Escrita de autobiografia no 5º ano do Ensino Fundamental: um relato de experiência
Rafael Rossi de Sousa
Pedagogo, professor dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental na Prefeitura do Rio de Janeiro, mediador pedagógico da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO/UAB/Cederj/Cecierj)
Justificativa
O processo de leitura ocorre a todo momento, seja em bases logográficas ou iconográficas. Todos leem, seja ou não detentor do conhecimento do código alfabético. Lemos as palavras, as imagens, o olhar, as expressões faciais... Para Paulo Freire (1989), lemos o mundo.
No ambiente escolar, a busca pela excelência da competência leitora deve fazer-se constante na medida das progressões das aprendizagens, em situações significativas demonstradas pela participação e atuação dos alunos como protagonistas de todo o processo de aprendizagem.
Em 2018, foi apresentada à turma do quarto ano da Escola Municipal Lino Martins da Silva a história da cantora Emilinha Borba, que se desdobrou em um projeto de leitura em que foram desenvolvidas atividades durante todo aquele ano letivo, com participação e interesse em todas as etapas, com uma culminância em que os alunos escreveram cartas ao fã-clube da cantora e obtiveram respostas, o que causou significância devido ao fato de a escrita ter partido de um assunto que aprenderam (contextualizada) e teve destinatário real.
Diante disso, o professor regente, em acompanhamento da mesma turma em 2019, lançou mão de apresentar outros cantores que tiveram impacto no cenário do Rio de Janeiro e/ou nacional e com o que houvesse possibilidade de fazer conexões além-texto, em reflexões pessoais, assuntos interdisciplinares e proposições diversas. Para isso, foi escolhida Carmen Miranda (1909-1955).
O trabalho teve como objetivos estimular a leitura enquanto prática fruída; consolidar estratégias de leitura; reconhecer elementos de texto biográfico e suas marcas linguísticas; correlacionar espaço e tempo como produtores de ações, memórias e manifestações artístico-culturais; inferir sobre a produção dos meios de comunicação e impactos na circulação de informações; planejar e produzir texto autobiográfico, considerando seus elementos, características e marcas linguísticas; reconhecer-se como sujeito produtor e transformador da história; refletir sobre a importância de pontos de referência estáveis, endereços e elementos geoespaciais.
Foram trabalhados conteúdos como biografia, autobiografia, estratégias de leitura, habilidades de leitura, prosódia, análise linguística, produção textual e lugar.
Desenvolvimento metodológico
O professor afixou em um dos murais da sala uma foto de Carmen Miranda rodeada com frutas e o título “A pequena grande notável”, em referência ao título do livro-base e nome do projeto.
Figura 1: Mural inicial afixado em sala de aula para apresentação do projeto
Durante esse período, os alunos observaram os detalhes da personagem e comentavam entre si, ora curiosos, ora atentos com observações minuciosas sobre o que notavam, sem interferência do professor.
Na semana seguinte, o professor apresentou o livro Carmen – a grande pequena notável (Romeu; Seixas, 2014). Logo de início, alguns alunos apontaram características da foto real do mural com a foto da capa, chamando a atenção de todos.
Antes da leitura, o professor solicitou que informassem as características possíveis de saber apenas ao olhar a foto de capa; com as informações, correlacionamos fatos e opiniões baseados na leitura compartilhada das primeiras páginas.
A leitura do livro foi dividida em cinco partes, contemplando as fases da vida da cantora; sempre antes e após era solicitado que os alunos relacionassem os fatos ocorridos anteriormente e/ou levantassem hipóteses sobre um ou outro fato apresentado e despertado maior interesse/incômodo na turma.
Em determinado momento, o livro começa a apresentar as canções interpretadas por ela e fez-se necessária a exibição em vídeo das músicas mostradas nos filmes e dispostas nos sites de compartilhamento de vídeos.
