Práticas de letramento nas famílias de duas crianças com síndrome de Down
Idelma Divina da Silva
Mestranda em Língua, Literatura e Interculturalidade (UEG - câmpus Cora Coralina), fonoaudióloga, licenciada em Letras Português/Inglês
Ao longo da história da humanidade, a pessoa com deficiência foi tratada de diversas formas, conforme a noção de humanidade que a sociedade experimentava. Estudos apontam que as crianças portadoras de deficiências foram vistas como “anjos” ou “demônios”. Somente com o advento da Medicina é que essas pessoas encontraram um lugar na sociedade, implicadas sempre às patologias e às necessidades de cuidados especiais no contexto familiar e social (Pessotti, 1984).
Já a inclusão das pessoas com deficiência nas escolas regulares é recente, data da década de 1990, após os trabalhos que culminaram na Declaração de Salamanca, que trata dos princípios, política e práticas em educação especial, aprovada por aclamação na cidade de Salamanca, Espanha, no dia 10 de junho de 1994. Essa inclusão está ancorada em leis que preveem a participação de pessoas deficientes em atividades educativas da alfabetização à universidade, cabendo à escola e à família se adequar às necessidades dos alunos, que variam das adaptações físicas e arquitetônicas aos métodos de alfabetização.
Nesse cenário, inclui-se a participação da criança com síndrome de Down, que, por possuir necessidades de apoio escolar para o aprendizado da leitura e escrita e de incentivo à socialização dentro e fora da sala de aula, exige um olhar diferenciado. Devido às dificuldades de atenção, memória, cognição, linguagem e socialização geral, as atividades de escolarização dessas crianças são singulares, devendo cada caso ser analisado isoladamente. O aprendizado da leitura e da escrita e o uso funcional dessas competências são ações que acontecem tanto no seio escolar como no ambiente familiar.
Os estudiosos da área de letramento são unânimes em afirmar que as práticas de letramentos se iniciam em tenra idade, bem antes do ingresso ao universo escolar (Street, 2010; Kleiman, 2002; Rojo, 2009). Dessa forma, essas práticas em ambientes informais acontecem também no seio familiar, onde se configuram hábitos e costumes que envolvem várias ações de letramento que irão desencadear as primeiras atividades da criança com a língua escrita. Nesse sentido, um problema se apresenta: segundo Carter (1995), há uma diversidade de organizações do núcleo familiar, e as famílias vivenciam ciclos que as constituem; a chegada de uma criança especial é uma marca de especificidade, exigindo do núcleo familiar vivências particularizadas.
Por apresentarem desenvolvimento mais lento e dificultoso, as atividades de letramento das crianças com síndrome de Down devem ser mais intensas e repetitivas, pois o trabalho pedagógico deverá lidar com déficits de memorização, distúrbio fonético-fonológico, processamentos verbais alterados, alfabetização lenta. Nesse sentido, o ambiente familiar precisa adaptar-se às necessidades especiais da criança ao promover as primeiras práticas de desenvolvimento da linguagem oral e de acesso ao uso dos letramentos que auxiliam na entrada do mundo gráfico. Porém nem sempre as famílias estão atentas à importância de vivenciar essas práticas, mostrando-se como um “outro” pouco disponível para o papel interativo.
Neste estudo, analisamos o contexto familiar das crianças M., de seis anos, e L., de doze anos; ambas possuem síndrome de Down. M. apresenta atraso significativo de linguagem e alterações fonoarticulatórias; encontra-se no 1º ano do Ensino Fundamental em escola pública, possui professora de apoio, faz equoterapia uma vez por semana e terapia fonoaudiológica pelo SUS, onde se trabalham aspectos relacionados à linguagem oral, escrita, comunicação global e aprendizado geral e psicopedagogia também uma vez por semana.
L. encontra-se matriculada no 5ª ano do Ensino Fundamental em escola pública, possui professora de apoio, apresenta distúrbio fonoarticulatório, nível inicial de alfabetização; reconhece algumas letras, sabe escrever o nome. Faz terapia fonoaudiológica uma vez por semana no SUS.
As observações que este estudo se propõe relacionam-se à identificação das práticas de letramento vivenciadas por M. e L. no contexto familiar, como manuseio de livros, contação de histórias, usos de tecnologias de comunicação, manipulação de produtos de uso familiar e demais elementos gráficos e comunicativos que fazem parte dos costumes e hábitos do grupo familiar. A proposta é analisar o contexto familiar em detrimento das exigências de letramento na escola formal, compreendendo a realidade linguística, oral e escrita em que M. e L. se encontram no momento da pesquisa.
