O que é Filosofia e quando Filosofia é compreendida como doutrina-da-ciência

Fábio Souza Correa Lima

Professor universitário (Departamento de Teorias e Fundamentos/UFAM)

Um pouco de história e filosofia tradicional

Quando no surgimento da Filosofia, entre os séculos VII e VI a.C., na Grécia, ela era também ciência, concentrando em si todo o conhecimento. Mais tarde, no entanto, o pensamento filosófico inaugurou um caminho novo de tratamento de temas e assuntos que determinou uma mudança na forma de conhecimento do mundo vigente até então. A Filosofia passou então a ser um estudo estritamente conceptual, baseada apenas no raciocínio, afastando-se, portanto, do empirismo, que, no âmago do paradigma da Modernidade, é característico da ciência.

Segundo Nietzsche, a primeira proposição filosófica teria partido de Tales, quando disse que “a água é o princípio de todas as coisas” (1973). O pensador ainda pontua:

a filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matiz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; e, enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisália [sic], está contido o pensamento: “Tudo é um”. A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza, mas, em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego (Nietzsche, 1973).

Georg W. Friedrich Hegel (1973) acrescenta sobre a proposição de Tales, afirmando quanto à eclosão da Filosofia: “com ela a Filosofia começa, porque através dela chega à consciência de que o um é a essência, o verdadeiro, o único que é em si e para si. Começa aqui um distanciar-se daquilo que é a nossa percepção sensível” (Aristóteles, Metafísica, I, 3).

Com base nessa interpretação, depreende-se que a Filosofia apresenta uma passagem do mito para o logos. Essa passagem visa à libertação do homem do mundo mágico do mito para um mundo da razão. No pensamento mítico, a natureza é possuída por forças anímicas; o homem, portanto, é um ser passivo, que apela para rituais apaziguadores para se entender com a natureza. Com efeito, a Filosofia utiliza por muitas vezes as informações fornecidas pela ciência, pelas artes e pelas religiões para sua fundamentação. Não se pode discutir Filosofia sem saber nada de arte ou religião. Por outras vezes, tanto a Ciência quanto a Filosofia, que aqui se afastam da doutrina-da-ciência, partem da inspiração feliz, do pressuposto. Assim, a partir de Tales a Filosofia ganha seus contornos de trabalho mental alegórico, não dificilmente metafórico, à margem de qualquer experiência empírica. Esse sistema se caracteriza como eclético, aproveitando o que considera melhor e prescindindo daquilo que não lhe interessa – no caso, a ciência.

O entendimento de Filosofia continua esse até a Idade Moderna, em que a vitória do ‘iluminismo’ sobre as chamadas ‘trevas da ignorância’ atestam toda a produção do conhecimento como advindo dos métodos científicos racionais. A ciência ganha força e, a razão pura, concebida objetivamente, torna-se o principal meio de produção intelectual. Um exemplo da seriedade na utilização desse método pode ser encontrado nas produções freudianas do período. Sua a apresentação de um subconsciente ou um não consciente relegou Freud aos risos e escárnios de seus colegas de profissão na época; porém, mais tarde, sob o reconhecimento adequado, sua obra se tornou base de um novo campo de investigação científica. Friedrich Fichte, por sua vez, em toda a sua produção, mostra-se um homem moderno, que não foge ao ideário de ciência, mostrando, em Comunicado claro como o sol ao grande público, onde se mostra em que se consiste propriamente a novíssima filosofia, que a Filosofia pode ser elevada à condição de ciência, atribuindo-se a ela um método, um sistema, a doutrina-da-ciência.

Um comunicado sobre os esforços mais recentes para elevar a Filosofia à condição de ciência

Segundo Fichte, a Filosofia não é inata ao homem, como vinha sendo posto pelos filósofos antes dele. A Filosofia, como ciência, reside naquele que a estudou. Os homens, na ignorância, devem abster-se da discussão de tal ciência, tal como deve ser quanto à Trigonometria e à Álgebra, para aqueles que não tiveram a oportunidade de aprendê-las e exercitá-las.
Na Filosofia tradicional, em que só é possível meditar sobre o observado, sem, porém, poder criar, pelo mero pensamento, novos objetos, o filósofo deve ter exclusivamente certos conhecimentos, o que exclui, não permanentemente, a maioria das pessoas. A doutrina-da-ciência, pelo contrário, visando trazer a todos para o seu sistema, explica que o entendimento comum deve vir da ‘experiência’ acessível a todos por meio do exercício da vida.

