Breve histórico da criança no Brasil: conceituando a infância a partir do debate historiográfico
Jennifer Silva Melo
Licenciada em História (UNIRIO); pós-graduanda em Metodologia do Ensino de História (Faculdade de Educação São Luís)
A história da infância no Brasil é um tema cada vez mais visitado no campo historiográfico. Diversos autores têm abordado, desde as últimas décadas do século XX, a criança, não apenas como objeto de estudo, mas também como sujeito histórico, que durante o decorrer do tempo foi percebida e compreendida de diferentes formas pela sociedade. Nesse sentido, pretende-se abordar no texto os primeiros estudos sobre infância no campo da História e algumas das historiografias da infância no Brasil, traçando uma espécie de cronologia que vai desde a história da criança do período colonial às primeiras décadas do período republicano.
Infância e história: quando a criança passou a ser objeto de estudo
A historiografia dedicada à infância tem suas raízes no trabalho de Phillipe Ariès, História social da criança e da família, publicado em 1978; esse autor é considerado o pioneiro no campo da História a trazer a infância como objeto de estudo, ao abordar sua concepção dentro do contexto da Idade Média e Moderna. Ariès compreende o conceito de infância historicamente à medida que, para ele e para os autores posteriores ao seu trabalho, a infância seria não apenas uma fase caracterizada por questões biológicas, mas estaria intrinsecamente ligada a processos históricos representados por mudanças na família e na sociedade.
Os temas discutidos por Philippe Ariès deram margem à compreensão de uma “descoberta da infância” nas “sociedades industriais" (Muaze, 1999). Tais temas analisados pelo historiador denotam uma pluralidade de sentimentos, formas de tratamento e comportamentos sociais que foram modificados com o tempo, influenciando decisivamente novas percepções do adulto sobre a criança. Uma das mudanças ocorridas na Modernidade que colaboram para a compreensão de novos olhares da sociedade sobre o infante (Freire, 1954) diz respeito ao traje das crianças. Segundo Ariès:
no século XVII, entretanto, a criança, ou ao menos a criança de boa família quer fosse nobre ou burguesa, não era mais vestida como os adultos. Ela agora tinha um traje reservado à sua idade que a distinguia dos adultos. Esse fato essencial aparece logo ao primeiro olhar lançado ás numerosas representações de crianças do início do século XVII (Ariès, 1981, p. 70).
Se durante a Idade Média, as crianças, por se vestirem como os adultos, não tinham a liberdade de correr e brincar devido ao desajeitado de suas roupas, na Modernidade, as crianças começaram a se vestir diferentemente, a ter vestimentas mais apropriadas para a sua fase, não sendo mais caracterizadas com trajes iguais aos dos adultos. Essa transformação nos costumes dentro do seio das famílias já delinearia as novas percepções da sociedade sobre a infância. Entretanto, não apenas as vestimentas da criança se modificaram. No decorrer do século XVII, a sociedade também passaria por mudanças na mentalidade, haja vista que a partir desse período admitir-se-ia que a criança não estaria preparada para enfrentar a vida adulta. Surgiu, portanto, o primeiro sentimento de infância, nomeado por Ariès de “paparicação” (1981, p. 52), quando a criança era tratada como um brinquedo ou animal de estimação usado para entreter os pais. Essa relação familiar fora duramente criticada por moralistas e educadores da época. É com esse sentimento que começou a se formar um outro e novo sentimento de infância, agora ligado às questões psicológicas e morais. De forma lenta e gradual, a sociedade moderna, sob várias influências externas, como a Revolução Industrial, experimentou a criação de dois espaços: o do trabalho fabril e o da casa. Nesse momento, o núcleo familiar tornou-se cada vez mais solidificado em termos de relação de afeto e a criança passou a ser vista de forma menos indiferente. Paulatinamente, nasceu a consciência da particularidade infantil, acompanhada por uma preocupação com a criança como ser diferente do adulto e que necessita de cuidados não superficiais, além de uma educação moralizadora que a transformasse em um cidadão de bem.
Tais perspectivas fundamentadas na obra de Philippe Ariès são válidas desde que não se reduzam a aplicações de outros contextos fora da Europa Ocidental, especificamente da França medieval e moderna, haja vista que as análises das representações da infância francesa não obrigatoriamente se aplicam a outros países, como o próprio Brasil.
