“Espessas nuvens”: uma reflexão analítica sobre os diversos territórios nos discursos adotados na criação do IHGB

Gabriel Costa de Souza

Licenciando em História (UFRRJ), bolsista Pibid como membro discente do colegiado do curso de História

É absurdo aferrar-se a fronteiras administrativas do passado, como, por exemplo, ao modo de certos eruditos, as das circunscrições eclesiásticas [...]; é preciso que a zona escolhida tenha uma unidade real; não é necessário que tenha fronteiras naturais dessas que não existem senão na imaginação dos cartógrafos da velha escola (Bloch, 1978, p. 48-49).

A construção do processo de disciplinarização do ensino-aprendizagem da História no Brasil deu-se em territórios que vinculavam a diversidade regional, cultural, social e econômica dos protagonistas – os indivíduos participantes do processo de construção da História – a um funil domesticador, hierarquizador e socializador produzindo a homogeneização dos pensamentos nos diversos territórios – termo que define os espaços (físicos ou não) ocupados pelos indivíduos no processo de construção da História. Tal processo é visível na origem da disciplinarização do ensino da História no Brasil com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838 pela Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, que era

encarregada, como em outras nações, de eternizar pela história os fatos memoráveis da pátria, salvando-os da voragem dos tempos e desembaraçando-os das espessas nuvens que não poucas vezes lhe aglomeram a parcialidade, o espírito do partido e até mesmo a ignorância (Revista do IHGB, tomo I, 1839, p. 9).

A perspectiva apresentada permite levantar reflexões de como se define o que são “fatos memoráveis” e o que não são, o que é “ignorante” e o que não é e, sobretudo, o que são as “espessas nuvens” e as que não são. Sendo assim, é possível observar que existem padrões que, já nos primórdios da disciplinarização do ensino da História no Brasil, determinavam os modelos de ensino-aprendizagem que domesticavam, hierarquizavam e socializavam a diversidade regional, cultural, social e econômica dos protagonistas.

A estruturação do presente artigo tem como objeto de investigação as escolhas discursivas adotadas no processo de padronização e desterritorialização do ensino de História no decorrer do seu movimento de disciplinarização no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

A análise “Glória nacional”: o IHGB como um mecanismo de formação patriótica se concentra em analisar os documentos do IHGB, especialmente as atas de fundação, para compreender se os discursos adotados em suas produções, baseadas no modelo historiográfico produzido pela instituição, são instrumentos de asseveração patriótica e, consequentemente, de reafirmação de uma identidade nacional. Partindo dessa abordagem, pretendo mapear as escolhas discursivas adotadas nos documentos para compreender quais posicionamentos ideológicos o IHGB cultivava e qual a interferência deles em sua produção historiográfica.

“Glória nacional” e os diversos territórios: o IHGB como mecanismo de formação patriótica

Não se compadecia já com o gênio brasileiro, sempre zeloso da glória da pátria, deixar por mais tempo em esquecimento os fatos notáveis da sua história, acontecidos em diversos pontos do Império, sem dúvida ainda não bem designados. Eis o motivo, Senhores, porque dos membros do conselho da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e também sócios do Instituto Histórico de Paris, participando dos generosos sentimentos dos nossos literatos, se animaram a propor a fundação de um Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Revista do IHGB, tomo I, 1839, p. 9).

A apreciação dos instrumentos metodológicos, da linha ideológica, das perspectivas futuras, enfim, do perfil do IHGB pode parecer à primeira vista um objeto a ser estudado imediatamente nas publicações produzidas por seus associados; entretanto, se faz necessário abranger aquilo que no presente artigo se apresenta como funil domesticador, hierarquizador e socializador – as bases da Revista do IHGB. Com tal perspectiva, o excerto do discurso proferido na inauguração da Revista por Januário da Cunha Barbosa, primeiro secretário perpétuo do Instituto, apresenta uma clara imagem dos objetivos daquela organização que se exibia como a solucionadora do “esquecimento” de “fatos notáveis” que afligiam “o zeloso da glória da pátria”. 

A observação das escolhas discursivas do primeiro secretário do IHGB demonstra especificamente o destaque à construção de uma história nacional – que ocorre “em diversos pontos do Império” – realizada por prósperas ações dos “homens” – os “fatos notáveis” realizados por aqueles que zelam pela “glória da sua pátria”. Ao refletir sobre a linha discursiva adotada pelo secretário do Instituto, é possível levantar questões essenciais na compreensão de que é “no movimento de definir-se o Brasil que se define também o outro em relação a esse Brasil” (Guimarães, 1988, p. 6).

A definição do “outro”, instrumentalizada pelos estudos de Manoel Luís Salgado Guimarães, pode ser observada pela preferência discursiva de Januário da Cunha: “sem dúvida ainda não bem designados” (Revista do IHGB, tomo I, 1839, p. 9). O secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro deixa claro que o objetivo da nova organização é estruturar um novo modelo historiográfico, que tem “a tarefa de sistematizar uma produção historiográfica capaz de contribuir para o desenho dos contornos que se quer definir para a nação brasileira” (Guimarães, 1988, p. 7), o que nos auxilia na compreensão de que os recortes temporais, temáticos e territoriais estabelecidos pelo IHGB podem ser entendidos como um instrumento “legitimador para decisões de natureza política” (Guimarães, 1998, p. 15).

