Práticas e instrumentos de inclusão: Libras, Braille e mediação escolar
Ritchelle Teixeira de Souza
UFF
Jean Carlos Miranda
UFF
É relevante destacar o papel fundamental da comunicação e do uso das formas de linguagem no processo educacional. É pela comunicação que ocorrem as interações, a interlocução social e a expressão pessoal, importantes no processo de ensino-aprendizagem. É necessário que o processo de transmissão do conhecimento seja extensivo a todos, possibilitando o crescimento e desenvolvimento pleno do educando. Como registra o inciso XIV do Art. 5º da Constituição Federal de 1988: "é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional" (Brasil, 1988).
Sistemas como o Braille e a Língua Brasileira de Sinais (Libras) foram criados para colaborar no processo de comunicação das pessoas com deficiência, uma vez que a garantia de acesso, participação e aprendizagem deve servir para a construção de práticas de enriquecimento das diferenças, e não de mitigação dos saberes. No Brasil, a Libras está prevista na Lei nº 10.436/02 como a língua oficial das pessoas surdas.
Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais – Libras a forma de comunicação e expressão em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil (Brasil, 2002).
Segundo Alvez, Ferreira e Damázio (2010, p. 47-48),
nos últimos anos, várias iniciativas foram criadas para promover o uso da Libras nas escolas, desenvolvendo práticas pedagógicas que favorecem o ensino dessa língua para as pessoas com surdez. Tais ações são necessárias, considerando a singularidade da língua de sinais e que esta não é usual na sociedade. Assim, um dos desafios das políticas públicas inclusivas para as escolas brasileiras é a construção de ambientes educacionais para o ensino da Libras por meio de métodos adequados. É direito das pessoas surdas o acesso ao aprendizado da Libras desde a Educação Infantil para sua apropriação de maneira natural e ao longo das demais etapas da Educação Básica, com a presença de um profissional habilitado, preferencialmente surdo. Essa habilitação para o ensino da Libras pode ser obtida por meio do exame Prolibras promovido pelo MEC/Inep, ou por meio do curso de licenciatura Letras/Libras.
A língua de sinais distingue-se das línguas orais por utilizar-se de um meio visual espacial. Para a elaboração das línguas de sinais, é preciso olhar os movimentos que o emissor realiza e assim entender sua mensagem. Na língua de sinais é preciso estar ao alcance da visão para que o sinal seja notado e percebido pelo receptor, pois os sinais gestuais dão origem a um diálogo entre duas pessoas ou mais (Braz, 2014). A utilização da Libras (Figura 1) é uma forma de garantir a preservação da identidade das pessoas e das comunidades surdas inseridas na cultura ouvinte hegemônica, garantindo a valorização e reconhecimento da cultura surda (Cromack, 2004).
Figura 1: Alfabeto em Libras
Dentre os processos relacionados à escola e à aprendizagem, a escrita e leitura parecem ser os que mais demandam novas reflexões, principalmente porque (e às vezes, exclusivamente) é por meio desses dois processos que se constrói e se revela a condição bilíngue do surdo (Peixoto, 2006). O Ministério da Educação, por meio da Diretoria de Políticas de Educação Especial da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, orienta os sistemas de ensino para o uso da abordagem bilíngue na escolarização dos estudantes surdos usuários da Libras, compreendendo que
o bilinguismo que se propõe é aquele que destaca a liberdade de o aluno se expressar em uma ou em outra língua e de participar em um ambiente escolar que desafie seu pensamento e exercite sua capacidade perceptivo-cognitiva, suas habilidades para atuar e interagir em um mundo social que é de todos, considerando o contraditório, o ambíguo, as diferenças entre as pessoas (MEC, 2016, p. 9).
De acordo com o Decreto nº 5.626, de 5 de dezembro de 2005, as pessoas com surdez têm direito a uma educação que garanta a sua formação, em que a Libras e a Língua Portuguesa, preferencialmente na modalidade escrita, constituam línguas de instrução e que o acesso às duas línguas ocorra de forma simultânea no ambiente escolar, colaborando para o desenvolvimento de todo o processo educativo (Brasil, 2005). O Projeto de Lei nº 14/07 (PL 2040/11, na Câmara dos Deputados) determina o ensino de Libras para os alunos com deficiência auditiva nas escolas públicas e privadas de Educação Básica. O projeto está em tramitação na Câmara dos Deputados e, em novembro de 2018, foi aprovado pela Comissão de Educação daquela Casa na forma de um texto alternativo que condensa ideias de várias proposições analisadas em conjunto. O texto atual torna a oferta do ensino de conhecimentos básicos de Libras obrigatória nas escolas públicas brasileiras nos municípios com mais de 10 mil habitantes, sendo facultativa a matrícula para os alunos.