Figura 2: Apresentação de videoclipes e de músicas da cantora Carmen Miranda – fase de imersão
Houve, durante todas as etapas da leitura, o destaque dos alunos à história de Carmen, como momentos de superação e glórias com a sua projeção internacional, divulgação da cultura brasileira, participação em filmes...
Ao apresentar a música Rebola bola, houve espanto e graça dos alunos devido à velocidade e seu aumento progressivo durante a canção, além do jogo de palavras provocando um trava-língua entre os pares mínimos P/B. Com a letra impressa em mãos, os alunos foram desafiados a ler a canção, em voz alta, em diferentes ritmos e, posteriormente, com oscilação rítmica; destacamos também os sinais de pontuação. A atividade propiciou uma reflexão sobre o ritmo leitor e sua inteligibilidade e compreensão.
Figura 3: Apresentação de videoclipes e de músicas da cantora Carmen Miranda – fase de imersão
Durante e após a leitura do livro, foram realizadas atividades diversas, como análise de trechos, em que foram estudados aspectos como variação linguística e destaque de elementos (palavras) que indicavam ideia de tempo e lugar. Os alunos foram encaminhados a organizar uma linha do tempo com alguns fatos apresentados no livro.
Com a apresentação de fotos da época em que a cantora viveu, foi possível fazer distinções (caracterizações) da alteração das paisagens e evolução urbana. Com os filmes, como Você já foi a Bahia? (Disney, 1944), além de apresentar a canção Aquarela do Brasil (de Ary Barroso, 1939) com sua exaltação aos recursos nacionais, foi possível fazer uma comparação do carnaval atual e o carnaval de salão.
Houve grande curiosidade sobre a evolução da TV e do rádio pelos alunos que não compunham a turma no ano anterior; os alunos de 2018 explicaram como se deu a chegada dos meios de comunicação e como evoluíram até os dias atuais.
O professor, então, usando o material de apoio pedagógico afixado em sala, releu uma das produções textuais coletivas produzidas pela turma (texto narrativo em 3ª pessoa) e perguntou quais eram as diferenças entre o texto do livro e o texto do cartaz. Alguns alunos apontaram a quantidade de parágrafos, outros citaram personagens e outros a similaridade do narrador. O professor então apontou, no varal de gêneros textuais da sala, o gênero narrativo ficcional e junto com os alunos, todos leram as características. Em seguida, falou do texto biográfico e de alguns outros. Os alunos foram unânimes, após a leitura, em afirmar que o texto lido era uma biografia.
Com isso, foi lida uma biografia de Monteiro Lobato e foram destacadas as principais características do gênero biografia. Em seguida, foi oferecido um texto sobre o mesmo personagem, porém autobiográfico. O desafio era descobrir as diferenças e se era uma biografia, justificando. Alguns alunos, por recordarem do gênero, logo identificaram o narrador em primeira pessoa e deram espaço para a reflexão dos demais.
Feitas as devidas colocações sobre biografia e autobiografia, foram realizadas algumas atividades de flexão e conversão de narrador, para sistematização. Foi proposto que cada aluno criasse sua autobiografia, a qual faria parte da série Pequeno(a) grande notável. Junto com o professor, delimitaram quais temas seriam relevantes para conter e se determinou um roteiro para embasamento.
Figura 4: Construção coletiva de roteiro baseada na reflexão dos alunos sobre itens importantes que deveriam constar em seu texto
Após a escrita e a análise do texto produzido, os alunos entregaram ao professor para fazer a revisão final e a digitação em formato de livreto.
Durante a leitura dos textos produzidos, o professor pôde notar que foi alcançado o objetivo da produção, pelas manifestações subjetivas presentes nos textos, das mais simplificadas às mais complexas na linguagem, além do contexto exigido para o gênero. As subjetividades e memórias presentes trazem significações que
envolvem omissões, seleção de acontecimentos a serem relatados e desequilíbrio entre os relatos (uns adquirem maior peso, são narrados mais longamente do que outros), operações que o autor só é capaz de fazer na medida em que se orienta pela busca de uma significação, busca essa que lhe dirá quais acontecimentos ou reflexões devem ser omitidos e quais (e como) devem ser narrados. [...] A significação se constrói no momento mesmo em que o autor escreve a autobiografia (Alberti, 1991, p. 12).