Conforme já escrevemos, os filósofos tradicionais afirmam que a Filosofia encontra-se inata ao homem, o que Fichte não contradiz a priori. Contudo, o autor diz que, para filosofar, o homem deve engendrar a sua doutrina-da-ciência, que o levará até a consciência efetiva. Fichte, em sua doutrina-da-ciência, não nega o domínio de todos ao julgamento sobre seus objetos; mas, segundo ele, seu sistema oferece um aprofundamento de entendimento que não há na Filosofia tradicional, pois julga que nesta, o indivíduo não é capaz de filosofar. Então Fichte propõe que aqueles que têm maior apreço pela expressão Filosofia, tal como acredita ser o que chamou de Filosofia-científica, não chamem seu sistema de Filosofia, mas sim de Doutrina-da-Ciência.

Da Doutrina-da-Ciência

Na obra de Fichte para o entendimento da doutrina-da-ciência, encontramos a seguinte característica: o posicionamento do raciocínio como ‘entendimento’ (Verstand) e, por outro lado, a colocação da ‘filosofia’ como razão. Essa postura, de filosofia como razão, é especialmente importante para o autor, pois, embora possamos presumir que o ‘raciocínio’ e a ‘filosofia’ estão ligados por faculdades humanas, de fins propedêuticos, apenas essa postura pode levar à proposição fundamental, tão cara à doutrina-da-ciência.

Assim, o autor tenta levar o leitor passo a passo, raciocínio a raciocínio, até o entendimento de que é por meio da ‘experiência’, da proposição fundamental, que se faz Filosofia; que finalmente o homem torna-se capaz de criar objetos pelo pensamento.

Como é possível ver, Fichte apela ao senso comum, trazendo para si o homem não filósofo da Filosofia tradicional, incapaz de criar objetos por meio da ‘simples experiência’. A experiência pode se dar no campo do ‘real-efetivo’ e do ‘real-não-efetivo’. A diferenciação entre elas torna-se necessária, ressalvando, porém, que para Fichte e sua doutrina-da-ciência, utiliza-se apenas o real-efetivo.

Vulgarmente exemplificando, o real-efetivo é o que vivenciamos no presente, como estar lendo este trabalho. O real-não-efetivo é o imaginativo figurado, como uma representação das aulas de uma disciplina qualquer que o leitor possa estar cursando em sua graduação, cursou etc. Utilizando esse formato, podemos também exemplificar o real-efetivo assim: passado o momento das aulas que o leitor frequenta e a representação que fez delas a partir do explicado no parágrafo anterior, ele pode imaginar/figurar ele próprio representando aquela representação. Nesse instante, o leitor deste trabalho estará representando o já representado, em que o ato de representar o já representado aparece também como real-efetivo.

Toda realidade, qualquer que seja seu nome, surgiria para nós por um mergulho e por esquecimento do nosso eu em certas determinações de nossa vida; e esse esquecimento de nosso eu em geral seria justamente aquilo que daria a essas determinações, em que nós esquecemos, o caráter de realidade e que daria a nós, em geral, uma vida (Fichte, 1984, p. 75).

Ainda assim, Fichte diz que nesse momento podemos ou não estar absorvidos no trabalho. Considerando absorvidos num grau de concentração tal que o desviar a atenção não se daria de modo algum, isto é: ‘estou mergulhado nisto’, ao realizar uma representação, o indivíduo não se concentra nele próprio, mas sim na representação. Em suas palavras, esse autoesquecimento seria o caráter de efetividade, o ponto de combustão, o começo da própria vida. Ora, o surgimento da vida, os atos de imaginar/lembrar/figurar estão todos contidos no autoesquecimento, na experiência, na efetividade. Se conseguirmos realizar esse grau de absorção pela representação, finalmente, segundo a Doutrina-da-Ciência, estaremos vivendo, nós estaremos filosofando.