O letramento fora do contexto escolar é algo natural e obedece ao fluxo de interesses e movimentação sociocultural dos grupos observados, ou seja, cada grupo familiar opera com instrumentais linguístico-cognitivos que representam suas atividades cotidianas.
Assim como as práticas não escolares de letramento são relevantes para o ensino da escrita no contexto dos projetos de letramento, também a investigação de práticas locais, igualmente não escolares, é relevante para melhor entender a problemática de ensino da língua escrita a grandes parcelas da população brasileira (Kleiman, 2010, p. 388).
O grupo familiar é um agente de letramento no qual a prática de letramento pode ser promotora de hábitos e costumes que favorecem a leitura e a escrita. Entende-se que a família é a responsável pela formação completa da criança com síndrome de Down, o que envolve também a conquista das habilidades de leitura e escrita, pelos estímulos recebidos em casa, tanto os diretos como os indiretos. A par dessas evidências, este estudo se permitiu adentrar no universo familiar e eticamente registrar algumas das práticas e usos da leitura e escrita. Isso porque parte-se da premissa de que a criança com síndrome de Down necessita de mais estímulos que a criança com desenvolvimento normal, e, para que esses eventos aconteçam no ambiente familiar, é necessário que o grupo familiar esteja preparado e tenha disponibilidade para assumir tais responsabilidades.
Fundamentação teórica
É sabido que em alguns países a prática de letramento formal pode acontecer dentro do ambiente familiar, porém esta não é ainda a realidade nossa no Brasil. Nos EUA, por exemplo, o homeschooling é legalizado e o Estado reconhece como válidas as práticas formais de ensino dentro do contexto familiar, ressalvado o cumprimento de procedimentos necessários. Para os brasileiros, porém, o letramento das crianças é uma obrigação do Estado ou das instituições formalmente instituídas para fins educativos. Neste estudo, não se pretende discutir a legalização ou não da educação formal domiciliar. Ao contrário, parte-se da premissa de que à escola é dada a obrigatoriedade desse ensino formal. Sobretudo, o processo de alfabetização. No entanto, constata-se que a família, com seus hábitos e costumes, possui um papel formador e incentivador das práticas de letramento. Essa visualização contribui com reflexões que favorecem essas práticas com o intuito de auxiliar primordialmente a formação desses hábitos de letramento.
Soares (2003) diz que a aprendizagem da leitura e escrita transforma o sujeito nos níveis social, cultural, cognitivo, linguístico e humano. Para a autora, é importante destacar, sobretudo, a diferença entre alfabetização e letramento. Alfabetização é a capacidade de ler e escrever textos dos mais simples aos mais complexos; o letramento pressupõe a alfabetização e acrescenta a ela a capacidade de o sujeito usar socialmente essas habilidades e competências.
No âmbito familiar, é possível detectar práticas de letramento que se coadunam com as atividades desenvolvidas na escola, porém acontecem naturalmente, sem a intenção direta de alfabetizar ou de educar para ler e escrever. Nesse sentido, a interação escola-família pode ser problematizada para que as práticas e eventos de letramento sejam favoráveis à formação do aprendiz.
Segundo Marcuschi, ao observarmos as práticas de letramento circulantes no contexto familiar, é importante indagar
para que se usa a escrita e a leitura em casa? Não resta dúvida de que leitura & escrita é uma prática comunicativa interessante e proveitosa em muitos sentidos. Há o jornal e a revista para serem lidos. Há cartões, cartas pessoais para serem escritos. Há cheques para assinar, contas a fazer, recados a transmitir e listas de compras a organizar. Há ocorrências a registrar (os famosos livros de todos os condomínios). Há histórias a contar antes de dormir. As famosas fofocas do dia a pôr em ordem etc. (Marcuschi, 1995, p. 122).
Galvão (2004, p. 141 apud Tedesco, 2017) entende que as práticas e eventos de letramento ocorridos no ambiente familiar são significativos a ponto de se sobrepor à escolaridade ou à própria profissão dos membros do grupo familiar. De igual modo, encontramos trabalhos de pesquisadores que buscam compreender essas práticas para auxiliar os fins educacionais formais. Exemplo dessa relação família-escola pode ser percebido nos conselhos escolares, em que a família é convocada a comparecer à escola para discutir o desempenho dos filhos em relação ao processo de alfabetização, e não ao processo de letramento. Nesse sentido, a impressão que se tem é de que a escola pede ajuda para alfabetizar, porém não orienta a família no que se refere ao desenvolvimento de hábitos e costumes que favoreçam a prática de letramento.
