Das partes ao todo: possibilidades de extrapolação da interdisciplinaridade para além do ambiente educacional

Daniela Faria de Souza

Graduada em Ciências Biológicas, mestranda em Ensino (Infes/UFF)

Wendel Mattos Pompilho

Doutor em Bioquímica Agrícola (UFV), docente do Departamento de Ciências Exatas, Biológicas e da Terra e do Programa de Pós-Graduação em Ensino (UFF)

Trabalhando a interdisciplinaridade

Atualmente muito tem se falado em “interdisciplinaridade”, tanto no âmbito educacional quanto fora dele. Esse termo, segundo Fazenda, pode ser definido da seguinte maneira:

“Interdisciplinaridade” é um termo utilizado para caracterizar a colaboração existente entre disciplinas diversas ou entre setores heterogêneos de uma mesma ciência (exemplo: Psicologia e seus diferentes setores: Personalidade, Desenvolvimento Social etc.). Caracteriza-se por uma intensa reciprocidade nas trocas, visando a um enriquecimento mútuo. (...)

Surge como crítica a uma educação por “migalhas”, como meio de romper o encasulamento da universidade e incorporá-la à vida, uma vez que a torna inovadora ao invés de mantenedora de tradições (Fazenda, 1979, p. 73).

Essa espécie de “comunicação” entre diferentes disciplinas pode se dar em diversos níveis, dependendo do grau de interação que existir entre elas; para tanto, existem diversas terminologias que representam tal índice de relação, como multi, pluri, inter e transdisciplinaridade, sendo essa a ordem de gradação crescente de coordenação entre as disciplinas (Jantsch; Michaud, 1972).

Essa subtração de barreiras presentes entre campos estanques do conhecimento baseada nas relações de interdisciplinaridade entre as diversas áreas do saber proporciona uma desobstrução à gênese e constituição de novas dimensões do conhecimento humano (Fazenda, 1979).

A respeito das ideias de Erich Jantsch e Michaud sobre interdisciplinaridade, Fazenda (1979) exprime o seguinte pensamento:

A concepção que ele tem do ensino é a de um meio de autorrenovação, de engajamento na problemática político-social, nesse sentido tornando-se agente e paciente das transformações científicas e sociais. Numa palavra, ao imprimir uma finalidade à ciência, procura eliminar as barreiras existentes entre a teoria e a prática, entre o homem intelectualizado e o mundo; de um ensino alienado, passa a conceber uma educação engajada (Jantsch; Michaud, 1972 apud Fazenda, 1979).

Observando tal posicionamento de ambos os autores, pode-se fazer uma correspondência com o pensamento de Bell Hooks na obra Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, em que a autora faz uma dura crítica ao ensino superficial e meramente expositivo, alienado e de simples partilha de informação. Para Hooks, somente a participação ativa, em detrimento do “consumo passivo” de conhecimento, poderia ser a verdadeira chave para abrir as portas do saber verdadeiro; para uma construção saudável do conhecimento e pensamento crítico (Hooks, 2013).

Pode-se ver a correspondência entre a essência do conceito de interdisciplinaridade, que seria uma espécie de “ligação ou união” com as ideias centrais de Hooks, no que tange à integralidade da visão sobre os alunos, em que, segundo a autora, eles devem ser vistos como seres humanos integrais, dotados de experiências complexas e particularidades. Para Hooks, os alunos não devem ser vistos apenas como meros “caçadores” de conhecimento; caçadores das “migalhas” citadas por Fazenda (1979), em que ao final dessa “caçada” do saber se deparam com uma colcha de retalhos e não com um tecido perfeitamente contexturado. Essa colcha, na maioria das vezes, não cabe no âmbito da prática da vida. Os alunos não sabem como utilizá-la, visto que se trata de um emaranhado de conhecimentos minuciosamente compartimentalizados e cientificamente soberanos, solitários e talvez até mesmo egoístas.

