O ensino de Geografia e as relações étnico-raciais na escola

Clarice Israel Rocha e Silva

Licencianda de Geografia (UFJF), bolsista Pibid

Hérika Teixeira de Souza

Licencianda de Geografia (UFJF), bolsista Pibid

Lara Pereira Loures

Licencianda de Geografia (UFJF), bolsista Pibid

Leonardo Biage de Andrade

Mestre, professor da rede estadual de Minas Gerais, supervisor do Pibid Geografia (UFJF)

Gisele Barbosa dos Santos

Professora do curso de Geografia (UFJF), coordenadora do Pibid Geografia (UFJF)

O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência

O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) é um projeto que visa inserir os alunos que estão na primeira metade de um curso de licenciatura em escolas públicas, buscando aproximá-los do ambiente e do cotidiano escolar. O programa incentiva a observação e a reflexão sobre a prática profissional nas escolas de Educação Básica, por meio do desenvolvimento de atividades didático-pedagógicas com o auxílio do professor supervisor, contribuindo para o processo de formação docente. Dessa forma, cria possibilidades de surgimento de metodologias que possam ajudar nas problemáticas que envolvem a Educação Básica brasileira.

As instituições responsáveis pelo Pibid são a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Ministério da Educação (MEC), mas quem o mantém nos dias atuais é a Capes, disponibilizando bolsas a alunos (discentes das licenciaturas dos cursos envolvidos), professores supervisores (professores de escolas públicas que acompanham os discentes), coordenadores de áreas (docentes de licenciatura que coordenam os grupos) e coordenadores institucionais (docentes de licenciatura que coordenam o projeto institucional de iniciação à docência na instituição de ensino superior) (Capes, 2008).

No Pibid, as instituições de ensino superior devem, conforme os editais publicados pela Capes, expor seus projetos de iniciação à docência. Tais projetos são capazes de abranger de 24 a 30 discentes, três professores de escola de ensino básico e dois professores da instituição superior, sendo um voluntário. A Capes é quem seleciona as instituições que participarão do projeto e que receberá a cota de bolsas; os bolsistas (discentes) são escolhidos mediante seleções feitas pela instituição de ensino superior.

Dessa forma, no edital divulgado no primeiro semestre de 2018 apresentou-se o subprojeto Geografia: Práticas e Saberes no Diálogo entre Escola e Universidade para o Ensino de Geografia, do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora; as bolsistas selecionadas, autoras deste relato, foram designadas para atuar na Escola Estadual Governador Juscelino Kubitschek, com vigência do projeto até janeiro de 2020. Ali foram supervisionadas pelo professor de Geografia, que também apresenta seu relato neste artigo.

O Pibid Geografia na Escola Estadual Governador Juscelino Kubitschek

Especificamente em agosto de 2018, tivemos o primeiro contato com o Pibid e a escola, localizada nas coordenadas 7590113mN/670668mE, no bairro Santa Luzia, região sul da cidade de Juiz de Fora/MG. Os bairros vizinhos são: Ipiranga, Bela Aurora, Arco Iris, São Geraldo, Previdenciários, Jardim de Alá e Estrela Sul. Os estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental são, em sua maioria, moradores dos bairros de classe social baixa. Deles, cinco alunos moram no bairro Santa Luzia, quatro no Ipiranga, dois no Santa Efigênia e no Bela Aurora, um no Jardim de Alá e um no Alto Grajaú, bairro este localizado na região leste da cidade. A escola fica no limite dos bairros Santa Luzia e Estrela Sul (Figura 1), que resulta de um desdobramento do Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável, no qual houve uma reestruturação do espaço urbano de Juiz de Fora. Aprovado em 1990, este empreendimento imobiliário alterou a tipologia da paisagem, com a implantação de diversos condomínios voltados para classe média alta (Silvaet al.,2011).

Figura 1: Localização da E. E. G. Juscelino Kubitschek

O que se observa entre os bairros onde os estudantes moram e o local onde a escola está situada traduz o que Gottschalg (2011) retrata como dualidade urbana, resultante da segregação espacial e exclusão social, em que, lado a lado, existe uma cidade informal contrapondo-se à cidade formal. O bairro Estrela Sul possui atendimento de bens e serviços em infraestrutura básica e equipamentos públicos condizentes, legalidade fundiária, ambiente natural preservado. Já os bairros onde moram os estudantes, mesmo localizados próximo à zona central de Juiz de Fora, próximos a bairros valorizados pelo mercado imobiliário, apresentam topologia imprópria à construção e em algumas situações de risco, como ilustra a Figura 2. De acordo com Gerheim (2016), os bairros Santa Luzia e Santa Efigênia apresentam características de suscetibilidade a ocorrência de alagamentos, enxurradas e inundações, além de apresentar córregos poluídos e falta de áreas verdes.

