A escola e a interculturalidade nas favelas do Rio de Janeiro
Julio Cesar Gomes Fortunato
Mestrando em Novas Tecnologias Digitais na Educação (Unicarioca), licenciado em Geografia (UGF), professor da rede municipal do Rio de Janeiro
Juliana Cassia de Avellar Serpa
Mestranda em Novas Tecnologias Digitais na Educação e professora universitária (Unicarioca), professora da rede municipal do Rio de Janeiro
Adriana Cassiano
Mestranda em Novas Tecnologias Digitais na Educação (Unicarioca); professora da rede municipal do Rio de Janeiro
Luciane Medeiros de Souza Conrado
Doutora em Letras (UFF); professora e pesquisadora do mestrado profissional em Novas Tecnologias Digitais na Educação (Unicarioca)
Em finais do século XIX, importantes transformações aconteciam na estética da cidade do Rio de Janeiro visando a remoção dos cortiços presentes na região central da cidade. Concomitantemente, com fim da Guerra de Canudos, na Bahia, soldados retornavam ao Rio de Janeiro com autorização para fincar residência no Morro da Providência, denominado por eles Morro da Favela, que seria uma recordação do morro em que estiveram em Canudos, em posição estratégica durante a guerra. Essa conjuntura favoreceu o surgimento da primeira favela e, ao longo da história, originou as inúmeras outras presentes em toda a cidade.
O presente artigo pretende abordar, com base em levantamento bibliográfico, o processo de surgimento das favelas e as relações sociais estabelecidas, sobretudo no que diz respeito à escola e a suas atuações nesses espaços, denominados também comunidades. O primeiro aspecto a ser destacado é o processo de surgimento das favelas, datado no final do século XIX, e o contexto histórico da cidade do Rio de Janeiro e sua conjuntura educacional.
Com o aumento populacional nas comunidades e a necessidade sociopolítica das escolas, o fazer educacional dessa instituição com os educandos em áreas cada vez mais conflagradas ganha destaque. Considerando o levantamento de dados referentes à violência e aos impactos educacionais dessa realidade, temos como objetivo ampliar o foco nas comunidades para além dos noticiários sobre conflitos armados cotidianamente veiculados em jornais e revistas, apresentando práticas inovadoras de protagonismo juvenil fortalecidas pelas relações interculturais e de valorização da cultura local, tendo a escola como parceira.
Nesse sentido, traremos uma reflexão para o papel da escola do século XXI e sua importância na educação atual, pelas práticas existentes pautadas no modelo tradicional de educação e a antinomia apresentada em projetos como Rolé da Penha e Prata da Casa, que, pautados em abordagens metodológicas inovadoras, consideram a utilização de recursos tecnológicos e a autonomia do aluno como produtor de sua aprendizagem como trunfos para mudanças de paradigmas das realidades locais.
O surgimento das favelas e seu contexto socioeducacional
No início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro passava por grandes transformações visando mudanças na estética em sua imagem. Liderada pelo prefeito Pereira Passos, que queria modernizar a cidade, inspirando-se em Paris, na França, foram construídos importantes prédios, como o Teatro Municipal, o Museu de Belas Artes e a Biblioteca Nacional. A transformação urbana foi iniciada na região central da cidade e começou removendo os cortiços da região onde hoje está localizada a Av. Rio Branco.
De acordo com o historiador Milton Teixeira (2017), paralelamente à tentativa de modernização do centro da cidade, surgia a favela que posteriormente receberia o nome de Providência, também na zona central da cidade. Esse movimento foi iniciado por soldados que retornavam da Guerra de Canudos, na Bahia, e começavam a ocupar a região, dando ao local o nome de Morro da Favela, em referência à planta encontrada por eles na região de Canudos, dando nome a essas formações urbanas, conhecidas assim no Rio de Janeiro e em todo o Brasil.
As modificações na paisagem da zona central foram vertiginosas, com surgimento de grandes artérias rodoviárias na cidade e revitalização da região portuária. Concomitantemente cresciam as favelas nas encostas dos morros, com construções desordenadas, sem saneamento básico ou qualquer estrutura, uma vez que esses espaços eram ocupados por uma população muito pobre, muitos deles, ex-escravos.