O autor segue por esse caminho em sua Doutrina-da-Ciência, relevando todo o universo de acontecimentos que estão alheios à nossa atenção quando estamos mergulhados. Como a experiência relatada antes, Fichte ressalta a ‘realidade’, fato da consciência, como residente na primeira potência de consciência, onde estariam as determinações primeiras e fundamentais, e é justamente essa a proposição fundamental. É claro que, para melhor entendimento da primeira potência, torna-se interessante a prova de que existe uma segunda potência, que fica mais bem exemplificada na situação de consciência da representação do representado. Pode existir então uma infinidade de potências, uma vez que é sempre possível ter consciência de outra consciência. É como se um homem parasse entre dois espelhos dispostos frente a frente. Haveria representações dele mesmo cada vez que ele se olhasse em um reflexo, acontecendo isso infinitas vezes. Nas potências superiores mostram-se, portanto, consciências que têm como objeto outras consciências. Logo, temos a criação de um novo objeto a cada potência superior, o que não ocorre na Filosofia tradicional. Porém, como propõe em seu Comunicado claro como o sol, em seu sistema Fichte trata apenas da primeira potência, onde reside o real-efetivo, com o intuito de provar que todos os homens, mesmo os considerados não filósofos, podem aprofundar os julgamentos de seus objetos, dentro do campo da sua filosofia.

O artefato da consciência

Logo, dizes que basta entenderes convenientemente o mecanismo do artefato [relógio] para absolutamente não teres a necessidade (...) de apreender as partes da máquina, uma após outra, pela percepção efetiva; e que basta teres visto e entendido corretamente uma delas para complementares a percepção a partir dela, sem outra percepção, e substituí-las por meras inferências (...).

Há no diverso do sistema fundamental de toda a consciência (...) uma tal conexão, semelhante à mecânica, de tal modo que cada parte singular tem de ajustar-se a tudo e tudo a cada parte singular e cada uma é determinada pelo todo (Fichte, 1984, p. 79).

Na alegoria do relógio, o autor dá ênfase à sua teoria metafísica dentro da Doutrina-da-ciência, em que cada singular tem de ajustar-se a tudo e tudo a cada parte singular; em que cada uma é determinada pelo todo. Ou seja, está já aí o germe da afirmação que o autor faz mais à frente, quando contraria Aristóteles dizendo que o diverso pode partir do um. O autor acrescenta que é perfeitamente possível obter de um elemento isolado e determinado todos os outros diversos que constituem o todo e que essa possibilidade se dá por meio de inferências. Dessa maneira, todas as coisas estão relacionadas entre si.

O Autor – Tu, ou qualquer homem racional, tomas tal representação, o traçado e delineamento interior de tal máquina, pela máquina efetiva, em funcionamento, desempenhando suas funções na vida? E acaso alguém te diz, depois de ter descrito e demonstrado, por exemplo, um relógio de bolso: agora fica com este relógio de bolso para ti; ele funcionará corretamente; podes tirá-lo do bolso quando quiseres e ver nele que horas são?
O Leitor – Não, que eu saiba; a não ser que seja um completo idiota.
O Autor – Cuidado, não fales assim. Pois é assim, e não de outro modo, que procedia o sistema filosófico de que te falei na introdução e contra o qual o sistema mais novo é propriamente dirigido. Ele fazia passar a demonstração de um relógio, que, além do mais, era incorreta, por um relógio efetivo, e por um relógio excelente.
Mas se alguém a quem tivesses demonstrado um relógio de bolso te dissesse ao terminares: “De que pode me adiantar tudo isso?” – não vejo como possa chegar com isso a um relógio de bolso nem ver em tua demonstração que horas são; ou te acusasse de, com tua demonstração, teres avariado seu relógio efetivo, ou de o teres demonstrado para fora de seu bolso; o que dirias de tal pessoa?
O Leitor – Que é um idiota, tanto quanto o primeiro.
O Autor – Cuidado, não fales assim. Pois é exatamente isso – essa exigência do relógio efetivo quando só lhes havia sido prometida uma demonstração dele – a censura mais profunda que até este momento foi feita contra a filosofia mais nova, por parte dos teóricos mais respeitáveis e dos pensadores mais profundos de nosso tempo. Nessa confusão entre a coisa efetiva e a demonstração dessa coisa é que se fundam, afinal, todos os mal-entendidos com que deparou essa filosofia. (...)
A Doutrina-da-Ciência é a derivação sistemática de algo efetivo, da primeira potência da consciência; e está para a consciência efetiva assim como a demonstração do relógio, descrita acima, está para o relógio efetivo (Fichte, 1984, p. 80).