As estruturações de tais afirmações poderiam ser rompidas facilmente com a simples hipótese de que em um discurso para um evento de inauguração o orador poderia ter se expressado mal ou de que, por se tratar de um discurso, não possui nenhum caráter normativo para as publicações; entretanto, tais pressupostos podem ser simplesmente desmantelados com a análise da proposta de fundação do IHGB, que estabelece:

sendo inegável que as letras, além de concorrerem para o adorno da sociedade, influem poderosamente na firmeza dos seus alicerces, ou seja, pelo esclarecimento de seus membros ou pelo adoçamento dos costumes públicos, é evidente que em uma monarquia constitucional, em que o mérito e os talentos devem abrir as portas aos empregos e em que a maior soma de luzes deve formar o maior grão de felicidade pública, são as letras de uma absoluta e indispensável necessidade, principalmente aqueles que, versando sobre a História e a Geografia do país, devem ministrar grandes auxílios a pública administração e ao esclarecimento de todos os brasileiros (Revista do IHGB, tomo I, 1839, p. 5).

O excerto da proposta de fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro corrobora na compreensão do espaço relacional realizado entre o Instituto – “as letras” – e o Estado nacional – “a pública administração”. Tal observação levanta questões primordiais na associação entre a proposta de fundação do IHGB, as nove bases normativas do Instituto e, sobretudo, o discurso de inauguração do secretário da organização. Com isso, fica evidente que funil domesticador, hierarquizador e socializador representa o artifício central nas produções escritas pelos associados na instituição, uma vez que, como veremos mais à frente, respondem a uma demanda de produções alinhadas a uma perspectiva de história patriótica, ilustrada e reparadora.

A análise crítica das três fontes citadas – a proposta de fundação do IHGB, as nove bases normativas do Instituto e o discurso de inauguração do secretário da organização – só pode ser entendida plenamente com a estruturação da lógica intelectual (conceito que define a organização do conjunto de argumentos que chegam a uma determinada conclusão) estabelecida pelos articulistas das instruções do Instituto. Isso posto, proponho a utilização do mapeamento discursivo das fontes e a diagramação conceitual de tais discursos para estruturar uma observação das escolhas narrativas adotadas pelo Instituto – com a sua proposta de fundação e as suas nove bases normativas – e pelo secretário do IHGB no discurso de inauguração.

As normativas basilares do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro datadas de sua fundação nos guiam para os preceitos que definiam o que era o IHGB, quem ocupava os espaços de decisão dentro da associação, que estudos seriam produzidos e, sobretudo, a quem interessava esse novo lócus de poder discursivo. Seguindo tal linha analítica, delimitei como importante mecanismo para a compreensão de tais questionamentos o mapeamento discurso das fontes – a sua proposta de fundação e as suas nove bases normativas –; cheguei a este resultado:

Figura 1: Mapa textual que apresenta a frequência de palavras na proposta de criação do IHGB e suas bases normativas

A Figura 1 demonstra a narrativa adotada na proposta de criação do IHGB e nas noves bases normativas, por intermédio do mapeamento das escolhas discursivas que tal associação decidiu como basilar para sua revista. O mero levantamento da frequência das palavras presentes em tais fontes permite a estruturação de uma conjectura que estabelece a centralidade do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro nas atuações do “fazer história”. É crucial refletir sobre o caráter oficial adotado nas nove bases normativas e na proposta de criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; tais documentos representam a lógica intelectual da associação e de grande parte de seus associados nos seus primórdios. Tal articulação teórico-intelectual só pode ser levada em consideração se contextualizada nos primórdios ideológicos da associação.

Tal proposição só pode ser compreendida se amparada na análise dos resultados do mapeamento discursivo das fontes, que para o presente artigo é instrumentalizada pela definição dos dez termos mais utilizados nas bases do IHGB. A utilização de mecanismos como os propostos para a presente pesquisa apresenta o seguinte quadro:

Tabela 1: Levantamento quantitativo das escolhas discursivas das fontes

Termo

Frequência

“que”

23

“instituto”

11

“auxiliadora”

9

“sociedade”

9

“histórico”

8

“nacional”

7

“membros”

7

“seus”

7

“geográfico”

5

“administrativo”

4

O levantamento quantitativo das escolhas discursivas presentes na proposta de criação do IHGB e nas noves bases normativas permitem notar a centralidade da entidade pela frequência dos termos “instituto”, “histórico”, “geográfico”, “membros”, “sociedade” e “auxiliadora”. Tal centralidade se torna óbvia por se tratar de documentos que abordam a formação do instituto e suas regras basilares de organização, publicação e preservação. Sendo assim, o que se pode analisar em tais objetos de pesquisa é como os termos são estruturados e quais propriedades compõem o cerne de investigação no presente artigo: a disciplinarização do ensino de História.