Apenas na década de 30, com o prefeito Pedro Ernesto, as favelas ganhavam mais visibilidade; o prefeito buscava intermediar os interesses das comunidades junto ao poder público em troca de apoio eleitoral. Sua popularidade era tão grande que chegou a ser cogitado para a presidência da República, antes de gerar incômodos ao populismo do presidente Getúlio Vargas e ser preso, acusado de ser comunista.
Nessa conjuntura de crescimento das favelas e passadas décadas do início desse movimento, as relações interpessoais vão se estabelecendo e intensificando, com importantes manifestações culturais, como o surgimento das escolas de samba, impulsionadas pelo apoio do então prefeito distrital, Pedro Ernesto. Manifestações musicais em referência à favela também surgem como no filme Favela dos meus amores, de Humberto Mauro, rodado em 1935, no Morro da Favela (Providência).
A popularidade de Pedro Ernesto, morto em 1942, e o populismo de Getúlio Vargas ampliam a visão que se tem em relação às favelas, nesse momento vistas como importante potencial político-eleitoral. Em 1946, surgiu a parceria entre a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e a Arquidiocese, criando a Fundação Leão XIII, que objetiva dar assistência à população das favelas, garantindo direitos básicos como luz, água e esgoto; em seu plano de fundo, a intenção era impedir o avanço de forças progressistas dentro das comunidades.
Na década de 1950, com a volta de Vargas ao poder e a presença cada vez maior de políticos nas favelas em busca de eleitores, esses espaços se fixavam de forma ainda mais intensa, e esse fenômeno social já não poderia ser ignorado ou erradicado de forma pura e simples.
O crescimento das favelas estava ligado à própria dinâmica das relações capitalistas; na década de 1960 a cidade ampliou o crescimento de favelas, como aconteceu nos Morros da Coroa, em Santa Teresa, e da Rocinha, na zona sul, além do movimento de favelização da região da Barra de Tijuca e de Jacarepaguá, de acordo com dados do censo da época. Esse crescimento fez renascer o discurso de remoção das favelas das principais áreas da cidade, principalmente na zona sul. De acordo com Lícia Valladares (2005), os governadores Carlos Lacerda, Negrão de Lima e Chagas Freitas removeram mais de cem mil pessoas de comunidades cariocas.
Apesar da tentativa de remoção das favelas nas décadas de 1960 e 1970, dados dos censos realizados mostravam aumento da população nessas regiões, passando de aproximadamente 169 mil pessoas na década de 1950 para mais de 565 mil residentes em favelas em finais dos anos 1970. Esses números significavam que 7% da população residia nessas regiões na década de 1950, passando a 13% nos anos 1970; ao final do século XX, estimava-se que mais de 18% da população do Município do Rio de Janeiro morava nas favelas da cidade.
Nos anos 1980, a cidade do Rio de Janeiro sentia o aumento da população de modo geral e o atendimento dos serviços públicos não acompanhava esse movimento populacional crescente. No âmbito educacional, surgiram os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), com o objetivo de oferecer ensino integral público.
Segundo Darcy Ribeiro (1986), idealizador desse projeto, “nossa escola fracassa por seu caráter cruelmente elitista”; ele conclui:
temos uma escola primária não só seletiva, mas elitista. Com efeito, ela recebe as crianças populares massivamente, mas, tratando-as como se fossem iguais às oriundas dos setores privilegiados, assim as peneira e as exclui (Ribeiro, 1986, p. 14).
Com formas projetadas pelo arquiteto Oscar Niemeyer, os CIEPs foram criados por Darcy Ribeiro para atendimento aos alunos em horário integral, oferecendo quatro refeições diárias. Esses espaços educacionais eram construídos muito próximos as comunidades, para que a distância não se apresentasse como justificativa para que as crianças não frequentassem a escola.
Na década de 1990, poucos anos após a redemocratização e com o contínuo aumento da população nas favelas, diversos problemas também se intensificaram, como o crescimento da violência e o domínio das facções criminosas nas comunidades cariocas, muito influenciado pela ausência do poder público nesses espaços.