Outro aspecto importante observado nos textos foi a abordagem do local em que vivem. Em sua maioria, relatam os pontos considerados positivos e negativos ou de incômodo, como tiroteios e conflitos armados entre agentes locais e/ou com agentes de segurança pública. São observadas nos textos as marcas da infância, como o brincar, as trocas, os medos e anseios relacionados ao cotidiano. O texto corrobora a ideia de Milton Santos (1997), que defende que “cada lugar é, à sua maneira, um mundo”.
Na digitação das histórias, foram privilegiados espaços para a ilustração dos aspectos escritos e dado destaque aos elementos de um livro físico, incluindo ficha catalográfica.
Depois de digitados e impressos os textos, os alunos puderam ter contato com a versão “crua” de seu livro, com o texto e com espaços em branco. Foram convidados a fazer a ilustração. Para isso, retomamos o livro de Carmen para verificar quais os aspectos foram ilustrados, para que o aluno pudesse se sentir livre para executar a sua ilustração de forma consciente, sem amarras ao todo da página, mas a algum aspecto que considerasse de maior relevância. Além disso, foram observadas disposição, coloração e estética. Abordamos nesse momento o trabalho do ilustrador e do diagramador, ressaltando a importância de tais profissões.
Figura 5: Exemplar de página do livro autobiográfico produzido
Figura 6: Exemplar de página do livro autobiográfico produzido
Dias após, ao finalizar as produções, foi realizada a leitura para alunos do ciclo de alfabetização; os autores explicaram o gênero autobiografia e puderam apontar elementos específicos de suas produções. Houve a disposição dos livros no acervo da classe para manuseio pelos demais colegas.
Figura 7: Aluna lendo e interagindo com seu livro para alunos de turmas de alfabetização
Figura 8: Exposição dos livros no Dia da Família na Escola, evento aberto à comunidade
Figura 9: Exposição das produções finais em sala de aula
Figura 10: Exposição das produções finais em sala de aula
Análise dos resultados
A proposta de trabalho teve seus objetivos alcançados, haja vista a participação e o engajamento dos alunos durante os processos do trabalho. O protagonismo assumido ao redigir e expor suas histórias foi o ápice do projeto, como culminância, demonstrando apropriação dos conteúdos e objetivos propostos. A leitura de textos diversos do mesmo gênero fez-se essencial no percurso para a construção da identidade do texto autoral; esse produto de identidade do educando contribui para a apropriação, cada vez mais progressiva, de práticas de leitura-escrita mais sofisticadas.
Referências
ALBERTI, Verena. Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, nº 7, 1991.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados/Cortez, 1989.
RIO DE JANEIRO. SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. A língua escrita nos anos iniciais do ensino fundamental. Rio de Janeiro: SME, 2014.
SANTOS, Milton. O lugar: encontrando o futuro. Rua - Revista de Arquitetura e Urbanismo, v. 6, p. 34-39, 1997.
SEIXAS, Heloisa; ROMEU, Julia. Carmen, a grande pequena notável. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014.
ZORZI, Jaime Luiz. Como escrevem nossas crianças? Estudo do desempenho ortográfico de alunos das séries iniciais do ensino fundamental de escolas públicas. São Paulo: Phonics, 2009.
Publicado em 19 de maio de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
SOUSA, Rafael Rossi de. Escrita de autobiografia no 5º ano do Ensino Fundamental: um relato de experiência. Revista Educação Pública , v. 20, nº 18, 19 de maio de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/18/escrita-de-autobiografia-no-5-ano-do-ensino-fundamental-um-relato-de-experiencia
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