Figura 2: Rua do bairro Santa Luzia (a); Rua do bairro Estrela Sul (b)

O Pibid, através de seu edital (GEO1807B – Pibid UFJF), permaneceu na escola durante o período de agosto de 2018 a janeiro de 2020. O programa contempla a licenciatura de Geografia com o grupo de discentes e o docente cujas atividades no segundo semestre de 2018 foram desenvolvidas em turmas do Ensino Fundamental e Médio; no ano de 2019, as atividades ficaram concentradas nas turmas de Ensino Fundamental.

Os encontros na escola ocorreram semanalmente para o desenvolvimento de atividades, observação e reflexão sobre as práticas pedagógicas, durante as oitos horas semanais. As reuniões com os coordenadores ocorriam no início e no fim de cada semestre, havendo discussão sobre o andamento das atividades na escola, além de orientações para o prosseguimento dos trabalhos, dúvidas e dificuldades encontradas no decorrer do projeto.

É valido ressaltar que o Pibid possui caráter propositivo, com temas transversais aos conteúdos geográficos que contribuem para a formação cidadã do educando. Temas como cidadania, Educação Ambiental, democracia, questões étnico-raciais e gênero, entre outros, deverão ser tratados com transversalidade aos conceitos, conteúdos e temas geográficos.

Assim, por meio de observações e reflexões que decorreram nas salas de aula, a necessidade para diligenciar sobre o racismo aflorou e se tornou essencial durante a permanência na escola.

Motivação ao tema

A motivação para trabalhar o tema do racismo ocorreu durante uma atividade em que o filme Hotel Ruanda (2004) estava sendo exibido para a turma do 9º ano, a fim de expor os conflitos decorrentes do neocolonialismo e da partilha da África, uma vez que aquele continente foi o assunto do primeiro capítulo abordado no bimestre escolar. Em seguida, foi realizado um debate entre os estudantes, com nossa mediação.

Durante a exibição do filme surgiram comentários racistas, gerando inquietação em nós, bolsistas, e no professor/supervisor, uma vez que a turma é majoritariamente negra. Com isso, foi decidido que havia necessidade de fazer uma pausa no filme e realizar uma roda de conversa com os alunos sobre o tema. Falas e atos racistas foram diversas vezes propagados com risadas durante a exibição de determinadas cenas, sobre o cabelo dos personagens africanos, a maneira como dançavam, demonstrando preconceito cultural e étnico, por muitos deles enraizados, além de expressões como afirmar que “Em Ruanda só existe pessoas negras”, reproduzindo um discurso eurocêntrico e estereotipado, visto que estavam centrados nos personagens estrangeiros do filme.

Ao verem um estrangeiro branco segurando um bebê negro, houve enorme estranhamento dos alunos por não verem ou reconhecerem uma pessoa branca segurar uma criança negra como algo representativo da sociedade. Vale ressaltar que não eram todos os alunos que externavam comentários preconceituosos, porém os demais estudantes não realizaram qualquer intervenção.

De acordo Francisco Junior (2008), as demandas da escola devem permear também a educação antirracista, uma vez que não problematizar o racismo na escola é reproduzir a sociedade discriminadora. Portanto, diante da postura dos estudantes, reunimo-nos para traçar estratégias pedagógicas capazes de provocar a reflexão crítica tanto no grupo que reproduzia falas carregadas de preconceitos raciais quanto naquele grupo que se mostrava indiferente e omisso frente ao episódio.

Justificativa ao tema

A busca pela reflexão e compreensão dos aspectos divergentes e contraditórios do espaço por meio do conhecimento geográfico está constantemente vivenciada pelas transformações sociais, pertinência essa que torna a Geografia um dos instrumentos de aproximação, construção e divulgação de temáticas essenciais, como a questão étnico-racial na formação estrutural brasileira e do continente africano como espaços de multipluralidade. Porém grandes hiatos permanecem no sistema educacional brasileiro, encarado por sua dinâmica, importância e desafios na formação de indivíduos sociais, principalmente quando tratada a relevância de uma educação para a igualdade racial.

Diante disso, a realidade se apresenta por outra forma, em que, de acordo com Suleiman (2014, p. 5), o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde afirmam que, através de

Vários estudos e pesquisas, a escola é considerada como um dos espaços sociais em que crianças e adolescentes negros/as defrontam-se de forma mais contundente com a vivência do racismo e da discriminação racial (...), ainda, um fator importante de evasão escolar. Assim, entendendo o ambiente escolar como uma das principais esferas de socialização, após a família, é de suma importância e necessidade de que existam referenciais sobre a história e cultura africana e afro-brasileira, a fim de desmistificar processos e práticas de uma visão eurocêntrica, hegemônica e democraticamente racial, tendo a Geografia relação direta com a constituição das relações raciais (...) falando de raça como constructo social.