Com a chegada dos anos 2000, as comunidades cariocas vivem uma verdadeira guerra urbana que afeta milhares de pessoas que moram, estudam e trabalham nesses espaços ou em seu entorno, inclusive a escola, que se estabelece como uma das poucas exceções do poder público com presença efetiva, apesar das dificuldades de atendimento aos alunos, com centenas de escolas sendo fechadas eventualmente durante o ano letivo, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
A escola nas favelas
Durante o trajeto percorrido desde o surgimento das favelas no Rio de Janeiro, a escola se estabeleceu como a conquista ao direito à educação, com grandes marcos, como as construções escolares nesses espaços e oportunidades para milhares de novas matrículas. Porém, durante o percurso da escola desde sua oferta nas favelas, foram muitas as dificuldades e impossibilidades para a realização de um efetivo trabalho de qualidade junto aos alunos dessas regiões.
Considerando as escolas da zona norte da cidade do Rio de Janeiro, no que diz respeito à dificuldade de funcionamento devido aos frequentes conflitos armados, dados da Secretaria Municipal de Educação apontam que, em 2017, por motivo de violência no entorno onde estão inseridas, 467 escolas fecharam pelo menos uma vez. A região do Complexo da Maré, na zona norte da cidade, teve 35 dias letivos sem aulas nesse mesmo ano.
Em 2018, algumas unidades escolares do Complexo no Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, chegaram a fechar mais de vinte vezes, o que representa mais de 10% de aulas perdidas em decorrência da violência. Em 2019, com o ano letivo ainda em curso, dados apontam que nessa mesma região algumas escolas já perderam 15% de seus dias letivos por esse motivo.
De acordo com dados da plataforma Fogo Cruzado, até 30 de outubro de 2019 só o Complexo do Alemão registrou 260 ocorrências de tiroteios. Em 2018, foram 267 registros nessa região; em 2017, o número de ocorrências foi de 173 durante todo o ano. Portanto, se considerarmos os dados apontados para 2019, considerando informações de apenas dez meses, pode-se afirmar que a violência nas comunidades da região segue em uma crescente.
As questões externas presentes nas favelas relacionadas a violência, desigualdade e ausência de serviços públicos estão presentes desde a formação desses espaços, e por si sós já dificultam, afastam os alunos da escola e são amplamente noticiados como os únicos aspectos de destaque nas comunidades.
Além deles, a escola também apresenta fragilidades que afastam esses alunos, seja por desmotivação ou falta de identificação com a matriz curricular e os conteúdos oferecidos, que ainda são distantes de suas realidades. A escola condiciona os alunos a vivenciar outras culturas, distantes daquelas em que estão inseridos. Os livros didáticos não representam os anseios do alunado, a criança e o adolescente não se percebem pertencentes a essa escola tradicional.
A língua é outro aspecto importante na construção da identidade; ela representa a cultura de uma sociedade e as práticas e atitudes que lhe dão consistência. Diferentes dialetos dentro de uma língua não só representam grupos sociais diversos como refletem as relações entre eles; assim acontece com a linguagem adaptada nas comunidades. Entretanto, até nesse aspecto a escola se distancia da realidade das favelas.
De acordo com a pedagoga Lucileide Queiroz (2002, p. 2-3), em Um estudo sobre a evasão escolar: para se pensar na inclusão escolar,
de maneira geral, os estudos analisam o fracasso escolar, a partir de duas diferentes abordagens: a primeira, que busca explicações com base nos fatores externos à escola, e a segunda, baseada em fatores internos. Dentre os fatores externos relacionados à questão do fracasso escolar são apontados o trabalho, as desigualdades sociais, a criança e a família. E dentre os fatores intraescolares são apontados a própria escola, a linguagem e o professor.
Para a pesquisadora Gitanjali Patel (2015), a dinâmica da questão linguística é marcada no Rio de Janeiro, onde a língua falada nas áreas marginalizadas tem, de forma rotineira, sua legitimidade negada e ignorada, tida como um português mal falado.
