparação de direitos, legitimando-se tratamentos jurídicos diferenciados atribuídos ao homem e à mulher.
Com frequência, a atuação do Poder Judiciário continua reproduzindo, acriticamente, estereótipos e preconceitos sociais, inclusive de gênero, impedindo, assim, a efetivação da igualdade, calcada em princípios de solidariedade. A tese da "legítima defesa da honra" ainda é, por vezes, defendida para absolver acusados de agressões e assassinatos de mulheres. Um estudo feito nas principais revistas de jurisprudência de todo o país constatou que estas apresentavam, em junho de 1999, 15 acórdãos referentes ao tema. Destas decisões, 11 não acolhiam, no caso concreto, a tese da legítima defesa da honra. A amostra é pequena e a ausência de pesquisa empírica sobre a atuação do Tribunal do Júri (tribunal popular) não permite maiores conclusões acerca da dimensão da aceitação desta tese, em primeira instância, nos diversos estados do país. Demonstra-se que, embora prevalecente, a concepção conservadora da Magistratura brasileira não é unânime em todas as decisões, havendo uma heterogeneidade que não pode ser desprezada.
Há uma lacuna no ordenamento jurídico brasileiro quanto à prostituição infantil, o turismo sexual e o abuso de crianças, delitos que não estão previstos no Código Penal de 1940, e tampouco no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).
O Brasil é signatário dos principais instrumentos internacionais de direitos humanos e, especificamente, daqueles que repudiam a discriminação por sexo e raça, como a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965, ratificada em 1968); a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (ONU, 1979), e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher/ Convenção de Belém do Pará (OEA, 1994, ratificada pelo Congresso Nacional em 1995). Embora a Constituição brasileira de 1988 atribua força de lei aos tratados e convenções assinados pelo Governo e ratificados pelo Congresso Nacional, na prática são raros os operadores do Direito que levam em consideração esses instrumentos, sendo incipiente sua utilização.
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Publicado em 31 de dezembro de 2005
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