Reflexões sobre a escola em ciclos no Brasil – uma análise crítica

Thalles Azevedo Ladeira

Mestrando em Ensino (PPGEN/UFF)

Fernanda Fochi Nogueira Insfrán

Doutora em Psicologia (PPGP/UFRJ), professora adjunta (UFF)

Ao levarmos em conta a realidade da evasão escolar no Brasil, caracterizando-se como grande desafio para as escolas e para o sistema educacional, podemos destacar que historicamente políticas públicas vêm sendo implementadas a fim de conter os movimentos de fracasso e evasão escolar. Falar de políticas públicas é sem dúvida levar em conta as políticas de progressão continuada, cujo objetivo principal é garantir a permanência do aluno na escola pela via da eliminação da repetência, flexibilizando o tempo escolar e a progressão entre os anos escolares.

No entanto, enquanto uns consideram a progressão continuada um importante projeto para interromper o fluxo de evasão escolar, por outro lado há uma série de críticas que são tecidas em relação à lógica automática da política de ciclos, que iremos problematizar ao longo deste trabalho.

Primeiramente, cabe fazer um breve traçado histórico para apresentar como a política da progressão continuada se inseriu na lógica da educação brasileira para depois traçar alguns apontamentos relativos a essa questão.

É importante destacar que as primeiras políticas referentes à implantação de tais propostas foram anunciadas na década de 1920. Todavia, foi na década de 1950 que tais propostas ganharam força, baseadas nas preocupações do governo com o fato de as reprovações dos alunos causarem prejuízos financeiros e sobrecarga no orçamento destinado à educação (Augusto; Godoi, 2004, p. 3).

Durante essa década, o Brasil apresentava os índices de retenção escolar mais elevados da América Latina: 57,4% na passagem da primeira para a segunda série do Ensino Fundamental.

A fim de resolver o problema dos altos índices de retenção escolar, o Estado do Rio Grande do Sul foi o primeiro no Brasil a adotar em 1958 uma modalidade de progressão continuada baseada em classes de recuperação para alunos que eles consideravam ter maiores dificuldades de aprendizado, levando em conta que tais alunos, uma vez recuperados de suas dificuldades, voltariam a suas classes de origem.

A partir dos anos 1960, persistiam em todo o país altos índices de repetência escolar e evasão, inflamando em todo o território nacional perspectivas favoráveis à progressão continuada.

É importante destacar que a adoção do regime de ciclos escolares, até a década de 1980, teve como seu modelo os sistemas de ciclos adotados nas escolas básicas dos Estados Unidos e da Inglaterra, que eram referência na aprovação dos alunos, independentemente do aproveitamento que tais alunos apresentassem.

No decorrer da década de 1980, diversas redes dos Estados de São Paulo (1984), Minas Gerais (1985) e Paraná (1988), implantaram o ciclo básico de alfabetização, eliminando a possibilidade de reprovação das crianças do 1º para o 2º ano de escolaridade do Ensino Fundamental, com base nas influências piagetianas e de outras teorias construtivistas, que passaram a ter forte presença nas propostas curriculares, contribuindo para que, no início da década de 1990, as prefeituras de São Paulo e Belo Horizonte propusessem que as séries fossem substituídas por ciclos em todo o Ensino Fundamental, levando em 1992 a que o regimento comum de todas as escolas municipais paulistas reorganizassem o Ensino Fundamental em três ciclos: o inicial, que correspondia aos três primeiros anos letivos; o intermediário, aos três seguintes; e o ciclo final, as antigas 7ª e 8ª séries (Barreto; Mitrulis, 2001, p. 112-113 e 116).

Entretanto, essa implementação dos ciclos trouxe de imediato às escolas do município de São Paulo problemas de falta dos alunos às aulas, já que não se sentiam mais pressionados pela ameaça de retenção ao final do ano letivo.

Ainda assim, a concepção construtivista do regime de ciclos continuou sendo justificada por favorecer um processo educativo tido como mais democratizado, uma vez que nesse modelo era reforçada a ideia de que cada aluno tinha o seu tempo para aprender; era, portanto, um modelo que prezava pelo respeito à diversidade e pelo direito a individualização (Barreto; Mitrulis, 2001, p. 118.).

