O projeto Educação Patrimonial e Artística: um possível processo de preparação de alunos pesquisadores
Enock da Silva Peixoto
Docente na rede estadual da Bahia, mestre em educação (UNIRIO) e doutorando em Filosofia (UERJ/UFRJ)
Janete Silva de Jesus
Aluna do Colégio Estadual Dr. Jairo Azzi (Lamarão/BA)
Rosângela Souza Carvalho
Aluna do Colégio Estadual Dr. Jairo Azzi (Lamarão/BA)
Gilmara Ribeiro de Carvalho
Aluna do Colégio Estadual Dr. Jairo Azzi (Lamarão/BA)
Gabriela Cardoso de Jesus
Aluna do Colégio Estadual Dr. Jairo Azzi (Lamarão/BA)
Érica Batista Dantas
Aluna do Colégio Estadual Dr. Jairo Azzi (Lamarão/BA)
Antonia de Jesus Souza
Aluna do Colégio Estadual Dr. Jairo Azzi (Lamarão/BA)
Avanilza da Silva Pereira
Aluna do Colégio Estadual Dr. Jairo Azzi (Lamarão/BA)
Marcos de Jesus Lima
Aluno do Colégio Estadual Dr. Jairo Azzi (Lamarão/BA)
Jaqueline de Carvalho Souza
Aluna do Colégio Estadual Dr. Jairo Azzi (Lamarão/BA)
Maiara Carvalho
Aluna do Colégio Estadual Dr. Jairo Azzi (Lamarão/BA)
Patricia Silva
Aluna do Colégio Estadual Dr. Jairo Azzi (Lamarão/BA)
Verônica Carvalho
Aluna do Colégio Estadual Dr. Jairo Azzi (Lamarão/BA)
Considerações iniciais
O projeto Educação Patrimonial e Artística (EPA) tende a valorizar a tradição e a cultura de uma comunidade, de um povo. Os alunos avaliam um espaço social que pode ser da cultura material ou imaterial da cidade (espaços públicos como igrejas, praças, museus, escolas, uma festa, danças típicas, artesanato, alimentos tipicos, pessoas relevantes para a cidade, elementos naturais etc.) e produzem um álbum fotográfico, que deve ser um modo de incentivar o valor da cultura local; pode ser também um material de pesquisa que traz alguma notoriedade e informação sobre aspectos locais que muitas vezes são tratados como irrelevantes.
Figura 1: Alunos apresentando os projetos do EPA-2019
O Colégio Estadual Jairo Azzi, localizado na cidade de Lamarão/BA, situada na Região do Sisal, desde o seu inicio desenvolve os denominados projetos estruturantes. No ano de 2019, alunos da 1ª, 2ª e 3ª séries do Ensino Médio realizaram o projeto Educação Patrimonial e Artística (EPA), dividindo-se em dois grupos: um sobre o grupo de capoeira Martelo Cruzado e outro sobre a produção artesanal da comunidade quilombola Sítio Santana. Em ambos os casos, a intenção foi trazer para a reflexão escolar o valor e a importância desses dois grupos culturais da comunidade. O texto a seguir é uma breve apresentação dos alunos autores, sob a orientação do professor de Filosofia. O texto é composto por dois momentos: inicialmente serão apresentadas informações referentes ao grupo de capoeira, contextualizando a sua atuação na cidade como valor cultural e em seguida focalizar-se-á a produção artesanal produzida na localidade Sítio Santana, uma das comunidades de Lamarão.
Trata-se de um trabalho discente, e um dos objetivos do texto é exatamente valorizar os alunos e alunas como autores, como pesquisadores que não apenas recebem, mas também geram conhecimento e informação.
Figura 2: Alguns dos integrantes do EPA-2019
O grupo de capoeira Martelo Cruzado
O município de Lamarão é rico em cultura. Uma das principais expressões da cidade nesse campo é a capoeira, que contribui significativamente para o enriquecimento artistico e educativo da comunidade. Desde o final de 2004 ela já era presente na cidade com o grupo Pessoas da Vida, filial do município vizinho, Serrinha. Houve mudanças com a saída do mestre Miraldo Gonçalves de Souza; em 21 de setembro de 2005 ele resolveu criar um grupo que pertencesse a Lamarão, dando-lhe o nome Martelo Cruzado, devido ao fato de este ser o nome de guerra do mestre e por haver um golpe na luta denominado martelo cruzado, que é aplicado de forma aérea, cruzando as pernas.