Representações da Infância no Brasil Colonial: a influência jesuítica sobre as “crianças da terra”
Oficialmente, a história do Brasil começa com o seu “descobrimento” em 1500, e apenas trinta anos depois se iniciaria o processo de sua colonização pelos portugueses. Nesse período um número majoritário de homens e algumas mulheres se dispuseram a aventurar-se nas águas do Atlântico rumo ao “Novo Mundo”. Contudo, de acordo com o historiador Fábio Pestana Ramos, muitos desconhecem que nas embarcações lusitanas do século XVI havia certa quantidade de crianças na tripulação. O historiador afirma que
as crianças subiam a bordo somente na condição de grumetes ou pajens, como órfãs do rei enviadas ao Brasil para se casar com os súditos da Coroa ou como passageiros embarcados em companhia dos pais ou de algum parente (Ramos, 2015, p. 19).
Essas crianças navegavam em condições extremamente adversas; ao longo da viagem, sofriam abusos sexuais de marujos rudes e violentos (Ramos, 2015, p. 19). Muitas eram levadas como escravas por navios piratas, sendo entregues à prostituição e, quando não, acabavam morrendo de exaustão. A viagem era marcada por uma dramática história de violência sexual, trabalhos forçados e riscos constantes de falecimento, sendo poucas as crianças que sobreviviam e chegavam ao Brasil. Essa dura realidade enfrentada por crianças nas embarcações lusas denota a fragilidade desses pequenos seres, que, necessitando de cuidados e proteção, sofriam o inverso do tratamento merecido. Vistas não como crianças, mas como “adultos em corpos infantis” (Ramos, 2015, p. 49), suas vidas estariam entregues à própria sorte; um retrato real da ausência da percepção do adulto sobre a infância no mundo ocidental.
Se a história das primeiras crianças que chegaram ao Brasil no século XVI foi marcada pelo abandono moral e por constantes abusos, durante o período da colonização tivemos uma realidade um tanto diferente, com novos personagens históricos, agora não pajens ou grumetes, mas as crianças autóctones e os missionários jesuítas que, sob a ideologia missionária, evangelizadora, educacional e assistencialista dedicava-se à infância indígena. O historiador Rafael Chambouleyron analisa os primeiros anos de chegada dos jesuítas ao Brasil afirmando que “além da conversão do ‘gentio’ de modo geral, o ensino das crianças [...] fora uma das primeiras e principais preocupações dos padres da Companhia de Jesus” (Chambouleyron, 2015, p. 55). Começariam então no Brasil as primeiras formas de ensino, com o método Ratio Studiorum,que, de acordo com o autor, seria definitivamente aprovado no final do século XVI. A instrução a crianças e adolescentes “da terra” veio acompanhada de inúmeros desafios, haja vista que os processos que envolviam a instrução aos indígenas encontrariam primeiramente as dificuldades da comunicação e a alteridade cultural. A bem da verdade, apesar dos vários impasses, os jesuítas enxergaram nas crianças indígenas uma espécie de “tábua rasa” capaz de aprender os conceitos cristãos mais facilmente que os índios adultos. Segundo Rizzini e Pilotti (2011, p. 17),
ao cuidar das crianças índias, os jesuítas visavam tirá-las do paganismo e discipliná-las, inculcando-lhes normas e costumes cristãos, como o casamento monogâmico, a confissão dos pecados, o medo do inferno.
A catequização e o ensino dessas “crianças da terra” estariam entre as principais estratégias criadas no processo de colonização, pois convertendo-as e disciplinando-as haveria “futuros súditos dóceis do Estado português e ainda influenciariam a conversão dos adultos às estruturas sociais e culturais recém-importadas” (Rizzini; Pilotti, 2011, p. 17). Essa ideia de enxergar a criança como “papel branco” era fruto das novas concepções de infância que estavam surgindo na Europa, que contribuíram para que a Companhia de Jesus se enquadrasse no novo pensamento e aos poucos construísse, juntamente com o Estado, condutas específicas em relação às crianças (Chambouleyron, 2015, p. 58). Nesse primeiro momento, observou-se o prelúdio para a construção do conceito de infância no Brasil, que viria acompanhada das influências do “Velho Mundo”; tais influências atuavam fortemente nas políticas educacionais e assistencialistas da Igreja para a infância ameríndia e portuguesa.