Criado em 1825 pelo francês Louis Braille (1809-1852), o Sistema Braille de Leitura se baseia na combinação de seis pontos em relevo, dispostos na vertical em duas colunas de três pontos cada (Figura 2), o que resulta em 64 símbolos que representam letras, algarismos e sinais de pontuação. O processo de escrita e leitura é feito da esquerda para a direita, ao toque de uma ou duas mãos ao mesmo tempo. No Brasil, sua utilização data de 1850. Sua chegada e a difusão no país ocorrem por meio de José Álvares de Azevedo (patrono da educação dos cegos no Brasil), que lutou pela criação de uma escola especializada na educação de cegos. Em 1854, foi fundado por D. Pedro II, no Rio de Janeiro, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, atual Instituto Benjamin Constant (IBC), tendo como missão a educação e a profissionalização das pessoas com deficiência visual. O IBC é referência nacional no atendimento a deficientes visuais e no oferecimento de programas de capacitação em Braille.
Figura 2: Alfabeto Braille
A NBR nº 15.599 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) propõe recursos para a acessibilidade na comunicação e indica que, para a eficaz emissão, captação e troca de mensagens na prestação de serviços, é necessário observar com cautela o público-alvo e ter sensibilidade na escolha dos recursos de comunicação adequados. A combinação dos diferentes tipos de comunicação (tátil, visual e sonora) possibilita atender a uma gama de capacidades da população e contornar as barreiras à comunicação na prestação de serviços (ABNT, 2008).
Importante prerrogativa a ser citada é o Art. 46 da Lei nº 9.610/98, que dispõe que não constitui ofensa aos direitos autorais reproduzir obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que, sem fins comerciais, a reprodução seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários (Brasil, 1998). Para a promoção da acessibilidade, portanto, é preciso garantir acesso universal aos meios de comunicação, por força da Política Nacional de Educação Especial, que a enfatiza como garantia fundamental para o atendimento de qualidade dos alunos com deficiência.
Quanto à mediação, no Brasil não há registro sistemático, mas observa-se a inclusão com mediadores escolares de modo mais intenso a partir dos anos 2000. Essa prática, segundo Vargas e Rodrigues (2018, p. 8), “encontra subsídio legal na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (nº 13.146/15) e na Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (nº 12.764/12)”. Os mediadores acompanham crianças que necessitam de auxílio em sala de aula e atuam orientados por profissionais que acompanham a criança nas terapias de apoio. Contudo, a presença de mediadores não é uma realidade para todas as escolas (Vargas; Rodrigues, 2018). A escolha dos mediadores está na relação entre sua formação acadêmica e a maior demanda das crianças (comunicação, comportamento ou motora, por exemplo).
Esses profissionais devem ter a aptidão e habilidades interpessoais necessárias para desenvolver e manter relações de trabalho eficazes com as crianças, famílias e demais profissionais que as assistem, sabendo respeitar e compreender as dificuldades da família e da criança, tendo flexibilidade e criatividade para se adequar ao dinamismo escolar em que estarão inseridos e disponibilidade para aprender (Schütz, 2006).
A mediação escolar passou a se tornar mais frequente a partir da Convenção de Salamanca. As escolas de todo o mundo tiveram que dar conta de incluir crianças que precisavam de ajuda em classes já existentes, muitas vezes com grande número de alunos e professores, cuja formação não havia se preocupado com esses aspectos. O mediador pode atuar como intermediário nas questões sociais e de comportamento, na comunicação e linguagem, nas atividades e/ou brincadeiras escolares e nas atividades pedagógicas, nas limitações motoras ou da leitura nos diversos níveis escolares. Um mediador estimulando a aquisição de linguagem e habilidades sociais no cotidiano escolar amplia a possibilidade da quantidade de estímulo recebido, como também a qualidade, já que sempre ocorrerá em situação real de uso, diferente do que se pode proporcionar num consultório. Conhecer o aluno que será acompanhado pela mediação, discutir com a equipe pedagógica da escola e com a equipe de apoio terapêutico são pontos fundamentais. Apesar de a figura do mediador ser considerada uma adaptação no espaço pedagógico, portanto garantido pela lei, não existe muita clareza quanto ao papel e às atribuições desse profissional nem quanto à regulamentação da profissão (Mousinho et al., 2010, p. 92).
Os mediadores favorecem a interpretação do estímulo ambiental, chamando a atenção para os seus aspectos cruciais, atribuindo significado à informação recebida, tornando esse estímulo relevante e significativo, o que favorece o desenvolvimento. Os mediadores podem auxiliar a criança na identificação de problemas, contribuindo para a tomada de decisões e o encorajamento para atuação ativa no ambiente em que está inserida.