Figura 3: Roda de conversa com cantos, palmas e instrmentos musicais
Trata-se de um projeto social voltado para a população em geral. O objetivo é trazer oportunidade às crianças e aos jovens e contribuir para que eles não se envolvam no mundo do crime, além de difundir conhecimentos que podem ser aproveitados por toda a vida. Atualmente existem 20 alunos na sede (Lamarão); nas comunidades, os intregrantes estão assim divididos: Levada (12), Sossego (10), Traíra II (05), Veludo (30). Os instrumentos utilizados são oito: berimbau, conhecido como gunga médio e viola; atabaque; pandeiro; agogô; reco-reco e o triângulo, que não é obrigatório; além deles, um chocalho complementa o berimbau, conhecido como caxixe. O grupo já realizou apresentações em Lamarão, Araci, Serrinha, Irará, Coração de Maria, Vitória da Conquista e em Conceição do Coité. Nesta última cidade conquistou o 2° lugar em uma competição com o prêmio de R$ 1.500,00; eles continuam realizando eventos em várias cidades.
Figura 4: Os principais responsáveis pelo grupo Martelo Cruzado com o mascote Matheus, portador da síndrome de Down
Os encontros do grupo ocorrem três vezes por semana (às terças, quintas e sextas-feiras), no Clube Cultural Criativo de Lamarão ou na quadra esportiva do Colégio Municipal Virgílio Nunes de Medeiros. Geralmente às sextas-feiras é realizado um encontro com todos os integrantes. A atividade, além de beneficiar os jovens e a cidade, é reconhecida como patrimônio cultural brasileiro; no entanto, ainda hoje há pessoas que não conhecem nem valorizam essa significativa manifestação de arte.
Figura 5: Evento realizado no aniversário da cidade de Lamarão-BA
Resolvemos abordar esse tema porque tem grande importância para os jovens que residem na cidade, ocupando-os com algo interessante e trazendo uma opção, diante de caminhos desagradáveis e violentos. Com a presente pesquisa, adquirimos conhecimento sobre a história da capoeira, além de experiências valiosas sobre essa atividade.
Podemos dizer que escolhemos a capoeira não como uma simples ação cultural, mas como algo que vai muito além das apresentações; configura-se como uma ocupação capaz de transformar as vidas dos adolescentes. Concluímos que, com o projeto EPA, foi possivel conhecer e valorizar a manifestação de cultura em análise. Infelizmente, por diversos momentos, a própria população de Lamarão não reconhecia sua importância. Por isso, um projeto como este é relevante para acolher e tornar visíveis os valores artístico-culturais do município.
A comunidade quilombola Sítio Santana
Sítio Santana quilombola é uma comunidade que pertence ao município de Lamarão/BA, situada a 10km da sede, localizada a aproximadamente 177km da capital, Salvador. O Quilombo foi formado no século XIX, quando os escravos fugiam das grandes fazendas. Eles eram considerados propriedade dos grandes fazendeiros. Cansados de tanto sofrimento, fugiam e procuravam lugares isolados. Esses indivíduos vinham de várias localidades do território da Bahia, inclusive do Recôncavo Baiano.
A comunidade quilombola vive do artesanato e do trabalho diarista, dentre outras atividades; até os dias de hoje a atividade artesanal é um meio de sustento. O principal material oriundo desse labor são potes e panelas, conhecimento passado de geração a geração desde os primórdios do Quilombo. A beleza da cerâmica do Sítio Santana faz com que muitas pessoas de outros municípios se interessem pelas peças, que são produzidas de forma manual. O povoado, desde suas origens, é fomentado pelo artesanato; esse trabalho incentiva a manter viva a sua história e a gerar renda para os artesãos e seus familiares.
Figura 6: Exposição e venda dos produtos artesanais
O barro é a materia-prima utilizada para a produção de frigideiras, panelas, tachos e potes. Uma das mulheres que faz parte da associação tem argila em sua propriedade, que é o material utilizado na construção dos produtos. Todos fazem o possível para construir peças com o máximo de qualidade.