A criação de pequenos hábitos, como ler um livro, uma revista em quadrinhos, desenhar em papel colorido, assistir a um filme, refletir sobre as histórias de desenhos animados e outros, pode se configurar como evento facilitador do processo de letramento, e a família faz isso espontaneamente, sem auxílio da escola.
Nessa perspectiva, quando se fala em educação da criança especial outros fatores comparecem, dentre eles a necessidade do professor de apoio que auxilia sobremaneira na alfabetização das crianças. Além das atividades de reforço escolar e extraclasses, como as terapias. A estimulação, nesse caso, é intensiva e perpassa vários campos de habilidades cognitivas, incluindo a aquisição da linguagem oral e escrita. Entretanto, a criança com síndrome de Down experimenta o processo de alfabetização de forma mais lenta. Rojo (2010, p. 23) explica a alfabetização da seguinte forma:
Alfabetizar-se pode ser definido como a ação de se apropriar do alfabeto, da ortografia da língua que se fala. Isso quer dizer dominar um sistema bastante complexo de representações e de regras de correspondências entre letras (grafemas) e sons da fala (fonemas) numa dada língua; em nosso caso, o português do Brasil.
A tarefa de alfabetizar, de tornar o aluno capaz de ler textos dos mais variados gêneros, é da escola, já que possui tecnologias de ensino para realizar essa tarefa. Porém, uma questão nos interpela e provoca reflexão: as crianças especiais estão aprendendo a ler e escrever nas escolas inclusivas? Quais as propostas de alfabetização que essas escolas têm oferecido aos alunos especiais?
Rangel (2010, p. 173-186), em seu artigo Alfabetização e síndrome de Down, diz que, depois de observar o aprendizado de uma criança com síndrome de Down durante o período de oito meses, percebeu que ela passa pelos mesmos estágios propostos pelos alfabetizadores Ferreiro e Teberosky. Segundo ela, é fundamental para o professor alfabetizador compreender as hipóteses de escrita que as crianças costumam experimentar durante o período de aquisição da escrita. Para ela, o professor não precisa se preocupar se está usando ou não o melhor método; deve se ocupar em compreender a psicogênese da alfabetização e promover vivências que possibilitem a experiência com a leitura e a escrita.
Essas questões remetem a outras que configuram esse cenário educacional, e a primeira delas é a necessidade de saber o papel da família no percurso educativo formal dos filhos especiais. A família deve procurar professores de reforço fora do ambiente escolar formal para auxiliar na alfabetização? Será que aos terapeutas de linguagem e aos outros tantos terapeutas caberia o papel de assessorar o processo de alfabetização dessas crianças? Essas questões ficam em aberto por enquanto, pois exigem uma ressignificação do papel da escola na aprendizagem da leitura e da escrita da criança com necessidades especiais.
Mesmo que a alfabetização e o letramento da criança com síndrome de Down encontrem obstáculos a serem superados e isso implique mais tempo dedicado à alfabetização e ao letramento, não se perde de vista que à escola é designada à função de alfabetizar.
As diferentes correntes de estudo de letramento e alfabetização oferecem condições de pensar leitura e escrita ou oralidade e letramento com base nas práticas e eventos de uso. Segundo Kleiman (1995 apud Rojo, 2009), é possível pensar o letramento em dois modelos: um chamado de modelo autônomo, relacionado aos resultados e efeitos individuais (cognitivos) e sociais (tecnológicos, de progresso e de mobilidade social), e outro, chamado de modelo ideológico, no qual se afirma que as práticas de letramento são sociais e culturalmente determinadas.
Em consonância com Kleiman (1995), acreditamos que a escola, ao alfabetizar o aluno com síndrome de Down, está trabalhando o modelo autônomo ao possibilitar exercícios cognitivos, de atenção e sociais ao permitir o acesso a textos e interações com o ambiente em que se vive, por meio da leitura de mundo que o alfabetizado conquista. Trabalha-se também com o modelo ideológico ao escolher a metodologia de alfabetização e promover a inclusão social e escolar da pessoa com síndrome de Down junto às práticas dos demais alunos.
De outro lado, Marcuschi (1995) enfatiza a importância de trabalhar a linguagem tanto na oralidade como no letramento. Esse autor diz que há intrínseca relação entre oralidade e letramento, ambas indissociáveis e tratadas como práticas sociais. Para ele, há quatro tendências atuais no estudo da fala e escrita: a primeira vê essa relação como dicotômica; a segunda analisa os aspectos fenomenológicos, cognitivos e antropológicos; a terceira percebe essa relação como baseada em questões variacionistas, enfatizando os processos educacionais como preponderantes; e a quarta tendência investiga as relações interacionais, interpretando fala e escrita como um continuum balizado por fatores interativos e socioculturais.