Apesar de os primeiros anos do período colonial terem como um dos marcos a implantação de uma educação (embora de cunho cristão) voltada para crianças indígenas, mestiças ou filhas de portugueses, a priori e por que não dizer, durante muito tempo, foram percebidas no Brasil disparidades gritantes no tratamento direcionado a crianças de dois grupos sociais distintos, a das famílias de elite e as de origem pobre.
Expostos no Brasil: enfoque sobre a infância abandonada a partir do século XVIII
Ao final de um dia de trabalho e depois de rezar as ave-marias que soavam, ao longe, nos sinos das pequenas cidades, mulheres reuniam-se para pentear os cabelos e catar piolhos às crianças e adultos. Ou para “fiar ao serão”, velha tradição portuguesa que se valia do trabalho doméstico feminino em torno das rocas, criando momentos de distração. Às vezes, ajuntavam-se vizinhas e comadres para fiar juntas, cada qual fornecendo um pouco de azeite para a candeia. À volta do fogo de lenha, caçarola na trempe, a família se reunia, conversando e rindo. Os fatos do dia, lendas, contos e adivinhas eram aí desfiados. Cantar “cantigas honestas”, evitando as difamatórias e desonestas, também era permitido. Aos homens, o emprego da viola era constante: “fazer hua dança e folgar” são verbos que aparecem nos documentos do século XVI e XVII (Priore, 2016, p. 136).
Esse era o retrato do cotidiano da “família patriarcal”, teorizada pelo historiador Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, que se fez construir no Brasil colonial. Sob a ótica dos estudos de Mary Del Priore, essa estrutura familiar específica, elitizada e conceituadamente religiosa, apresenta detalhes de um mundo familiar caracterizado não por relações envoltas de afeto, mas por sentimentos de hierarquia e poder que priorizavam o patriarca em detrimento de mulheres, crianças e agregados.
Nessa perspectiva, cabe agora apresentar algumas fundamentações acerca das crianças do século XVIII, que estiveram à mercê das primeiras políticas assistencialistas criadas para cuidado e proteção de infantes abandonados, a roda dos expostos.
Esse sistema, inventado na Europa durante a Idade Média, foi bem recebido no Brasil ainda no período colonial, no ano de 1726, e perdurou até a década de 1950. Como apresenta Maria Luzia Marcilio, “essa instituição cumpriu importante papel. Quase por século e meio a roda dos expostos foi praticamente a única instituição de assistência à criança abandonada em todo o Brasil” (Marcílio, 2011, p. 53). Os expostoseram colocados numa espécie de artefato de madeira fixado ao muro ou à janela das Santas Casas de Misericórdia, de forma que o depositante da criança não fosse visto por quem ali a recebesse. No Brasil, o funcionamento das rodas começou em Salvador, em 1726, depois de reivindicações do vice-rei para a abertura da roda na Santa Casa da Bahia, segundo Marcilio. Doze anos depois, o Rio de Janeiro recebeu a segunda roda dos expostos, que também ficaria sob a administração da Santa Casa de Misericórdia. Nas cidades onde não houvesse a institucionalização das rodas, caberia às câmaras a assistência às crianças abandonadas. Na verdade, mesmo onde havia as rodas dos expostos ligadas às Santas Casas, uma parte da verba de manutenção da instituição vinha das câmaras municipais.
É importante descrever as condições nas quais esses recém-nascidos se encontravam no século XVIII, quem eram esses pequenos, por que eram abandonados, de quem receberiam cuidados após serem entregues às rodas ou nas câmaras municipais, quais as chances de sobrevivência, se eram escravos, ou livres...
As respostas para essas questões podem ser encontradas na obra de Renato Pinto Venâncio, organizador de diversos trabalhos sobre infância abandonada, que resultaram no livro Uma história social do abandono de crianças. Primeiramente, as expressões utilizadas na época, como “exposto” ou “enjeitado”, se referiam às crianças abandonadas durante a primeira infância. Até o século XIX, o termo “abandonado” era praticamente inutilizado no vocabulário da época, deixando apenas para os textos legais, por volta de 1890, suas primeiras aparições. Dessa forma, “exposto” e “enjeitado” seriam largamente usados durante o período colonial e ainda representariam duas realidades sociais distintas. Segundo Andréa Rodrigues, citando Venâncio, a primeira expressão era utilizada para designar um recém-nascido deixado na rua sem nenhum tipo de proteção, ou seja, exposto à morte; “enjeitado” era o termo usado para representar um “abandono civilizado”, que seria aquele em que a mãe deixava o bebê em hospitais ou residências, aumentando as chances de sobrevivência da criança (Rodrigues, 2010, p. 126).