Figura 7: Integrante da comunidade produzindo o artesanato
O barro é transportado em grandes sacos de aniagem, carregado em uma carroça diretamente para o armazenamento, que se dá da seguinte forma: as artesãs pegam o material, molham por uns três dias para amolecer, deixando a massa molhada para a utilização. As produções das peças antes eram feitas nas próprias residências das artesãs mais velhas; com o decorrer do tempo, elas sentiram a necessidade de trabalhar juntas; receberam uma visita do Artesanato Solidário do município de Lamarão, o que mobilizou e motivou o labor conjunto, aumentando a eficiência. A modelação das peças é feita de forma manual; para melhorar o trabalho, as artesãs usam algumas ferramentas, como borracha de sandália e o bico do boné, que reclina e serve como paleta. Para finalizar, usam argila fina, deixando as peças lisas. Para queimar os produtos, é preciso tirar o excesso de água, o que leva de 8 a 15 dias, dependendo do clima; depois desse processo, colocam lenha no forno aos poucos para não perder o ponto.
Figura 8: Armazenamento do barro
A associação comunitária de artesãos de Sitio Santana é um fluxo de união, participação popular e cultural, originário de uma comunidade reconhecida como quilombola. O grupo de produção vende na comunidade e em outros municípios, nas feiras livres de artesanato, mas falta sair para outros estados e promover a divulgação dos produtos. A fabricação de peças com argila (barro) é alternativa de renda para as 21 artesãs e suas famílias. A comunidade não tem trabalho para todos, e muitos moradores saem para buscar empregos fora; a maioria vive da agricultura, mas nem sempre colhe o que planta devido ao climá árido da região sisaleira.
Figura 9: Espaço de armazenamento do produto finalizado
A pesquisa sobre o Sítio Santana quilombola foi apresentada neste projeto com o intuito de mostrar para as pessoas de Lamarão/BA e, dentro do possivel, expandir para outros contextos sociais uma cultura que está presente no município desde o século XIX. A maioria das pessoas da cidade não valoriza o artesanato dos quilombolas, que poderia ser conhecido em outros espaços do território nacional e talvez no mundo. Esse conteúdo foi abordado pelos estudantes do Colégio Estadual Jairo Azzi com o objetivo de conhecer parte da história dos quilombos, sua cultura e suas perspectivas de vida, que, embora inseridos em um microespaço social, ajudam a construir parte do patrimônio cultural de nosso país.
Considerações finais
Estudar os conceitos de patrimônio histórico-cultural e artístico está entre os propósitos dos projetos estruturantes realizados nas escolas estaduais da Bahia anualmente, desde 2012. Trata-se de uma tentativa de tornar o aluno um pesquisador do seu contexto social e levá-lo a valorizar o patrimônio histórico e cultural de sua região. Esse propósito está inserido em outro maior, que é a legislação nacional, quando aborda a importância do acesso à cultura. O Capítulo III da Constituição Federal de 1988, no Art. 216 sustenta: “O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação”.
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB, 9.394/96), em seu Art. 1º, também enfatiza a valorização da cultura e do patrimônio como parte do processo formativo humano: “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.
Ter o conhecimento dos saberes acumulados socialmente, sobretudo os que se tornam cultura, é fundamental para a criação de sujeitos autônomos e livres. O direito à cultura e a democratização do saber são essenciais para que a escola se torne um ambiente que extrapola os seus muros e dialogue com a textura social mais ampliada.
O projeto Educação Patrimonial e Artística (EPA) tem a finalidade de resgatar os valores artísticos e culturais das cidades e regiões da Bahia e, juntamente com outros projetos, visa ampliar o conhecimento e o estudo juvenil para além da sala de aula. A noção de patrimônio contribui para que se tenha a percepção de que o passado ilumina o presente e cria perspectivas de futuro. Angla Pereira dos Santos Rodrigues (2018, p. 3) corrobora essas afirmações:
Com o EPA se objetiva fomentar a cultura como um aspecto elementar dos direitos inerentes ao ser humano que devem ser universalizado e vivenciado nos espaços escolares, uma vez que a internalização do conceito de patrimônio histórico-cultural possibilita o entendimento do tempo passado, pressente e futuro, pois é um constructo que permite perceber as práticas sociais desde a formação construída no seio familiar até visões mais complexas como um sujeito inserido numa conjectura de proporções locais e globais.
É importante tornar visíveis os espaços e eventos culturais e patrimoniais de nossa sociedade para que aprendamos a valorizá-los e integrá-los como essenciais para a vida. Segundo o Iphan,
a Educação Patrimonial constitui-se de todos os processos educativos formais e não formais que têm como foco o patrimônio cultural, apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócio-histórica das referências culturais em todas as suas manifestações, a fim de colaborar para seu reconhecimento, sua valorização e sua preservação.