O letramento é o uso da escrita na sociedade; pode ir desde uma apropriação mínima da escrita, tal como o indivíduo que é analfabeto, mas sabe o valor do dinheiro, sabe o ônibus que deve tomar, sabe distinguir as mercadorias pelas marcas e sabe muita outra coisa, mas não escreve cartas nem lê jornais (Marcuschi, 1995, p. 126).
Crianças que crescem no modelo escolar interativo vivenciam o processo de aquisição e desenvolvimento de leitura e escrita fazendo parte do contexto de vida, incluindo aí as relações com as diferentes práticas de linguagem. Sabe-se que letramentos referem-se a uma diversidade de eventos que implicam o uso da leitura e escrita e que ocorrem não somente no ambiente escolar, mas em toda interação social da criança. Segundo Rojo (2009, p. 241), “pesquisas apontam para um processo de continuidade bem-sucedida entre as experiências escolares e as familiares”, o que nos reorientou a empreender essas discussões sobre práticas de letramentos formais (escolares) e práticas de letramentos em ambientes informais (familiar).
A família da criança com síndrome de Down nesse contexto é um agente privilegiado para a experimentação de eventos e práticas de letramento, pois é lá que a criança coloca em relevo seus conhecimentos orais, de leitura e escrita ao participar das situações espontâneas, como, por exemplo, a leitura de uma situação presente nas folhas do almanaque infantil impresso no jornal de domingo.
Há um lugar social a ser conquistado na vida por cada indivíduo, e para atingi-lo é necessário o exercício do letramento, que é entendido não somente como prática de ler e escrever fluentemente a própria língua materna, mas como interação com o social de forma funcional. Esse lugar social é representado pela conquista da independência ocupacional (saber se cuidar, morar sozinho, trafegar pelas cidades, ter um trabalho, se casar, ter uma família etc.). Essas conquistas fazem parte do trabalho de superação e retrata o desejo de muitas famílias em relação ao(à) filho(a) com síndrome de Down.
Existe um discurso vigente nas sociedades protecionistas das pessoas com déficit intelectual congênito ou adquirido. E esse discurso refere-se ao exercício da inclusão das diversidades. Dessa forma, a batalha por exercícios e práticas de letramento é uma batalha do grupo familiar e em especial da própria genética da pessoa com síndrome de Down, porque há vários espectros de comprometimento cognitivo-linguístico e de aprendizagem. Nenhuma pessoa com a síndrome é idêntica a outra. Há entre elas uma característica própria, que é a individualidade. E é essa individualidade que fará a marca decisória nos processos de identidade. Segundo Street, a configuração da identidade está conectada às práticas de letramento:
existe frequentemente uma relação fundamental entre os campos ideológicos de pessoalidade e letramento. O que vem a ser uma pessoa, a ser moral e a ser humano em contextos culturais específicos é muitas vezes representado pelo tipo de práticas de letramento em que a pessoa está comprometida (Street, 2006, p. 469).
Nesse sentido, a inclusão social declarada socialmente é um exercício da família, da escola e dos diferentes grupos em que a pessoa transita e se constitui social e individualmente. O ambiente familiar, dessa forma, necessita melhores reflexões e possíveis mudanças para assumir seu papel não de alfabetizador, mas de educador primário e constante.
Uma criança que compreende quando o adulto lhe diz “olha o que a fada madrinha trouxe hoje!” Está fazendo uma relação com um texto escrito, o conto de fadas. Assim, ela está participando de um evento de letramento (porque já participou de outros, como o de ouvir uma historinha antes de dormir); também está aprendendo uma prática discursiva letrada e, portanto, essa criança pode ser considerada letrada, mesmo que ainda não saiba ler e escrever (Kleiman, 1995, p. 18).
As práticas discursivas presentes nos ambientes familiares são formadoras e, sendo assim, merecem não apenas ser refletidas como também estudadas, analisadas e ressignificadas. Há frequentemente críticas sobre o estudo da família; segundo Street (2010), pensa-se que estudar os letramentos no ambiente familiar seja um gesto romântico, já que as interferências, mudanças e possíveis tecnologias implicadas no exercício do letramento sofrem influências das condições socioculturais, e melhorar as práticas de letramento implica reorganizar o núcleo familiar estudado.
Metodologia
O objetivo deste estudo é identificar e refletir sobre as práticas de letramento em uso na história de vida de duas crianças com síndrome de Down para que a partir daí possa ser debatida a influência dessas práticas para o processo de escolarização.