A interdisciplinaridade vai além de compartilhamento e cooperação entre áreas do conhecimento apenas. Ela é capaz de atingir o nível humano de inter-relação! Para tanto, o papel dos professores é de fundamental importância. Hooks defende a ideia de professores autoatualizados, ou seja, indivíduos com bem-estar espiritual; bem-estar do corpo e da alma, em que mente e corpo possam estar presentes na sala de aula e as experiências vividas por cada um tenham seu devido valor e importância. Em que o diálogo entre aluno e professor tenha mérito e cada um possa expor suas vivências e experiências e isso seja relevante para contribuir com o aprendizado teórico em sala. Para essa autora, a exigência tradicional de que nas salas de aula as mentes devem ser objetivas e livres de experiências e parcialidades provoca inúmeros prejuízos, dentre eles o fato de muitos alunos se sentirem excluídos, visto que o centro do conhecimento é fixado no professor e não na relação dialógica, no debate de ideias. Nesse cenário, o “eu” poderia prejudicar o ensino. A sala de aula poderia perder a habitual ordem e o perfeito planejamento poderia ser afetado. Portanto, é mais fácil e cômodo que apenas o professor fale e os alunos assistam como meros espectadores a uma exibição pacata de conhecimento.

Para tanto, Hooks propõe a Pedagogia Engajada e a defende como forma de libertação. De acordo com essa estratégia pedagógica progressista, o professor, em vez de usar de tirania na sala de aula, de reforçar os sistemas de dominação vigentes, em vez de manter o status quo, deve ofertar um conhecimento significativo, com ligação entre o que os alunos estão aprendendo e suas experiências globais de vida. Nesse cenário, o aluno tem voz e vez e necessariamente a sua expressão é valorizada.

Analisando as características da Pedagogia Engajada e todas as suas possibilidades, pode-se tecer a seguinte indagação: por que então esse mecanismo não é aplicado e trabalhado em todas as instituições de ensino, independentemente do nível educacional? A resposta pode parecer um tanto frustrante, mas é a realidade. A comodidade leva a evitar o emprego e a prática da Pedagogia Engajada, da educação como prática da liberdade, visto que é mais “fácil” usar a Pedagogia da Dominação devido ao fato de evitar o confronto entre várias culturas e, consequentemente, o confronto consigo mesmo. É mais fácil manter uma turma heterogênea imersa em um silêncio ensurdecedor do que suportar os debates divergentes e muitas vezes conflituosos provenientes dos multiculturalismos.

A interdisciplinaridade diante desse cenário poderia, de forma proveitosa, servir de artifício para contornar essas “efervescências de fronteira”, ou seja, o ebulir das diferenças e particularidades de cada indivíduo, podendo-se articular os conhecimentos vivenciados por cada um com os componentes curriculares.

A simples oferta de conhecimentos pré-fabricados e formatados nas configurações perfeitamente tradicionais não permite a construção de cidadãos dotados de criticidade. A simples reprodução de saberes encorpados, robustos e institucionalizados não significa educação, conhecimento, mas apenas uma repetição acrítica equivalente a um papagaio.

Realçando esse entendimento, Fazenda (1979, p. 88) reconhece que,

já que a interdisciplinaridade é uma forma de compreender e modificar o mundo, pelo fato de a realidade do mundo ser múltipla e não una, a possibilidade mais imediata que nos afigura para sua efetivação no ensino seria a eliminação das barreiras entre as disciplinas. Anterior a essa necessidade básica, é óbvia a necessidade da eliminação das barreiras entre as pessoas. O ensino interdisciplinar nasce da proposição de novos objetivos, novos métodos, enfim de uma “nova Pedagogia”, cuja tônica primeira seria a supressão do monólogo e a instauração de uma prática dialógica.

Portanto, conforme afirma Fazenda (1979, p. 71), a efetividade da interdisciplinaridade depende basicamente de uma atitude, “uma mudança de atitude diante do problema do conhecimento, uma substituição da concepção fragmentária para a unitária do ser humano”. É uma atitude capaz de modificar os hábitos já estabelecidos, como forma de passar de um conhecimento setorizado para um saber integrado, pois a interdisciplinaridade é fator de transformação, de mudança social.

Sob o ponto de vista científico, da pesquisa e do ensino, os conhecimentos são estruturados e distribuídos em disciplinas e áreas do conhecimento e isso não é desaproveitável, pois pode auxiliar no processo de ensino-aprendizagem se usado da forma correta, ou seja, se o ensino acontecer em função das relações dinâmicas entre as diversas disciplinas, atrelando-se aos problemas da sociedade (Fazenda, 1979).