Foi a partir desse processo de implementação gradual dos ciclos que foi sancionada a Lei nº 9.394/96, que colocava os ciclos como uma das formas alternativas de organização escolar para todo o país (Art. 23). No mesmo passo, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) também adotaram a organização em ciclos escolares para o Ensino Fundamental, alegando que, desse modo, era possível uma melhor distribuição dos conteúdos em relação à natureza do processo de aprendizagem (Barreto; Mitrulis, 2001, p. 120.).

Em relação aos PCN produzidos a partir desse período, passou a ser clara a afirmação de que

os conhecimentos adquiridos na escola requerem tempos que não são necessariamente os fixados de forma arbitrária, nem pelo ano letivo, nem pela idade do aluno. As aprendizagens não se processam como a subida de degraus regulares, mas por avanços de diferentes magnitudes. Embora a organização da escola seja estruturada em anos letivos, é importante que em uma perspectiva pedagógica a vida escolar e o currículo possam ser assumidos e trabalhados em dimensões de tempo mais flexíveis (Brasil, 1996, p. 16).

Sobre a tônica de que a escola em ciclos correspondia à modernização da sociedade e da escola e como resposta ao fracasso e à evasão escolar, foi aprovada a Lei nº 10.172, de janeiro de 2001, cujos objetivos propunham a elevação do nível de escolaridade da população e a redução das desigualdades no que se refere ao acesso e à permanência dos alunos nas escolas, fortalecendo ainda mais a lógica dos ciclos.

Nesse sentido, a política do regime de ciclos se ampliou gradativamente no país, cabendo considerar que atualmente São Paulo é o estado brasileiro com maior experiência na implementação da organização escolar nesse regime, seguido de Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro e Minas Gerais (Barreto; Mitrulis, 2001, p. 123).

Segundo dados do MEC/Inep, destacados por Mainardes e Stremel (2012), 9,72% das escolas do Ensino Fundamental estavam, até 2006, organizadas em ciclos (18% das matriculas) e 7,16% possuíam séries e ciclos ao longo do Ensino Fundamental (14% das matrículas), reduzindo o total de escolas organizadas em séries para a ordem de 83,12% (67,33% das matrículas) (Mainardes; Stremel, 2012, p. 3).

Esses dados indicam que, embora no Brasil a grande maioria das redes ainda esteja organizada em séries, não se pode negar o espaço que as políticas de ciclos vem conquistando gradualmente. No entanto, isso leva a pensar algumas questões a respeito da qualidade e da eficiência dessa política de organização associada à lógica da progressão continuada. Nesse sentido, iremos apontar alguns elementos para ajudar a pensar essa questão de forma crítica e contextualizada com a realidade atual.

Algumas considerações ainda sobre a progressão continuada em ciclos

Em vista do que foi apresentado aqui sobre a progressão continuada em sistema de ciclos, é da maior importância deixar claro que, embora esse modelo tenha de fato reduzido a reprovação escolar e a evasão, não podemos deixar de questionar se essa lógica realmente é eficiente em termos de qualidade para a educação ou se representa uma aprovação automática que não reflete melhora alguma na qualidade do ensino.

Para desenvolver essa questão, recorremos mais uma vez a Barreto e Mitrulis (2001), ao apontarem que a introdução da progressão continuada na escola básica se, por um lado, combate a reprovação escolar, por outro, escamoteia a falta de aprendizagem, levando a escola pública a ser considerada “coisa pobre para os pobres”, gerando, portanto, uma camuflagem da aprendizagem sem aprendizado (Barreto; Mitrulis, 2001, p. 125). Isso faz pensar que,

com o discurso de que “agora a escola não reprova” e, portanto, “não exclui os alunos”, é passada a ideia de que todos terão as mesmas oportunidades de acesso ao conhecimento, o que é uma ilusão, na medida em que os depoimentos das famílias e dos professores mostram uma insatisfação muito grande em relação a essa proposta, indicando o desejo de retorno ao sistema de avaliação anterior. (...) No que se refere às famílias, a mídia, nos últimos anos, apresentou vários depoimentos de pais insatisfeitos com o novo regime adotado nas escolas. Eles alegam que seus filhos passam de uma série para a outra sem “saber” (Augusto; Godoi, 2004, p. 8).

Em relação à citação, torna-se importante trazer a contribuição de Avancini (2001) ao destacar uma pesquisa realizada com cerca de 10 mil professores da rede estadual de São Paulo que revelou que a maioria deles (91.9%) discorda desse tipo de sistema de ensino, afirmando que “os alunos passam de uma série para a outra sem o domínio do conteúdo” (Avancini, 2001, p. 1).