Para chegar a resultados oportunos para os objetivos da investigação, torna-se fundamental a pesquisa dos termos na construção teórica de uma diagramação conceitual da linha narrativa adotada nas bases do normativas da associação que proponha a delimitação de três propriedades interdependentes para definir o IHGB no processo da disciplinarização do ensino de História: administrativo, patriótico e tributário, como é possível observar no mapa mental abaixo:

Figura 2: Mapa mental que demonstra o modelo historiográfico defendido no discurso de inauguração do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

O processo administrativo de se “fazer história”, ou seja, uma construção de uma História de caráter sistematizado por regramentos, processo próprio da disciplinarização da História, é visível no sexto fundamento do IHGB, que define a organização de um “regulamento de seus trabalhos acadêmicos”, que “só depois de discutido e aprovado pelos membros do Instituto é que ele prosseguirá nos demais atos regulares, devendo considerar-se como preparatórios outros quaisquer que antes disso se celebrem” (Revista do IHGB, tomo I, 1839, p. 6).

A estruturação dos “atos regulares” presentes nos artigosdas bases normativas do IHGB é totalmente tributária da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. A explicitude de tal dependência se dá pelos Artigos 1, 2 e 3, que definem que o IHGB, “sob os auspícios da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional”, tem como objetivo “coligir e metodizar os documentos históricos” e que “os seus membros trabalharão na mesma casa em que ora trabalham os da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional”.

Os arcabouços sustentadores do IHGB marcam, consequentemente, os limites da História a ser produzida pela entidade. Uma instituição de caráter administrativo – sistematizado por regramentos e regulamentos –, patriótico – que possui um dever com a sua “gloriosa” nação – e tributário – dependente da administração pública e da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional – produz uma História administrativa, patriótica e tributária. Tal proposição intelectual necessita ser entendida de outra perspectiva; com isso, vejamos outra importante fonte da análise das proposições do IHGB.

Figura 3: Gráfico que apresenta a frequência de palavras no discurso de Januário da Cunha Barbosa

A alocução de Januário da Cunha Barbosa, importante membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, permite observar um simplório instrumento de transmissão de mensagens: a fala. Com isso, a linha discursiva adotada é visível nas escolhas e repetições dos termos utilizados no discurso, cabendo destacar as dez palavras mais utilizadas:

Tabela 2: Levantamento quantitativo das escolhas discursivas das fontes

Termo

Frequência

“que”

138

“história”

40

“seus”

36

“suas”

23

“nos”

22

“nossa”

22

“instituto”

21

“glória”

19

“pátria”

18

“Brasileiro”

18

A reflexão analítica dos dez termos mais utilizados no discurso permite instituir um filtro eliminador de alguns facilitadores linguísticos para comunicação. Sendo assim, dentre as dez palavras mais ditas, apenas o termo “que” representa mecanismo facilitador da fala. A simplória pesquisa produzida aqui leva ao cerne do primeiro eixo analítico do presente artigo: a que senhor a História do IHGB estava servindo? Tal problematização, polêmica por natureza, leva ao início de tal caminho:

Por esta judiciosa doutrina bem facilmente se conhece quão profícua deve ser a nossa associação, encarregada, como em outras nações, de eternizar pela história os fatos memoráveis da pátria, salvando-os da voragem dos tempos e desembaraçando-os das espessas nuvens que não poucas vezes lhes aglomeram a parcialidade, o espirito do partido, e até mesmo a ignorância (Revista do IHGB, tomo I, 1839, p. 9).

Ao final desse percurso, foi possível compreender que, ao pensar a História em seu processo de disciplinarização no IHGB ocorre um processo histórico de reflexão sobre as relações de poder, os lugares de fala, os diversos territórios a serem construídos, os protagonismos forjados, enfim, o desenrolar de tal movimento. A pesquisa realizada aponta para a necessidade de observar a história produzida pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em sua criação como resposta a um contexto histórico específico e como elemento fundamental para um “pensar” histórico tão simbólico que ali se gerou e que se movimenta até os tempos contemporâneos.

Fonte

 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO BRASIL. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, Tomo I, 1856.

Referências

BLOCH, M. La historia rural francesa: caracteres originales. Barcelona: Crítica, 1978.

GRAÇA FILHO, A. A. História, região & globalização. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 1, p. 5-27, 1988.

Publicado em 19 de maio de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

SOUZA, Gabriel Costa de. “Espessas nuvens”: uma reflexão analítica sobre os diversos territórios nos discursos adotados na criação do IHGB. Revista Educação Pública, v. 20, nº 18, 19 de maio de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/18/respessas-nuvensr-uma-reflexao-analitica-sobre-os-diversos-territorios-nos-discursos-adotados-na-criacao-do-ihgb

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