Infelizmente, o que ocorre com frequência é uma espécie de consagração de algumas disciplinas em detrimento de outras, em que cada disciplina ou área de conhecimento se mantém ensimesmada encerrando o conhecimento em si própria, chegando a criar linguagens próprias e altamente específicas em que apenas seus especialistas são capazes de dominá-las, gerando uma espécie de mito de supremacia, em que qualquer indivíduo que não o “proprietário” legítimo do saber está proibido de adentrar as suas “fronteiras”. Um bom exemplo disso é a gênese da Biologia Molecular, a qual nasceu da contribuição da Física, da Química e da Biologia, mas hoje possui um status imperialista e fechado mesmo tendo nascido do contato com outras zonas do saber. Na preservação desse status de enclausuramento, a comunicação com o restante dos conhecimentos é minada; portanto, adotar a interdisciplinaridade seria como “cortar os laços” com essa especialização (Fazenda, 1979; Morin, 2003).

Morin muito sabiamente se posicionou quanto às fronteiras disciplinares da seguinte forma:

Não se pode demolir o que as disciplinas criaram; não se pode romper todo o fechamento: há o problema da disciplina, o problema da ciência, bem como o problema da vida; é preciso que uma disciplina seja, ao mesmo tempo, aberta e fechada. (...)

De alguma forma, ele [Pascal] convidava a um conhecimento em movimento, a um conhecimento em vaivém, que progride indo das partes ao todo e do todo às partes; o que é nossa ambição comum (Morin, 2003, p. 115-116).

O que Morin sugere é uma releitura do ato de ensinar, uma nova forma de olhar o que já conhecemos, um reinventar. Ele convida à transgressão das fronteiras, pois o homem é um ser complexo e transdisciplinar, porém a sociedade “evoluiu” e quis torná-lo mais compreensível, produzindo essas inúmeras especialidades do conhecer.

Portanto, o bom senso é válido para dosar as interferências entre as mais diversas disciplinas, visto que tudo está interligado, por mais que isso muitas vezes pareça imperceptível, dado o monopólio epistemológico que acontece em muitas áreas do saber.

Considerações finais

Esta simplista apresentação de ideias acerca da interdisciplinaridade faz refletir a respeito de como essa palavra tão citada atualmente faz parte da nossa vida, muito mais do que possamos perceber diariamente. Quando Hooks fala em Pedagogia Engajada, união de corpo e mente, uma abertura da mente e do coração em sala de aula, bem como da relação dialógica entre os componentes do ambiente de aprendizagem e sua exposição a experiências que, consequentemente, levarão à construção de um conhecimento autêntico e original, isso pode ser paralelamente relacionado à ideia da união de conhecimentos entre disciplinas trazida por Morin, em que, por meio da abertura ao novo, pela quebra de paradigmas e tradicionalismos, acontece a concepção de um conhecimento transformador, ousado e progressista. Na sala de aula, essa quebra de paradigmas pode se dar pela desconstrução da figura centralizadora e tirana do professor e pela concessão de voz aos alunos para que todos sintam a responsabilidade de contribuir, pois, conforme afirma Fazenda (1979), a “interdisciplinaridade, necessidade básica para conhecer e modificar o mundo, é possível de concretizar-se no ensino através da eliminação das barreiras entre as disciplinas e entre as pessoas”.

Portanto, gostaria de travar um jogo de reflexões entre interdisciplinaridade e vida. A atitude interdisciplinar pode transcender a sala de aula, pode extrapolar a relação entre disciplinas e entre alunos e professores, pois o viver, em sua essência, é transdisciplinar, visto que tudo à nossa volta está interligado e somos agentes modificadores do nosso meio; portanto, tudo é fruto da produção humana e, como tal, não são blocos estanques.

Referências

FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia. 6ª ed. São Paulo: Loyola, 1979.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

JANTSCH, Erich; MICHAUD, Guy. L’Interdisciplinarité: problemes d’enseignement et de recherche dans les universités. Nice: OCDE, 1972.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobinar. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

Publicado em 17 de março de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

SOUZA, Daniela Faria de; POMPILHO, Wendel Mattos. Das partes ao todo: possibilidades de extrapolação da interdisciplinaridade para além do ambiente educacional. Revista Educação Pública, v. 20, nº 10, 17 de março de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/10/das-partes-ao-todo-possibilidades-de-extrapolacao-da-interdisciplinaridade-para-alem-do-ambiente-educacional

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