O autor ressalta em sua obra que a doutrina-da-ciência consiste justamente em buscar o tal diverso como foi citado. Assim como no exemplo do relógio, até as partes do dado ou não dado que não perceptíveis às sensibilidades externas. Em outras palavras, a doutrina-da-ciência é capaz de mensurar, por meio de inferências, o todo da consciência, mesmo que partes dela não estejam perceptíveis, como as partes que se pode ver e sentir. Dessa forma, dentro dos dois exemplos dados (o do trabalho em suas mãos e o da representação das aulas), as inferências sobre as peças do relógio ou sobre as partes da consciência não perceptíveis aos sentidos externos decorrem do segundo modo de tomar consciência; assim, da representação das aulas. Está aqui novamente a figuração; a percepção efetiva, que ocorre a posteriori, à experiência, à vida, à filosofia.

Do diverso à autoconsciência pressuposta

O Leitor – Em sua determinação fundamental? Que quer dizer isso?
O Autor – Naquilo que, nela, não é condicionado por nenhuma outra consciência; logo, naquilo que não poderia ser encontrado na derivação, mas do qual, pelo contrário, esta tem de partir. O diverso da consciência contém as condições da autoconsciência completa – esse é o pressuposto. Mas então poderia haver, nessa autoconsciência, algo que não estaria condicionado por nenhum outro. É isso que deve ser estabelecido, e com ele começa a derivação (Fichte, 1984, p. 83).

O funcionamento da doutrina-da-ciência capaz de atingir o todo da consciência, descrito pelo autor como autoconsciência, tem em seu sistema os métodos necessários para fazê-lo, como já foi esmiuçado. O autor explica também que a autoconsciência a que se refere parte sempre de uma unidade pressuposta, ou seja, parte-se sempre, na doutrina-da-ciência, de uma unidade para o diverso. Essa afirmação de Fichte é problemática porque, além de afirmar o contrário de uma posição até então consolidada, em que surge do diverso, como sustenta Aristóteles, em nenhum momento ele se dignifica a informar ou ao menos especular sobre a origem da unidade, do todo, da autoconsciência que já teria sido pressuposta pelo usuário da doutrina-da-ciência. Seu Leitor Ideal, por sua vez, também não se preocupa em indagar a origem da unidade pressuposta, e tudo se resume apenas na inspiração feliz, evidente por si mesma. Ora, uma inspiração feliz parece na melhor das hipóteses algo advindo da inconsciência como podemos inferir desta citação de Nietzsche (1974): “A ideia vem quando ela quer e não quando a gente quer”.

Assim, a ideia, a inspiração feliz parece surgir do sentimental para o real, do inconsciente para o consciente, dedução que, a menos que leve automaticamente o usuário da doutrina-da-ciência até a autoconsciência, cria-me uma dúvida: a experiência acontece na autoconsciência ou na inconsciência? Ou mesmo as duas, na genialidade, não seriam as mesmas? Essa inspiração feliz parece surgir tal como um lapso, vindo do não consciente, em que parece estar a genialidade, como afirma Nietzsche.

Novamente trazendo o conteúdo científico do período de produção da obra de Fichte, torna-se interessante para este trabalho, que, como já disse, por falta de competência do autor, tem pé na História, fazer uma analogia.

Sobre as leis necessárias e imutáveis que compõem a construção que leva o diverso à produção da autoconsciência já pressuposta, a não ser pela ligação entre um diverso e outro diverso e a determinação fundamental, por certo não dispõe claramente a obra de Fichte, e, portanto, ressalvamos necessariamente que os gráficos dispostos acima são construção nossa; autoconsciência/unidade sobre a obra de Fichte. Quanto aos diversos, tentamos extingui-los a cada vez que pensamos o sistema. Em que a Unidade na forma de autoconsciência se confirma. “Infelizmente” não nos cabe competência de aferir sua legalidade.

A determinação fundamental, como coloca o autor, está no exterior da ciência, no exterior da doutrina ensinada, mostrando assim que não pode ser encontrada na derivação, mas sim na Inspiração feliz, ou seja, no pressuposto.