Realizou-se uma investigação qualitativa, enquadrando-se como estudo de caso. Segundo Cozby (2003, p. 133), “são úteis para informar-nos sobre condições raras que não podem ser estudadas de outra maneira”. É uma modalidade de pesquisa que parte do particular para o universal ao fornecer a descrição de um indivíduo em determinada situação.
Nesse sentido, uma das preocupações deste estudo foi manter a reflexão do geral (das teorias) para os específicos, ou seja, para as práticas e usos do indivíduo e do grupo familiar. Os dados foram coletados com a aplicação de um questionário-entrevista composto de doze questões objetivas; conversas dirigidas; observações do contexto familiar. A Questão 1 buscou a informação sobre a entrada da criança no seio familiar, a notícia da gravidez; as Questões 2 e 3 pretenderam averiguar quando veio a notícia de que a criança tinha uma síndrome que iria determinar muitos fatores em sua vida e na dinâmica familiar; as Questões 4 e 5 procuraram levantar dados sobre o contexto sociocultural da família e sobre o desenvolvimento global da criança. As questões de 6 a 15 pretenderam abordar as práticas de letramento propriamente ditas e a consciência da família sobre a importância desses eventos e práticas para o processo de desenvolvimento geral e do letramento da criança.
Além das entrevistas, realizamos o registro fotográfico dos instrumentos de letramento em relevo no ambiente familiar, como: livros, brinquedos pedagógicos, revistas, diário, vídeo, tablet, celulares e outros.
Todas essas ferramentas objetivaram compreender a influência das interações comunicativas no ambiente familiar de M. e L., além de verificar a consciência das famílias sobre o importante papel que desempenham nesse processo de letramento e alfabetização.
As discussões contaram com o apoio de pesquisa bibliográfica, que se preocupou em fundamentar e refletir os processos de letramento em ambientes informais e formais, bem como destacar as particularidades existentes na aprendizagem da criança com síndrome de Down.
Resultados da pesquisa
A proposta deste estudo foi identificar as práticas de letramento vivenciadas por duas crianças com síndrome de Down em seus ambientes familiares, com o intuito de verificar a formação de hábitos e costumes de leitura e escrita.
Verificou-se que, entre as práticas de letramento de M. e as de L. há uma diferença fundamental em relação à intencionalidade de explorar essas práticas diárias para fins de estimulação da criança. Na família de M., identificou-se a presença de proteção da criança e isolamento das atividades vivenciadas pelo grupo familiar. A mãe disse que o sobrinho de M. de mesma idade possuía um tablet e que M. gostava muito de mexer, mas a mãe nunca teve a iniciativa de adquirir um por não saber se seria útil para M. Apesar de a mãe relatar que a comunicação dos familiares com M. é boa, observamos dificuldades do grupo familiar em compreender o que M. queria ou pedia; às vezes a mãe dizia: “ah, tá, agora não” sobre determinada questão em que M. tentava se expressar como: “bóa aqui”, apontando para os brinquedos. A mãe pareceu não compreender e respondeu aleatoriamente, ganhando tempo ou simplesmente deixando para depois. É importante ressaltar que M. possui muitas dificuldades articulatórias, se expressa por grupos de duas ou três palavras no máximo.
Essas práticas não foram observadas no contexto familiar de L., no qual há preocupação para que L. participe dos eventos da casa, colaborando. Isso pôde ser observado quando a mãe de L. utilizou as revistas Avon e Natura para que a filha escolhesse os produtos, marcando os de sua preferência, identificando os preços etc. Ou quando pediu ajuda de L. na confecção de um bolo, solicitando que pegasse os ingredientes ou que escrevesse em um papel a receita do bolo a ser feito.
A seguir apresentamos dois quadros; o primeiro refere-se aos eventos de letramento de M. e o segundo aos eventos de L., ambos coletados nos ambientes familiares.
Quadro 1: Demonstrativo das atividades de letramento de M., de 6 anos, no ambiente familiar
Categorias |
Práticas de letramento |
Manuseio de aparelhos digitais |
Celular aleatoriamente. Não gosta de desenhos na TV. Vê vídeos de músicas na TV ou no celular. |
Contagem de histórias |
Material didático da escola, quando há. |
Escrita |
Tarefa da escola. |
Reconhecimento de marcas de roupas e acessórios |
Não demonstra interesse. |
Meios de transporte |
Moto Honda ou carro Fiat. |
Reconhecimento de alimentos embalados |
Toddy, iogurte, refrigerantes, suco. |
Reconhecimento de lugares na cidade |
Reconhece Banco do Brasil, Caixa Econômica, Correios, Cacau Show. |
Reconhecimento de dinheiro |
Identificou a moeda. |
Uso de aparelhos para se comunicar |
Não faz uso de instrumentos de tecnologia para se comunicar. Usa violão para cantar. |
Fonte: Dados coletados em entrevista e observações da pesquisadora in loco.