A assistência aos expostos era feita pelos hospitais ou pelas câmaras. A criança era registrada num livro de matrícula de expostos e encaminhada para uma ama de leite por um período de três anos. Depois de completado esse tempo, a criança era enviada a uma ama-seca que a mantinha em sua casa até aproximadamente sete anos de idade; daí por diante, ela deveria ser entregue ao juiz dos órfãos (Rodrigues, 2010, p. 126). Como as câmaras acabavam por não cumprir seu papel assistencialista, os expostos passaram a ficar sob os cuidados das Santas Casas e estas criaram a roda dos expostos. Por muito tempo, a ideologia presente nas instituições era a caridade cristã, representada pela piedade para com pequenos indefesos abandonados por suas mães. Mais tarde, a assistência passou a ficar por conta do Estado, perdendo-se então o caráter caritativo e passando para o filantrópico. É o caso da roda de Salvador, que, de acordo com Russel-Wood (Rodrigues, 2010, p. 127), foi fundada pela Irmandade da Misericórdia em 1726 e teria o caráter religioso até 1828, haja vista que nesse ano se promulgaria uma lei que tornava o governo o principal mantenedor financeiro da roda.
Partindo do aspecto assistencialista das Santas Casas, é necessário buscar compreender o perfil social dos expostos e as possíveis razões para o abandono. Ainda sob referência à obra de Venâncio, é possível estabelecer algumas causas que levaram mulheres a deixar seus filhos recém-nascidos em ruas, becos, casas particulares, igrejas, câmaras municipais ou nas rodas de expostos, sabendo que, em cada região, o abandono e o acolhimento seguiam padrões diferenciados. A historiadora Sheila de Castro Faria traz informações de pesquisas afirmando que a “exposição não privilegiava um ou outro sexo”, pois o número de meninos e meninas abandonados era praticamente o mesmo em vários municípios. O fenômeno teria a ver com a “situação dos pais no momento do nascimento dos filhos ou um pouco depois” (Faria, 2010, p. 84). A autora continua apontando que,
tanto nas casas da roda de Salvador quanto na do Rio de Janeiro, o predomínio, no século XVIII até a primeira metade do século seguinte, foi a exposição de crianças indicadas como brancas. Elas foram mais da metade dos expostos (em algumas décadas chegando a mais de 60%) até 1850 (Faria, 2010, p. 84).
Tal afirmação indica tanto o perfil social da criança enjeitada quanto as possíveis causas para seu abandono. A primeira hipótese corresponde aos “amores pecaminosos ou proibidos: filhos de clérigos, adulterinos ou de relações desiguais, mesmo entre pessoas desimpedidas (solteiras ou viúvas)”. Nesse sentido, o abandono seria a saída desses grupos específicos de indivíduos que precisavam manter o anonimato do nascimento de um filho indesejado. Corroborando essa ideia, Maria Luiza Marcilio afirma que “a roda poderia servir para defender a honra das famílias cujas filhas teriam engravidado fora do casamento” (Marcílio, 2011, p. 74).
Logo, entende-se que, na maioria desses casos, o enjeitamento ocorreria por famílias de cor branca. Outra hipótese dada por Renato Venâncio interpreta a exposição de crianças dentro de uma perspectiva socioeconômica, discordando, portanto, da teoria da “condenação moral aos amores extramatrimoniais” (Rodrigues, 2010, p. 131). Como escreve Sheila de Castro Faria (2010, p. 85),
o enjeitamento envolvia bebês ou recém-nascidos cujos pais não possuíam recursos para criá-los e que, portanto, abandonavam-nos na esperança de que os mesmos fossem amparados pelo auxílio público ou particular.