Com isso, é bastante pertinente a fala de Freitas (2002, p. 96) ao afirmar que “para o Estado é muito melhor que o aluno seja reprovado pela vida, devido à sua incompetência e falta de esforço, do que na escola, de modo a atrapalhar as estatísticas governamentais e gerar custos adicionais".

A fim de tornar mais enriquecida esta discussão, cabe admitir que analisar a questão da progressão continuada é também ter que levar em conta uma educação subordinada aos organismos internacionais, pondo em destaque os financiamentos do Banco Mundial e de outros organismos internacionais à educação brasileira, sobretudo em forma de empréstimos. De acordo com Santos (2010), o primeiro empréstimo concedido ao governo brasileiro pelo Banco Mundial ocorreu no início da década de 1970 e visava implementar o ensino profissionalizante de nível médio industrial e agrícola.

Essa lógica de empréstimos concedidos pelos organismos internacionais ao Brasil sob o critério do país manter os numeradores apontando bons índices educacionais explica o sucesso da escola em ciclos no país voltada para a lógica da progressão continuada. Isso faz pensar em como o sistema educacional brasileiro escolheu adequar suas concepções de educação a uma lógica de valorização dos índices educacionais de não repetência para manter seguras as suas relações com os organismos internacionais, ainda que sob uma realidade de escamoteamento da real qualidade da educação brasileira.

Logo, a adoção da política de ciclos, quando se apresenta sob o formato de aprovação automática, se por um lado agrada os interesses governamentais, ao apresentar a educação brasileira em números estatísticos, aparentando educação de qualidade para os organismos internacionais e para os países com os quais o Brasil possui relações econômicas, como Estados Unidos, China e Alemanha, por outro lado representa, em termos objetivos, um verdadeiro desserviço à qualidade da educação pública no país, sobretudo para as camadas mais pobres, que acabam passando pela Educação Básica sem se apropriar verdadeiramente dos conhecimentos fundamentais para seu processo de desenvolvimento humano e sociopolítico.

Conclusão

Em suma, afirmamos que, para romper com a realidade da evasão escolar no Brasil, é necessário que se invista em uma qualidade real na educação, e não em uma pseudoqualidade escamoteada por números estatísticos advindos da lógica de uma progressão automática. Nesse sentido, reconhecemos a importância do país em dedicar um valor maior do seu produto interno bruto (PIB) para a educação pública e nessa perspectiva, elaborar estratégias mais concretas para que a qualidade educacional supere de forma gradativa os movimentos de evasão escolar que ainda acometem os alunos brasileiros de forma expressiva, sobretudo aqueles representantes das camadas populares.

Referências

AUGUSTO, Cacilda E.; GODOI, Elisandra, G. Progressão continuada: explorando perspectivas e contradições. Linhas, Florianópolis, v. 5, nº 2, 2004.

AVANCINI, M. Projeto quer suspender progressão continuada. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 29 dez. 2001.

BARRETTO, E. S. de S.; MITRULIS, E. Trajetória e desafios dos ciclos escolares no Brasil. Revista Portuguesa de Educação, Braga, v. 16, nº 2, p. 69-115, 2003.

BRASIL. Lei nº 9.394/96. Dispõe sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

FREITAS, L. C. A progressão continuada e a democratização do ensino. In: BOAS, B. M. F. V. (Org.). Avaliação: políticas e práticas. Campinas: Papirus, 2002. p. 83-111.

MAINARDES, J.; STREMEL, S. A organização da escolaridade em ciclos no contexto do Ensino Fundamental de nove anos: reflexões e perspectivas. Jornal de Políticas Educacionais, v. 6, p. 3-11, 2012.

SANTOS, Flávio Reis. Banco Mundial e gerenciamento da educação brasileira. 2010. São Paulo. Disponível em: http://meuartigo.brasilescola.com/educacao/banco-mundial-gerenciamento-educacao-brasileira.htm. Acesso em: 12 set. 2019.

Publicado em 17 de março de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

LADEIRA, Thalles Azevedo; INSFRÁN, Fernanda Fochi Nogueira. Reflexões sobre a escola em ciclos no Brasil – Uma análise crítica. Revista Educação Pública, v. 20, nº 10, 17 de março de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/10/reflexoes-sobre-a-escola-em-ciclos-no-brasil-r-uma-analise-critica

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