Segundo estudos da área de aquisição da linguagem, as crianças aprendem em primeiro momento os substantivos, seguidos dos verbos e posteriormente dos pronomes e predicados. A relação entre a aquisição da linguagem e a aquisição da escrita é intrínseca e, apesar da primazia de oralidade, fala e escrita em tenra idade são vivenciadas simultaneamente no ambiente familiar, de maneira espontânea. Segundo Tomasello (2010), as crianças começam a compreender símbolos linguísticos produzidos por adultos quando são capazes de participar com adultos do conceito do quadro de atenção conjunta para atender a suas intenções comunicativas.
Nesse sentido, a participação dos adultos ou componentes do grupo familiar no processo de aquisição e aprendizagem da linguagem oral é fundamental; para a linguagem escrita, a importância recai sobre os modelos apreendidos como hábitos e costumes da família, além de se observar a importância de atividades colaborativas e interativas do núcleo familiar.
Observamos que M. tem sido pouco requisitado nas interações familiares, provavelmente devido ao atraso de linguagem/fala, que prejudica tanto a interação quanto o desempenho nas atividades sociointerativas e comunicativas. Há, entretanto, a preocupação da família com o desenvolvimento de M. ao procurar por terapeutas e estimular a música via atividades com o violão, que M., apesar de não saber tocar, manuseia com desenvoltura, cantando do seu jeito as músicas que ouve na TV.
Participar de atividades musicais é um exemplo de letramento trabalhado no contexto familiar de M., que necessita, além de explorar o violão, aprender as notas musicais, memorizar as letras das músicas, trabalhar toda a corporeidade implicada na performance do canto.
Kleiman (2014) alerta sobre as analogias presentes nas diferentes práticas de letramento; no caso de M. é possível descrever várias atividades que o pequeno aprendiz terá que realizar para tocar violão e cantar; esse engajamento com a atividade é tão necessário quanto as atividades que já desenvolve na escola formal sentado numa cadeira escolar.
Passamos agora a observar as atividades de L. no ambiente familiar.
Quadro 2: Demonstrativo das atividades de letramento de L., 12 anos, no ambiente familiar
Categorias |
Práticas de letramento |
Manuseio de aparelhos digitais |
Celular, tablet, computador, TV, ar-condicionado. |
Contação de histórias |
Livros literários, material didático da escola. |
Escrita |
Almanaque infantil, jornais e manchetes, revistas de moda, revistas Avon e Natura, encartes publicitários, contas de água, energia, telefone, Detran etc. |
Reconhecimento de marcas de roupas e acessórios |
Lilica Ripilica, Hering, Pool, Moleca, Petit Jolie etc. |
Meios de transporte |
Fiesta, D20, Hilux, Onix, Palio etc. |
Reconhecimento de alimentos embalados |
Toddy, iogurte, Maisena, massa de bolo, refrigerante, suco Delvalle etc. |
Reconhecimento de lugares na cidade |
Chicabon Sorveteria, Chicabacana Lanchonete, Supermercado Cristal, Cacau Show, Banco do Brasil, Rua 25, Clube AABB etc. |
Reconhecimento de dinheiro |
É dinheiro. É moeda. |
Uso de aparelhos para se comunicar |
Telefone celular, telefone fixo, WhatsApp, vídeo do Youtube. |
Fonte: Dados coletados em entrevista e observações in loco.
É possível perceber que há grande variedade de estímulos oriundos dos eventos de letramento no grupo familiar de L. e colaboração de L. na realização dessas atividades, porque a família provoca essa participação convidando L. a se engajar nos eventos. É interessante observar também que L. ainda não concluiu a alfabetização; encontra-se na fase silábica (Figura 1), e que essas vivências e práticas espontâneas contribuem para o exercício de pertencimento ao grupo familiar. Esse fato é um dos primeiros pontos a ser levantado neste estudo ao compreendermos que a família (seja ela de que configuração for) é a base primeira para a reprodução de modelos interativos. A mãe relata que L. possui boas relações interativas na escola, sente que a filha é querida pelos colegas de sala, que nos eventos da escola há interesse de que L. participe com os demais alunos.
Saber lidar com as interferências físicas e cognitivas que podem estar presentes nas crianças com síndrome de Down significa minimizar o impacto que essas interferências podem criar sobre a leitura que o Outro faz da criança e sobre a aquisição de sua linguagem. Por exemplo, devido ao baixo tônus muscular e à dificuldade de manter o foco do olhar, [...], a criança pode ter maior dificuldade em estabelecer contato pelo olhar, mas isso não quer dizer que ele não tenha interesse em interagir com pessoas e com os objetos (Schwartzman, 2003, p. 206).