Ilegitimidade da criança, honra da mulher, falta de recursos e até mesmo controle de natalidade foram algumas das razões encontradas pelos historiadores para a exposição de crianças durante um longo período da história do Brasil. Esses pequenos expostos, apesar de receberem cuidados do poder público, das Santas Casas e de famílias caridosas, nem sempre conseguiam sobreviver. Quando não eram comidos por animais das ruas, eram vítimas de moléstias, mantendo elevada a taxa de mortalidade infantil no país. O infortúnio de não sobreviver ou não ser criado pela própria família sinaliza o fato de que a infância ainda estaria sob processo de construção.
Não haveria, portanto, uma identidade infantil formada, haja vista que ao completar sete anos de idade, como mostra o historiador Luiz Lima Vailati, a criança se inseriria no mundo adulto, assumindo o lugar social que lhe foi reservado. Desse modo, a infância no Brasil ainda continuaria traçando seu caminho de busca por uma identidade que a diferenciasse da sociedade adulta até, pelo menos, a primeira metade do século XIX (Vailati, 2010, p. 86).
Crianças de elite e crianças escravas: a realidade social da infância no Brasil Imperial
Na historiografia da infância no Brasil Império, são relativamente diversificadas e abrangentes as temáticas trabalhadas por autores como Mary Del Priore, Ana Maria Mauad, Mariana Muaze e Manolo Florentino. O estabelecimento da corte portuguesa no Brasil e, anos mais tarde, a afirmação do Império marcaram o início de grandes transformações na sociedade e no cotidiano familiar, porque vários costumes europeus foram importados pelo Brasil, ora modificando, ora remodelando os padrões constituídos aqui. De acordo com Mariana Muaze, citando Ilmar Mattos,
a construção do Estado Imperial brasileiro se deu concomitantemente à constituição da classe senhorial, moldada em dois termos: restauração, mantendo as elites agrárias anteriores à emancipação brasileira do domínio português; e expansão, alargando suas bases a profissionais liberais, cafeicultores, funcionários públicos, enfim, à elite branca e proprietária que iria formar a boa sociedade imperial (Muaze, p. 18).
Nesse contexto de consolidação imperial e formação de uma sociedade regrada pelos moldes civilizatórios europeus, as famílias da elite buscaram afirmar-se em torno dos costumes e valores adaptados da Europa. A educação dessas crianças de elite seria um instrumento do Estado para a formação de uma sociedade “civilizada”. Nesse aspecto, a criança cumpria importante papel por absorver “mais facilmente um padrão de comportamento, incorporando-o como uma segunda natureza” (Muaze, p. 20). A educação sob a base dos princípios morais aconteceria dentro do lar; em contrapartida, caberia à escola apenas a instrução, não podendo, portanto, confundi-las. No que se refere a esta última, meninos e meninas recebiam formação diferenciada. De acordo com Ana Maria Mauad, “os meninos de elite iam para a escola aos sete anos e só terminavam sua instrução, dentro ou fora do Brasil, com um diploma de doutor, geralmente de advogado”. Para as meninas estariam reservadas as habilidades manuais e dotes sociais; a partir de meados de 1870, encontrar-se-ia também nos currículos escolares “um conjunto de disciplinas tais como línguas nacional, franceza e ingleza, arithmética, história antiga e moderna, mithologia [...] e obras de agulha de todas as qualidades” (Mauad, 2015, p. 150).
Além das obrigações de uma vida disciplinada, as crianças de elite também tinham momentos de lazer. Fontes documentais, como diários e fotografias, revelam os momentos prazerosos da infância e juventude das famílias abastadas. “Passeios ao zoológico, visitas à casa das irmãs, compras com a mãe e idas ao teatro” são exemplos do cotidiano de meninas como Bernardina, uma moça de 16 anos, moradora do Rio de Janeiro e filha de Benjamim Constant (Mauad, 2015, p. 168). Se, para crianças de elite, a construção social acontecia dentro do lar e da escola, a partir dos princípios morais, da boa conduta e dos aspectos intelectuais, cabendo-lhes o cumprimento de tais obrigações, para os filhos de escravos, a realidade era bastante diferente.
