Análise discursiva do fado “Maria da Cruz” (1945), de Amália Rodrigues: a representação feminina no contexto cultural português do século XX

João Paulo da Silva Nascimento

Faculdade de Letras (UFRJ)

Danielle Reis Araújo

Escola de Belas Artes e Faculdade de Letras (UFRJ)

Toda manifestação artística encontra-se de alguma maneira sob influência dos aspectos socioculturais próprios da sincronia em que vem à tona. Tal é o caso, por exemplo, da arte portuguesa do século XX, cuja grande tendência reflete temáticas relacionadas ao salazarismo – quer seja em tom de crítica, como na poesia de Fernando Pessoa, quer seja expondo inconscientemente pontos oriundos da campanha autoritária. Nesse sentido, pretendemos neste trabalho analisar a letra da música Maria da Cruz (1945), gravada pela fadista portuguesa Amália Rodrigues, visando salientar marcas ideológicas da ditadura salazarista presentes na canção, sobretudo no que se refere à concepção de mulher em face da tríade da nação portuguesa proposta por Salazar: Deus, família e pátria. Então, à luz desse conhecimento, partimos da seguinte consideração de Rosas (2001):

É a “pressão social e política de base” dos vários grupos da direita radical que Luís Nuno Rodrigues detecta como “determinante” no aparecimento da Legião Portuguesa (LP) no verão de 1936. Ou a iniciativa motora do núcleo duro e militante do sindicalismo corporativo, boa parte dele de origem nacional-sindicalista, no lançamento, com o decisivo apoio de Pedro Teotónio Pereira, da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT), em 1935, marcado por uma explícita influência “doppolavorista” ou mais ainda, no aspecto orgânico, da Kraft durch Frei alemã e que em muito ultrapassava os iniciais e modestos propósitos de Salazar quanto a uma “obra” de “valorização do trabalho nacional”. Mas também ao nível de certos sectores do Estado, como o da “educação nacional”, se verifica, num processo controversamente amadurecido no seio do regime desde anos antes, mas só resolvido em 1936, uma inflexão radical e de sentido totalizante no tocante às políticas de ensino e de enquadramento da juventude e das mulheres (Rosas, 2001, p. 1.034).

Maria da Cruz
De: José Galhardo, Frederico Valério e Amadeu do Vale
Gravada por Amália Rodrigues

Chamava-se ela Maria,
De sobrenome da Cruz,
E na aldeia onde ela vivia, sorria
Vivia na paz de Jesus
Tinha um amor, a quem ela
Seu coração entregara
Junto ao altar da capela
Singela, onde ela
Paixão lhe jurara!

Mas certo dia
Veio trazer-se na aldeia
Que o seu pastor lhe mentia,
Que esse amor se extinguia
Como a luz de uma candeia!
Desiludida do seu amor, a Maria
Deixou o lar e, perdida,
Saiu dali desvanecida
Foi pro cais da Mouraria!

Sofreu a dor d’amargura,
Perdeu o viço e a cor.
E não voltou à ventura,
À doçura, à ternura,
Do amor do pastor!
E hoje por cruz, a Maria,
Que é da Cruz, por seu fadário,
Arrasta na Mouraria
A cruz da agonia,
A cruz do Calvário!

Ainda canta
Uma canção quase morta
Traz o pastor na garganta,
Oiço já, quando ela canta,
Ao passar à sua porta!
Num certo dia
Em que ela, enfim, já vencida,
Terminará a agonia
De ainda estar na Mouraria
Toda a cruz da sua vida!

A começar pelo título, a canção expõe uma mulher ideal à concepção salazarista, já que segue ao encontro de uma devoção a Cristo e ao recato quanto à ideologia sociopolítica que enxergava a mulher categoricamente. Dessa forma, percebemos que a escolha do nome não se deu de maneira arbitrária, mas propositalmente arquitetada a fim de produzir um lugar de fala comum e, portanto, facilmente alienável pela função conativa da recepção da obra. Como se sabe, Maria, por ser um nome comum, por vezes é usado para generalizar a figura feminina; por sua vez, o sobrenome “da Cruz” remete à condição mínima do “ser português”, visto que representa notadamente o apreço ao catolicismo.

No caso de Portugal até o século XX, a propaganda católica não se restringe à mulher. Entretanto, seu realce nessa música gravada por Amália Rodrigues, sobretudo proposta como imposição após o hiperônimo utilizado para designar a mulher portuguesa, dado que “sobrenome” não se escolhe, parece funcionar como uma tradição discursiva típica de um resquício ditatorial. Essa entrada de pensamento é corroborada diante do conhecimento de que a mulher sempre dispunha de menores opções de escolha, estando mais suscetível, desse modo, às imposições de uma educação moral tal qual pregada por Salazar.