Um dos aspectos defendidos pelo discurso de inclusão escolar é de que as atividades pedagógicas e escolares em geral devem prever a participação da pessoa com síndrome de Down e que, por estarem ao lado em interação com crianças de desenvolvimento típico, aconteça a aprendizagem por imitação, referência ou colaboração. Desse modo, os professores e demais alunos da escola inclusiva possuem papel ativo na aprendizagem global do aluno com síndrome de Down. Cabe aos professores potencializar essas interações no ambiente formal de letramento.
O que se aprende na escola é partilhado em outros ambientes, como no consultório terapêutico. Isso pode ser percebido quando se participa com a criança em busca de interações significativas. Aos processos terapêuticos se aplica a responsabilidade de ampliar as possibilidades de reorganização do pensamento, da linguagem e da ação. A seguir ilustramos a escrita espontânea da criança L. realizada em consultório de fonoaudiologia; sugerimos que tal escrita seja comparada à escrita-cópia, estimulada pela mãe de L. em ambiente familiar.
Figura 1: Escrita espontânea de L.
É possível perceber que L. grafa algumas palavras encadeadas aleatoriamente, sem sentido, sem significado. Após a escrita, L. endereça a carta à prima Eva. A criança escreve o nome Eva várias vezes. Essa escrita possibilita mostrar o quanto L. encontra-se engajada com a língua escrita, conhecendo a necessidade de encadear muitas palavras para chegar a um texto, porém mostra também que ainda não dominou a relação entre letra e som, letra e significado, mesmo exercitando junto aos familiares atividades de leitura e escrita, como ler a revista Avon, identificar preço e nome dos produtos ou nas atividades com telefone de que tanto gosta, como mandar mensagens para a prima pelo WhatsApp,L. neste caso usa figuras e palavras sem sentido, grava áudio, mostrando compreender o processo comunicativo que o aplicativo possibilita.
Em relação ao uso de tecnologias digitais, L. mostrou conhecer os comandos da TV, do aparelho de DVD e do smartphone; faz vídeos dela mesma e de momentos vivenciados, tira selfies e compartilha imagens e palavras escritas para os membros dos grupos dos quais faz parte. Não o faz com muita frequência, não consegue se manter em diálogo por muito tempo; segundo a mãe, é mais uma forma de se mostrar presente e conectada, usando os recursos multimídia disponíveis.
No caso de M., a família reforça em casa o que é aprendido na escola, porém não programa sistematicamente ações colaborativas. A seguir está um registro do material de uso de M. em seu ambiente familiar. Há brinquedo pedagógico, carrinhos, velocípede, violões; o material de leitura e escrita consiste em alguns livros de literatura clássica, que a família acabou de adquirir por incentivo da fonoaudióloga, e o livro escolar.
M., como foi dito, não faz uso de celulares, tablet ou computador, porque a família considera que ele é ainda muito criança e essas atividades podem influenciar negativamente seu desenvolvimento, pois não se pode controlar tudo o que as crianças veem na internet.
Figura 2: Material de uso de M.
Outro aspecto observado no contexto de M. é a discrepância entre as respostas sociocognitivas de M. e as atividades pedagógicas trabalhadas pela escola, o que sugere urgente necessidade de revisão e adaptações curriculares que atendam às reais necessidades da criança.
M. não faz leitura gráfica, mas está aprendendo a ouvir e contar histórias infantis; a família tem se empenhado nessa tarefa por acreditar que possa contribuir com o desenvolvimento da fala, da linguagem e da aprendizagem em geral. A família procura controlar o que pode e o que não pode ser interessante para M. aprender durante cada fase de seu percurso.
Figura 3: Material escolar de M.
A seguir apresentaremos a escrita de uma receita de bolo da criança L., incentivada pela mãe durante uma atividade em casa. L. auxiliou na identificação dos ingredientes e, ao final, realizou a escrita, guardando o registro para uso posterior. A mãe de L. diz que a filha, apesar das dificuldades de escrita, copiou a receita com facilidade, pedindo à mãe auxílio para soletrar alguns itens da receita (Figura 4). Outra iniciativa de L. foi solicitar um diário pessoal no qual possa registrar atividades, pensamentos e questões vividas no cotidiano. A mãe comprou o diário e agora iniciou o trabalho de ajuda nos registros que se intercalam entre desenhos e algumas palavras soltas.
Figura 4: Escrita-cópia por L.