Ilustrando a colocação de extinção do diverso e chegada à autoconsciência como resultado terminal de toda a consciência, ressaltamos o método já explicado no início do trabalho, em que o representar de si mesmo nas aulas de um curso qualquer cria uma condição de pensar o pensante e o pensado e, por esse pensar, tenho o diverso. A cada vez que perfazemos esse caminho, retiramos mais um diverso dessa relação, caminhando sempre para a Unidade, sempre para a autoconsciência.

Figura 1: Representação do sistema de Fichte

Na Figura 1, o pensante e o pensado, representados pelo usuário da doutrina-da-ciência, unem-se formando uma só coisa; na verdade, agora, o eu puro. Os diversos, a partir de uma origem, seguem guiados à sua dissolução, pelas leis da consciência – na qual não cabe na obra a apreensão, o reinicio do sistema, encontrando-se, se fora o caso, um novo diverso, dá-se continuidade no sistema até que os diversos se esgotem.

Conclusão

Desta breve apresentação da obra de Fichte, talvez o mais interessante esteja por conta da prova de que seu sistema pode criar objetos. O autor demonstra ainda que o homem não filósofo pode ter maior julgamento sobre seus objetos justamente porque é capaz de criá-los. A partir dessa criação, seu controle vai adiante perfazendo os referidos caminhos que levam ao esgotamento dos diversos surgidos na concepção pressuposta do objeto. Dessa forma, o filósofo seguidor da doutrina-da-ciência torna-se não só mais um estudante de determinado objeto, mas o criador e pensante, podendo com o avançar das potências superiores tornar-se ele mesmo um objeto.

A discussão sobre o princípio da ciência de Fichte leva aos demais filósofos a descrença de seu sistema. A Inspiração feliz, como tentei demonstrar nos gráficos, sem dúvida se mostra bem aceita pela ciência; o problema mesmo torna-se a exposição dela como filosofia. Desta última forma, a fabricação do objeto, a experiência e os caminhos demonstrados que levam o diverso ao uno pressuposto não são aceitos pela figura de Kant, que ao meu ver representa o baluarte da filosofia em sua época. Fichte, discutindo a validade da doutrina-da-ciência, argumenta que sua base se encontra na intuição e na evidência imediata. Assumindo a postura cientificista como comentamos no início deste artigo, Fichte afirma:

Então desejam que a proposição seja provada como princípio do sistema, antes do sistema; exigência esta que é absurda. Ou querem que a verdade do conteúdo daquela proposição seja provada por um desmembramento dos conceitos contidos nela. Isso provaria que eles não têm nem o conceito nem o senso da cientificidade, que nunca repousa sobre conceitos, mas sempre apenas sobre a intuição e a evidência imediata (FICHTE, 1984, p. 85).

Em Fichte, além de todas as críticas recebidas no meio filosófico, pairam sobre sua pessoa e sua doutrina-da-ciência as negativas e críticas de Kant, autor que, por outro lado, também aponta que o gênio é aquele que faz o novo, mesmo que não saiba explicar o que está fazendo.

Em tempo: resta uma última passagem que gostaríamos de ressaltar, em que Fichte resume seu posicionamento sobre si próprio, os outros e sua doutrina-da-ciência:

Exigem uma prova de nosso direito de filosofar assim como fazemos, não assim como eles fazem. Com essa exigência, eles poderiam ser sumariamente descartados, pela razão muito natural que todo mundo tem incontestavelmente o direito de fazer a ciência que quiser (Fichte, 1984, p. 85). 

Referências

FICHTE, Johann. G. Comunicado claro como o Sol ao grande público onde se mostra em que consiste propriamente a novíssima Filosofia. Trad. Rubens R. Torres Filho. In: Os Pensadores. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

HEGEL, Georg. W. F. Preleções sobre a história da filosofia. Trad. Ernildo Stein. In: SOUZA, José Cavalcante de. Os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.

NIETZSCHE, Friedrich. Os filósofos trágicos. Trad. R. R. Torres Filho. In: SOUZA, José Cavalcante de. Os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

Publicado em 26 de maio de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

LIMA, Fábio Souza Correa. O que é Filosofia e quando Filosofia é compreendida como doutrina-da-ciência. Revista Educação Pública, v. 20, nº 19, 26 de maio de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/19/o-que-e-filosofia-e-quando-filosofia-e-compreendida-como-doutrina-da-ciencia

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