Desse modo, há preocupação das normas institucionais em fomentar o acesso à cultura e ao patrimônio, tornando-os não algo periférico, mas integrados intimamente ao processo educativo. Para Maria Letícia Mazzucchi Ferreira (2006),
o patrimônio pode ser compreendido como esse esforço constante de resguardar o passado no futuro; e para que exista patrimônio é necessário que ele seja reconhecido, eleito, que lhe seja conferido valor, o que se dá no âmbito das relações sociais e simbólicas que são tecidas ao redor do objeto ou do evento em si.
Essa é uma noção importante, pois o patrimônio e a cultura não devem ser algo dissociado dos corpos, das vidas concretas dos indivíduos, muito menos, restritos a uma ínfima parcela privilegiada economicamente da sociedade; devem ser uma potência que eleva os indíviduos e a coletividade à produção de criações novas e afirmadoras da dignidade humana. Desse modo, o passado e o presente orientam para que se criem perspectivas de porvir. Educar nessa conjuntura significa dimensionar, a partir dos valores culturais já estabelecidos, não a cópia ou a mera contemplação deles, mas instiga a produção modos de vida singulares. O sentimento holístico de que de certo modo pertencemos ao passado, estamos no presente e estaremos no futuro pode desfazer a percepção estanque de que a cultura e sobretudo o patrimônio são obsoletos; contrariamente, como sustenta Brandão, somos um feixe de relações que nos integra:
Não se trata, portanto, de pretender imobilizar, em um tempo presente, um bem, um legado, uma tradição de nossa cultura, cujo suposto valor seja justamente a sua condição de ser anacrônico com o que se cria e o que se pensa e viva agora, ali onde aquilo está ou existe. Trata-se de buscar, na qualidade de uma sempre presente e diversa releitura daquilo que é tradicional, o feixe de relações que ele estabelece com a vida social e simbólica das pessoas de agora, o feixe de significados que a sua presença significante provoca e desafia (Brandão, 1996, p. 51).
Os individuos do presente, no seu feixe de relações, podem ressignificar a existência com base na análise e no estudo de seus bens culturais e patrimoniais, como uma atualização e não uma equivocada transferência de fatos do passado, em um contexto diferente para direcionar o presente. A cultura deve ser uma luz, um “fio de Ariadne” que aponta caminhos, que apresenta o incômodo mas instigante e necessário impulso de não ficarmos no mesmo lugar, de buscarmos novas possibilidades de existência.
Referências
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Cultura, Educação e Interação: observações sobre ritos de convivência e experiências que aspiram torná-las educativas. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues et al. (Orgs.). O difícil espelho: limites e possibilidades de uma experiência de cultura e educação. Rio de Janeiro: IPHAN, 1996.
BAHIA. SUPED – Superintendência de Políticas para a Educação. Síntese do EPA 2018 no Estado da Bahia. Salvador: SUPED, 2018.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Editora do Senado, 1988.
FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi. Patrimônio: discutindo alguns conceitos. Revista Diálogos, v. 10, nº 3, p. 79-88, 2006.
INSTITUTO DO PATRIMONIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (IPHAN). Site institucional. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/. Acesso em 10 nov. 2019.
RODRIGUES, Angla Pereira dos Santos. A Educação Patrimonial e Artística (EPA) nas escolas estaduais da Bahia: a experiência do Colégio Doutor Juca Sento-sé. V CONEDU. Olinda, Pernambuco, 2018.
Publicado em 12 de maio de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
PEIXOTO, Enock da Silva; JESUS, Janete Silva de; CARVALHO, Rosângela Souza; CARVALHO, Gilmara Ribeiro de; JESUS, Gabriela Cardoso de; DANTAS, Érica Batista; SOUZA, Antonia de Jesus; PEREIRA, Avanilza da Silva; LIMA, Marcos de Jesus; SOUZA, Jaqueline de Carvalho; CARVALHO, Maiara; SILVA, Patrícia; CARVALHO, Verônica. O projeto Educação Patrimonial e Artística: um possível processo de preparação dos alunos como pesquisadores. Revista Educação Pública, v. 20, nº 17, 12 de maio de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/17/o-projeto-educacao-patrimonial-e-artistica-um-possivel-processo-de-preparacao-de-alunos-pesquisadores
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.