Essas práticas nos lembram a importância de levar para a sala de aula a compreensão de que a gramática, como diz Tomasello (2010), em vez de ser regida por regras abstratas e imanentes, é constituída por uma relação que agrega nossa experiência com a estrutura linguística para a produção da linguagem.
Outro aspecto importante a observar nesses contextos é que, apesar de as atividades de letramento estarem ainda muito atreladas ao que a escola orienta, as famílias, mesmo sem o conhecimento técnico do que venha a ser letramento, praticam atividades que auxiliam no engajamento sociocultural das crianças, como tocar violão, ler livros, escrever em diário etc.
Autores alertam para o papel relevante que as escolas têm, de promover o letramento digital.
As três formas diferentes de trabalhar – a aula tradicional melhorada, a aula tradicional fantasiada de digital e a aula digital – ocorrem neste milênio e, portanto, são todas contemporâneas, pois estão relacionadas com exigências de novos modos de trabalho para atender novas demandas sociais de sujeitos reais, que vivem no mundo da cultura digital e da cultura impressa e sabem que estão nas margens em relação àquilo que é em geral socialmente valorizado (Kleiman, 2014, p. 80).
Em consonância com a proposta de trabalho descrita, o que percebemos no contexto familiar de M. e L. é que há preocupação de que as crianças sejam alfabetizadas, e à escola é dado todo o mérito por essa conquista. Mesmo que a escola não tenha solicitado dos pais que estimulem seus filhos com atividades de leitura ou mesmo com práticas de letramento digital, como o uso de jogos no tablet ou no computador, o que nos leva a questionar o trabalho realizado com essas crianças na escola inclusiva é: ou a escola não utiliza as três modalidades propostas por Kleiman (2014) ou as crianças estão recebendo orientação diferenciada que as afasta desses recursos.
Do mesmo modo, entende-se que a escola e família devem dialogar em prol do desenvolvimento das crianças com síndrome de Down, propondo atividades que sejam interessantes, motivadoras e possibilitem a aprendizagem e o engajamento social delas.
Considerações finais
Esta pesquisa teve a intenção de visualizar o ambiente familiar das crianças M. e L., ambas com síndrome de Down, com o intuito de verificar o nível de colaboração comunicativa presente nos ambientes de letramento familiar. Apesar de haver diferenças nas idades das crianças, o foco recaiu nas construções sociointerativas, ou seja, naquilo que cada uma em seus ambientes experimenta espontânea e cotidianamente. Partimos da afirmação de que, por possuírem síndrome de Down e com ela atrasos de linguagem e alterações expressivas da fala, essas crianças necessitam de mais estímulos em seu dia a dia. Entendeu-se também que a família da criança com síndrome de Down é peculiar, vivencia situações próprias a essa situação, como as visitas frequentes a médicos e terapeutas, reforço escolar, professor de apoio, necessidade de mais cuidados, de segurança e aprendizagem lenta da criança.
Observamos que no ambiente familiar de L. há mais estímulos e o chamamento para que participe das atividades do grupo familiar; mesmo assim, L. ainda não se encontra alfabetizada, o que nos leva a questionar os métodos trabalhados na escola formal. Do mesmo modo, observamos discrepâncias entre o nível de compreensão e expressão oral de M. e as atividades de escrita sugeridas pela escola.
O letramento, além de exercitar práticas de leitura e escrita, promove formas diversificadas de interação com o mundo, permite o exercício da constituição da identidade dentro de uma possibilidade de existência baseada nas comunicações e na capacidade de perceber a realidade e fazer parte dela ativamente. Desse modo, além da insistência em adquirir a língua nas suas modalidades oral e escrita, a escola inclusiva deve se preocupar com as práticas gerais, incluindo o letramento digital, trabalhadas com as crianças ditas especiais; deve também se ocupar da formação global da pessoa com síndrome de Down, do exercício de cidadania, da interação sociocultural. Entendemos que tanto a família de L. como a de M. encontram-se disponíveis para interagir e enfrentar essa batalha.
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Este artigo resume o trabalho final apresentado como exigência da disciplina Tópicos em Estudos do Letramento, ministrada pela professora doutora Carla Conti de Freitas, no Programa de Pós-Graduação Língua, Literatura e Interculturalidade (Poslli), da Universidade Estadual de Goiás/Câmpus Cora Coralina.
Publicado em 19 de maio de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
SILVA, Idelma Divida da. Práticas de letramento nas famílias de duas crianças com síndrome de Down. Revista Educação Pública , v. 20, nº 18, 19 de maio de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/18/praticas-de-letramento-nas-familias-de-duas-criancas-com-sindrome-de-down
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