Apesar desse triste contexto de violência, marginalização e abandono, vale destacar que em todo o processo de construção da favela sempre esteve presente o conceito do lugar como identidade, e importantes movimentos culturais se estabeleceram na música e dança, inicialmente com o samba e posteriormente com o funk carioca, e em outras manifestações artísticas, que irão influenciar diretamente as relações estabelecidas.
Nesse sentido, a escola presente nas favelas precisa atuar de modo a fortalecer a identidade local, apresentando novos conhecimentos e conceitos, mas sobretudo valorizando as práticas e manifestações existentes.
A interculturalidade e os territórios plurais
Em relação à riqueza cultural oferecida nas comunidades, retomamos a história da formação das favelas cariocas e toda a herança para a sociedade a partir das vivências experienciadas nesses locais, considerando a cultura como produto do encontro de saberes e fazeres na pluralidade da vida social.
Partindo do entendimento de que a cultura vai além de um conceito normativo para distinguir práticas e hábitos sociais, faz-se mister incorporar invenções, linguagens e costumes construídos que transformam e concebem a estrutura de um território.
Para o geógrafo Milton Santos (2002, p. 10), em A natureza do Espaço: técnica e tempo,
as existências sociais são culturalmente construídas, as demarcações espaço-temporais emergem como forças vitais que fundam as diferenças de gostos, estilos, hábitos, crenças e costumes. Nesse percurso, estamos estabelecendo uma nítida relação entre o fazer da cultura em sua expressão territorial, uma vez que o território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida.
Nesse sentido, escolas localizadas nas periferias e comunidades cariocas desenvolvem projetos de valorização das práticas e manifestações culturais existentes ali, buscando visibilidade e protagonismo para os talentos e forças existentes, muitos deles alunos ou pais de alunos das escolas municipais nas quais os projetos são desenvolvidos. Essa iniciativa tem como objetivo paralelo desconstruir a imagem das favelas, vistas apenas como locais de extrema pobreza e violência.
Os projetos desenvolvidos vão além das questões sociais, pois possibilitam a produção de conhecimento e o desenvolvimento de diversas habilidades e competências presentes no currículo escolar, além de apresentar a escola como espaço inovador, no qual o aluno é o agente de seu conhecimento e pode produzi-lo, inviabilizando o discurso do professor como detentor do conhecimento; nessa perspectiva, o docente se apresenta como mediador do processo.
Nos últimos anos, as formas de aprender e ensinar se modificaram drasticamente; hoje o conhecimento é de fácil acesso por todos, visto que a internet veio democratizar a informação. Já não se admite o modelo tradicional de ensino estritamente presente dentro da sala de aula; a escola precisa experimentar práticas mais atrativas aos alunos.
Para Arruda e Castro Filho (2018) em Tecnologias digitais e a aprendizagem,
com a globalização das informações, na atualidade, temas como compartilhamento e relações políticas e sociais surgem cada dia com mais frequência na sociedade. Não há mais limites espaciais para que diferentes realidades e contextos se cruzem e troquem informações (Arruda; Castro Filho, 2018, p. 4).
Dessa forma, as unidades escolares desenvolvedoras de projetos de valorização dos fazeres das comunidades e de protagonismo dos alunos reconhecem o desafio para a criação de novas práticas e outros possíveis modos de saberes e potências que poderão reconfigurar os espaços escolares e as relações que ali se estabelecem. Assim, pela necessidade de intervenção na realidade local, por meio de outra lógica de conhecimento, respaldada nas tecnologias, as quais o aluno já conhece e às quais tem acesso, o trabalho será reestruturado, pautado em uma visão crítica da sociedade em que estão inseridos e nas formas de valorização dos agentes e organizações locais que os constituem.
Nesse sentido, apresentaremos algumas unidades escolares localizadas em comunidades da zona norte carioca que desenvolvem práticas inovadoras, com projetos que irão desmistificar a vida nas comunidades, tendo a escola e todos os atores envolvidos nesse processo como lócus dessa realidade, fomentando a valorização de todas as manifestações interculturais presentes e pensando em caminhos para mitigar os impactos causados pela violência que atinge diariamente esses espaços.