Após prescrever o único local de fala possível da ocupação feminina em contexto de ditadura, a música passa a discorrer mais detalhadamente a respeito do comportamento social estimado para uma camponesa portuguesa. Assim, ao dizer “E na aldeia onde vivia, sorria/Vivia na paz de Jesus”, não só reforça a ideia da plenitude oriunda da proximidade com Cristo, como também apresenta um ideário de vida questionável em detrimento dos efeitos da ditadura. Embora não saibamos, de fato, a intenção dos autores ao adicionar tal informação, no mínimo podemos resgatar um resquício da campanha ufanista de Salazar, uma vez que soa bem típico de um governo autoritário valer-se de respaldo divino para embasar seus atos, isto é, já que a paz mostra-se antônima ao regime político, esta que seja, então, prometida pela religião.

Curiosamente, a narrativa da canção envereda-se por uma via-crúcis vivida por Maria da Cruz. Apunhalada pela traição, a mulher passa a sofrer a ponto de se abrigar na Mouraria, tal como descrito em “Veio saber-se na aldeia/Que o seu pastor lhe mentia/Que esse amor se lhe extinguia/Como a luz de uma candeia/Desiludida do seu amor, a Maria/Deixou o lar e perdida/Veio cair desfalecida/Num portal da Mouraria/Sofreu a dor d'amargura/Perdeu o viço e a cor/E não voltou à ventura/À doçura, à ternura/Do amor do pastor/E hoje por cruz, a Maria/Que é da Cruz, por seu fadário/Arrasta na Mouraria/A cruz da agonia/A cruz do calvário!”.

Partindo do conhecimento de que a Mouraria é um bairro tradicional de Lisboa cujo nome fora atribuído por D. Afonso Henriques, que, após a conquista da cidade, havia confinado essa área específica aos mulçumanos, podemos destacar mais uma influência ideológica da ditadura salazarista, visto que a canção situa o local em sinonímia a sofrimento.

Ainda sobre a utilização da palavra “Mouraria”, é possível estabelecer uma relação de metonímia entre a vida de Maria da Cruz e a própria nação portuguesa. A esperança da mulher ao residir no sofrimento da Mouraria centra-se, novamente, na devoção à fé cristã, fator primordialmente distintivo entre a cultura portuguesa e a moura, cuja crença estava na religião mulçumana. Comparando essa disposição limítrofe que se dá entre a esperança de Maria da Cruz e a autoafirmação portuguesa conclamada desde o mito do milagre de Ourique, percebemos a maneira como a canção propaga uma visão religiosa de lugar excepcional na campanha salazarista, para a qual a lei e a virtude portuguesas baseavam-se em latifúndio, Estado e igreja.

Próximo ao fim da canção, Amália Rodrigues canta: “E hoje por cruz, a Maria/Que é da Cruz, por seu fadário/Arrasta na Mouraria/A cruz da agonia/A cruz do calvário!”. Nessa passagem, notamos a construção de uma representação da mulher como aquela que, mesmo diante de uma angústia estonteante, confia fielmente na justiça divina pelo fato de ser íntegra em relação aos valores cristãos. Novamente, a propaganda em prol de recomendações de Salazar pode ser percebida, já que, para o ditador, Deus deve ser o centro dos valores portugueses. Outra possibilidade, porém, é propor que a música pareça assumir um fim instrutivo tomando como alvo a população portuguesa em geral, pois, na medida em que cria um modelo cuja característica sobressalente em um cenário de dor é justamente o exercício inviolável da fé cristã, parece servir a um Portugal que perece nas mãos de Salazar.

Em suma, não pretendemos cercear as intenções dos autores na canção Maria da Cruz, mas sim resgatar resquícios da cultura em que se desenvolvera no contexto ditatorial. Justamente por isso, não faz parte desta análise apresentar proposições findas de modo equivocado. Consideramos, por fim, a maneira como podemos perceber traços característicos da ditadura salazarista por que passara Portugal no século XX, ressaltando uma proposta de análise da canção que leve em consideração:

  1. o desvelar da ideologia por detrás da condição feminina; e
  2. a sustentação de uma vida religiosa como pressuposto basilar à identidade e à cultura portuguesas.

Referências

GARCIA, Ana. A moda feminina no Estado Novo. Lisboa, 2011. Disponível em: https://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/3311/1/A%20moda%20feminina%20no%20Estado%20Novo.pdf.

PIMENTEL, Irene Flunser. A situação das mulheres no século XX em Portugal. 2008. Disponível em: https://caminhosdamemoria.wordpress.com/2008/07/07/a-situacao-das-mulheres-no-seculo-xx-em-portugal-1/.

ROSAS, Fernando. O salazarismo e o homem novo: ensaio sobre o Estado Novo e a questão do totalitarismo. Análise Social, v. XXXV(157), p. 1.031-1.054, 2001.

Publicado em 07 de janeiro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

NASCIMENTO, João Paulo da Silva; ARAÚJO, Danielle Reis. Análise discursiva do fado “Maria da Cruz” (1945), de Amália Rodrigues: a representação feminina no contexto cultural português do século XX. Revista Educação Pública, v. 20, nº 1, 7 de janeiro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/1/analise-discursiva-do-fado-rmaria-da-cruzr-1945-de-amalia-rodrigues-a-representacao-feminina-no-contexto-cultural-portugues-do-seculo-xx

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