Crianças escravas eram desprovidas de qualquer direito desde o nascimento; nem sempre podiam ficar com a mãe, sendo vendidas mesmo bem pequenas. Apenas em 1869 foi instituída a lei que proibia a separação de famílias escravas por meio de venda, mas mesmo assim muitas vezes não era cumprida. Com cerca de quatro ou cinco anos de idade, ficavam reservadas às crianças escravas várias tarefas consideradas mais simples: “aos doze eram entregues ao trabalho mais pesado após a devida conclusão de seu ‘adestramento’” (Góes, 2015, p. 184). Aos quatorze anos ingressavam em trabalho semelhante ao que era realizado por escravos adultos. Nesse contexto, crianças cativas, quando não submetidas a fatalidades físicas (doenças e morte), eram fadadas a uma vida dura e cruel, restando-lhes apenas a “esperança” de, quem sabe, conquistar a própria liberdade.
“Desvalidos” no Rio de Janeiro republicano (1889-1930): uma breve apresentação
Aqui, pretende-se historicizar, embora sucintamente, a situação social das crianças “desvalidas” nas primeiras décadas do período republicano. Nosso objetivo é apontar a gênese das políticas públicas voltadas para os “menores” no contexto de transformação política, social e econômica que a capital brasileira estava passando na virada do século XIX para o século XX.
O fim da escravidão e a consolidação de um novo regime político-administrativo no país foram algumas das mudanças que o Brasil sofreu nos anos iniciais da Primeira República. Nesse processo, é preciso ressaltar dois fatores importantes para a compreensão das transformações que a capital brasileira estava vivendo nesse momento. O primeiro diz respeito à busca do Estado por incorporar os ideais europeus de modernização. Havia uma grande preocupação entre os dirigentes políticos com o “futuro da nação”. O segundo fator foi a urbanização. Com a lei da abolição da escravatura, novos agentes sociais, muitos deles ex-escravos e filhos de escravos recém-libertos, migraram para as cidades em busca de trabalho e moradia, gerando assim um progressivo crescimento populacional. Contudo, essa massa crescente tornou-se um problema social para a ideologia modernizante do Estado, levando-o a formular medidas públicas de contenção ou afastamento das classes sociais mais pobres para as periferias. Essa distinção de status social esteve presente não apenas na reorganização do espaço público urbano como também nas políticas sociais voltadas para a família e para a infância.
Nesse sentido, caberia agora ao governo promover medidas de “manutenção da paz social e do futuro da nação” (Rizzini, 2011, p. 26), mediante um discurso moralizador e civilizatório; isso incluiria “redesenhar” as funções e papéis familiares e o próprio ideário de infância. O Rio de Janeiro entrou nesse cenário histórico de transformação por ser a capital do Brasil e, não obstante, por ter grande importância para a implementação de políticas públicas voltadas para as crianças; sua influência ultrapassou as fronteiras regionais.
A principal referência para essa breve análise são os estudos da historiadora Irene Rizzini sobre políticas públicas e legislação voltadas para as crianças no século XX. Ela apresenta em pelo menos dois dos seus livros uma questão crucial que envolve a realidade social de crianças cariocas nos primeiros anos da República e que por certo chega aos dias de hoje: a vida de menores de rua da cidade do Rio de Janeiro. Para isso, a metodologia empregada em suas pesquisas empreendeu o diálogo entre o campo histórico e o campo jurídico, apontando sempre para as ações do Estado e da sociedade mediante a urgência pela busca de garantir à infância pobre os cuidados necessários para seu bem-estar.
Esse processo se deu a partir da formulação de uma série de projetos de lei que resultaram no primeiro Código de Menores, em 1927, modificando as formas de assistência aos “desvalidos” no Rio de Janeiro e no Brasil. Sendo assim, é importante para futuras análises considerar os apontamentos de como aconteceram tais mudanças, compreendendo a importância do âmbito legal para esse contexto e para o próprio processo de construção da infância nas primeiras décadas do século XX.
Referências
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RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2011.
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VAILATI, Luiz Lima. A morte menina: infância e morte infantil no Brasil dos oitocentos (Rio de Janeiro e São Paulo). São Paulo: Alameda, 2010.
Publicado em 14 de janeiro de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
MELO, Jennifer Silva. Breve histórico da criança no Brasil: conceituando a infância a partir do debate historiográfico. Revista Educação Pública, v. 20, nº 2, 14 de janeiro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/2/breve-historico-da-crianca-no-brasil-conceituando-a-infancia-a-partir-do-debate-historiografico
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