Projeto Meu Lugar
O Projeto Meu Lugar, desenvolvido em uma escola municipal da zona norte do Rio de Janeiro, localizada na região do Engenho Novo, com atendimento ao público dos morros São João e do Complexo do Lins, tem a proposta de mostrar aspectos das comunidades diferentes dos noticiários de violência, comum nesses locais; o projeto mobiliza os alunos a pesquisar aspectos positivos que mereçam destaque nesses locais.
O projeto na escola desenvolvedora, que atua no segundo segmento do Ensino Fundamental, iniciado por um professor de Geografia, foi pautado na produção de podcasts com registros de vídeos e áudios curtos utilizando o celular com a apresentação de matérias sobre os destaques.
Os registros realizados pelos alunos vão desde um cabelereiro do bairro que realiza os melhores cortes, passando por pontos da comunidade com uma bonita vista para a cidade, a história do local descoberta em entrevistas com moradores, além da exibição de artistas locais na música e na dança.
De acordo com o professor idealizador do projeto, na primeira aula de exibição do material produzido já era possível perceber o grande orgulho dos alunos ao mostrar suas produções; afinal, os protagonistas dos vídeos eram os próprios alunos ou pessoas de sua convivência, na comunidade.
A partir dessa iniciativa, a escola está integrando o projeto a outras disciplinas, com registros escritos em aulas de Língua Portuguesa, a criação de um jornal com a história do bairro e um canal no YouTube, em desenvolvimento.
Essa iniciativa do projeto, ainda em andamento, mostra que com recursos simples – nesse caso, um celular – é possível provocar grande interesse dos alunos pelas aulas, aproximando o conteúdo curricular da realidade dos educandos.
Projeto Ser e Pertencer
Uma escola municipal do Complexo da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, realiza o projeto denominado Ser e Pertencer. O projeto, idealizado pelo professor de História, busca resgatar a autoestima, a identidade e o orgulho de pertencer à Comunidade da Vila Cruzeiro, mostrando as questões positivas do local.
O projeto foi iniciado em 2017, quando a direção decidiu mudar a aparência da unidade, convidando um artista local para grafitar os muros da escola, colocando nas imagens a história do mundo, com painéis reproduzindo heranças africanas, mensagens contra o preconceito e uma árvore de memórias, destacando os professores mais antigos na unidade escolar.
A escola, entendendo a necessidade de aproximação com o alunado, iniciou um processo de escuta mais ativa, possibilitando a eles protagonizar as ações da unidade. Assim surgiu o subprojeto Aqui é um Lugar de RaPAZiada, adaptado de um projeto macro da rede municipal, Aqui é um Lugar de Paz; a escola mobiliza com seus alunos uma série de discussões para pensarem juntos ações que poderiam acontecer para que a série de conflitos armados na comunidade deixasse de existir. A atividade virou uma grande exposição de trabalhos para toda a comunidade escolar.
Baseado no entendimento da necessidade de valorização da linguagem utilizada pelos alunos nas aulas, muitas vezes distanciada da linguagem empregada pelos professores, surgiu na escola o projeto Pega a Visão: o dicionário da rapaziada, que reúne gírias e expressões comuns no universo dos adolescentes da região. “A gente tem que aprender como falar em outro lugar. Então, quem vem à favela tem que aprender a nossa linguagem também”, destaca uma aluna, em frase exposta na “capa” do documento.
Conheça alguns termos do dicionário da unidade escolar:
Dando uma de pão – Ter atitude estranha
Mec mec – “Suave”, bem
Panguando – Distraído
Pega a visão – Fique alerta
Projeto Rapunzel – Usar implante
Terror nenhum – Sem medo
Com o intuito de valorizar a linguagem utilizada pelos alunos, as aulas são adaptadas com paródias usando o funk, nas quais os alunos protagonizam as adaptações das músicas, a partir do conteúdo curricular proposto.
Projeto Rolé da Penha
Na mesma unidade escolar do projeto Ser e Pertencer surgiu o projeto Rolé da Penha. Essa iniciativa nasceu da percepção de alguns professores da escola, de que os alunos não sentiam orgulho de dizer onde moravam, percebiam que, sempre que perguntados, os alunos davam endereços em bairros vizinhos, como Grota, Olaria e Bonsucesso.