Uma vez que atuam como facilitadores, consultores e dinamizadores, esses profissionais devem possuir características, atitudes e conhecimentos específicos que permitam criar situações de aprendizagem (Suanno, 2010; Masetto, 2013).
Ainscow, Porter e Wang (1997) apontam três fatores chave para uma educação mais inclusiva: primeiro, a “planificação nas salas de aula, para a classe como um todo”; segundo, a utilização eficiente de recursos naturais: os próprios alunos, valorizando os conhecimentos, experiências e vivências de cada um, reconhecendo a capacidade dos alunos para contribuir para a respectiva aprendizagem, que é um processo social, desenvolvendo o trabalho em pares/cooperativo, criando ambientes educativos mais ricos, desenvolvendo a capacidade de resposta dos professores ao feedback dos alunos, no decorrer das atividades; terceiro, “improvisação”, pois o professor deve ser capaz de fazer uma alteração de planos e atividades em resposta às reações dos alunos, encorajando uma participação ativa e a personalização da experiência da aula.
É de suma relevância a implementação de práticas de inclusão, fundada em uma filosofia que reconhece e valoriza a diversidade. O papel da escola inclusiva, portanto, é reconhecer as diferenças dos alunos e garantir a devida “abertura”, a efetiva participação e progresso de forma plural. A adoção de práticas escolares compatíveis com a inclusão requer redefinições e alternativas que, pormenorizadamente, devem ser revistas. O educando com deficiência deve se tornar autônomo o suficiente a ponto de construir competências e habilidades para exercer a cidadania plena, por meio de práticas que auxiliem e fomentem o seu desenvolvimento no meio social, já que emergem da educação as mudanças fundamentais necessárias. A Educação Inclusiva requer, fundamentalmente, a reafirmação nos projetos educativos que a sustentam, os valores e a humanização das ações pedagógicas.
Referências
ABNT – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 15.599, de 2008. Acessibilidade - Comunicação na prestação de serviços.
AINSCOW, M.; PORTER, G.; WANG, M. Caminhos para as escolas inclusivas. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 1997. [Textos originais em inglês, apresentados em Salamanca, 1994].
ALVEZ, C. B.; FERREIRA, J. P.; DAMÁZIO, M. M. A Educação Especial na perspectiva da inclusão escolar: abordagem bilíngue na escolarização de pessoas com surdez. v. 4. Brasília: MEC/SEESP, 2010.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências.
BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências.
BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira se Sinais – Libras, e o Art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000.
BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial. A Educação Especial na Perspectiva da Inclusão Escolar: abordagem bilíngue na escolarização de pessoas com surdez. Brasília: MEC/SEESP, 2010.
BRAZ, A. T. M. Libras: uma ferramenta de inclusão escolar e socialização para os surdos. Revista Virtual de Cultura Surda, nº 12, p. 1-10, 2014.
MASETTO, M. Mediação pedagógica e tecnologias de informação e comunicação. In: MORAN, José M.; MASETTO, M. T.; BEHRENS, M. A. (Orgs.). Novas tecnologias e mediação pedagógica. Campinas: Papirus, 2013.
MOUSINHO, R.; SCHMID, E.; MESQUITA, F.; PEREIRA, J.; MENDES, L.; SHOLL, R.; NÓBREGA, V. Mediação escolar e inclusão: revisão, dicas e reflexões. Revista Psicopedagogia, v. 27, nº 82, p. 92-108, 2010.
PEIXOTO, R. C. Algumas considerações sobre a interface entre Língua Brasileira de Sinais (Libras) e a língua portuguesa na construção inicial da escrita pela criança surda. Cadernos Cedes, v. 26, nº 69, p. 205-229, 2006.
SCHÜTZ, M. R. R. S. Avaliação escolar como instrumento de mediação da aprendizagem na Educação Inclusiva: desafios no cotidiano escolar. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade do Vale do Itajaí. Itajaí, 2006.
SUANNO, J. H. Práticas inovadoras em Educação: uma visão complexa, transdisciplinar e humanística. In: MORAES, M. C.; NAVAS, J. M. B. Complexidade e transdisciplinaridade em Educação: teoria e prática docente. Rio de Janeiro: Wak, 2010.
VARGAS, T. B. T.; RODRIGUES, M. G. A. Mediação escolar: sobre habitar o entre. Revista Brasileira de Educação, v. 23, p. 1-26, 2018.
Publicado em 24 de março de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
SOUZA, Ritchelle Teixeira de; MIRANDA, Jean Carlos. Práticas e instrumentos de inclusão: libras, braille e mediação escolar. Revista Educação Pública, v. 20, nº 11, 24 de março de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/11/praticas-e-instrumentos-de-inclusao-libras-braille-e-mediacao-escolar
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