Então nas aulas de Geografia e História, os professores solicitaram que os alunos desenhassem o trajeto de suas residências até a escola, comparando com o mapa oficial, elaborado pelo Instituto Pereira Passos. Assim, surgiu o projeto, com proposta de valorização do turismo local, protagonizado pelos alunos, contando a história dos pontos turísticos do bairro, como a Igreja da Penha e as pessoas da comunidade, além de estudantes de outras regiões da cidade.
De acordo com o professor idealizador do projeto, a ideia principal é levar aos alunos a história oficial do bairro, cruzando com aquela contada pelos alunos, por seus pais e pessoas antigas na comunidade.
Os projetos apresentados já são considerados sucesso dentro e fora da Rede Municipal de Educação, inclusive participando do documentário Práticas que transformam, do Canal MultiRio, além serem objetos de reportagens para o mesmo canal, mostrando que a partir de iniciativas simples é possível mobilizar as Escolas para mudanças nas realidades locais.
Considerações finais
O estudo foi desenvolvido visando entender como se deu o processo de surgimento das favelas cariocas e suas relações interculturais estabelecidas, considerando esses locais como plurais e fortemente influenciadores da cultura da cidade do Rio de Janeiro e do país.
Além de sua importância cultural, as favelas trazem ao longo da história uma trajetória de desigualdades, de presença da criminalidade em decorrência da ausência do Estado, além da discriminação que seus moradores sofrem por grande parte da sociedade. Em meio a esse cenário está a escola pública, sendo um dos poucos serviços públicos oferecidos nesses locais.
Apesar da presença nas comunidades cariocas, as temáticas, metodologias e conceitos utilizados pelas escolas sempre estiveram distantes da realidade local, carecendo de alternativas para desenvolvimento de ações que instrumentalizassem a formulação de aulas mais atrativas e contextualizadas ao desenvolvimento do aluno, sobretudo incentivando a valorização cultural.
Nesse sentido, apenar de ainda não ser possível afirmar que a cultura presente nas favelas é valorizada e que as escolas consideram esse movimento, a pesquisa apresenta práticas positivas realizadas por escolas e seus professores, com anseio de modificar essa realidade.
Os projetos Prata da Casa, Rolé da Penha e Ser e Pertencer surgem como excepcionalidades em um modelo educacional ainda tradicional, mas, mesmo assim, são potências da liberdade para o jovem na busca do tornar-se, do ser algo que ainda não se é, do ideal de valorização intercultural como indivíduo pertencente à sociedade carioca.
É nesse sentido que as experiências culturais em favelas devem ser referências decisivas para políticas públicas, especialmente porque enfatizam o protagonismo dos sujeitos sociais situados na intervenção cultural e artística no território. É nesse cenário que a cultura ganha seu horizonte como prática social e se vincula definitivamente ao debate sobre a mudança de significado da cidade como obra humana compartilhada.
Sendo assim, faz-se mister que a sociedade enxergue as favelas para além dos problemas sociais existentes e reconheça e valorize suas manifestações culturais. E que as questões relacionadas à violência são diárias, mas as comunidades são mais fortes do que essa minoria de criminosos que lá estão; as potencialidades das favelas precisam ser exaltadas.
Referências
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QUEIROZ, L. D. Um estudo sobre a evasão escolar: para se pensar inclusão escolar. Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/25/lucileidedomingosqueirozt13.rtf. Acesso em: 20 nov. 2019.
RIBEIRO, Darcy. O livro dos CIEPs. Rio de Janeiro: Bloch, 1986.
SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo. São Paulo: EdUSP, 2002.
VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. 22-73.
Publicado em 26 de maio de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
FORTUNATO, Julio Cesar Gomes; SERPA, Juliana Cassia de Avellar; CASSIANO, Adriana; CONRADO, Luciane Medeiros de Souza. A escola e a interculturalidade nas favelas do Rio de Janeiro. Revista Educação Pública, v. 20, nº 19, 26 de maio de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/19/a-escola-e-a-interculturalidade-nas-favelas-do-rio-de-janeiro
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