Na realidade de um país racista e intolerante às diferenças com defasagens sobre as histórias e contribuições dos povos africanos na formação étnico-racial-cultural do território brasileiro, evidencia-se que com a educação existam possibilidades de formar indivíduos capazes de

desenvolver suas potencialidades de conhecimento, julgamento e escolha para viver conscientemente em sociedade, o que inclui também a noção de que o processo educacional, em si, contribui tanto para conservar quanto para mudar valores, crenças, mentalidades, costumes e práticas (Benevides, 1998, p. 34-35).

Dessa forma, a Lei nº 10.639, promulgada em janeiro de 2003, atua como o principal mecanismo de obrigatoriedade do ensino da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil em todas as escolas do país. “Não só devido à falta de formação e informação sobre os dados que desmascaram e revelam o racismo brasileiro, mas também pela insistente crença em nossa ideologia de democracia racial” (Suleiman, 2014, p. 370).

Desse modo, o objetivo deste texto é explanar a prática vivenciada dentro do contexto de uma escola pública que, por intermédio do Pibid/UFJF, foi possível alcançar e se inquietar sobre as lacunas abertas que permeiam a Educação Básica quanto ao conceito de racismo como

uma forma de “naturalizar” a vida social, isto é, de explicar diferenças pessoais, sociais e culturais a partir de diferenças tomadas como naturais. A atitude na qual se baseia o racismo, assim como todas as outras formas de naturalização do mundo social, está presente (...) quando se considera que alguém, portador de uma certa identidade racial ou regional (como um baiano, por exemplo), deva reagir a condições climáticas ou sociais de uma certa maneira “predita” por sua identidade social (Guimarães,1991, p. 11-12).

Além do entendimento sobre os conceitos trabalhados dentro e fora de sala de aula, assuntos foram contemplados na medida em que extrapolavam não só o ambiente escolar como a realidade da juventude brasileira e a conscientização e a relação, sobretudo, da história africana e afro-brasileira quanto aos “caminhos pelos quais a Geografia escolar em suas especificidades, com conceitos e categorias próprios, pode contribuir com o ensino das relações étnico-raciais em seus conteúdos” (Souza, 2016, p. 4).

Ação prática 

Concordamos com Coqueiro (2011), quando afirma que a escola é um lugar privilegiado para a discussão da questão do preconceito em todas as suas facetas, pois, uma vez que ela reproduz o mundo social, no seu interior estão presentes as ideologias que estruturam o modo de ser e fazer na sociedade brasileira. Assim sendo, como forma de discutir na escola a questão do racismo e de realizar uma reflexão crítica juntamente com os alunos, as bolsistas e o professor, foram desenvolvidos três atividades práticas com a turma: roda de conversa, Jogo do Privilégio e palestra.

Roda de conversa

Como já citado, houve a necessidade de interromper a exibição do filme na aula seguinte e realizar uma roda de conversa em que foram abordados temas como racismo estrutural no Brasil e escravidão. Essa pausa tornou-se necessária para que não fosse considerada natural, de nossa parte, diante dos comentários que tanto nos incomodaram, pois, de acordo com Santos (2009, p. 2),

educar para a igualdade racial é, portanto, interferir na constituição de referenciais, dos saberes que interferem decisivamente na formação de personalidades, visões de mundo e dos códigos comportamentais que orientam a forma como o indivíduo se percebe/posiciona no mundo – como ele vê o mundo e aprende a transitar, a se movimentar nele. (...) Ninguém nasce racista, as práticas sobre as quais se assenta o racismo são aprendidas, apreendidas e naturalizadas por indivíduos e grupos em seu processo de socialização – ou, de educação, se compreendemos esta como sendo o campo da formação humana.

A roda de conversa encorajou os estudantes a relatarem discriminações e preconceitos sofridos em diversos espaços da cidade – em ruas, lojas e shoppings, entre outros. Prosseguimos, então, com a exibição do filme e sentimos a turma com um olhar mais atento diante da realidade mostrada, pois não houve mais risadas e comentários racistas. No entanto, consideramos que era ainda necessário provocar uma reflexão mais profunda; após algumas semanas, realizamos a dinâmica do Jogo do Privilégio.

Jogo do Privilégio

O Jogo do Privilégio é uma ação que tem por objetivo mostrar na prática as vantagens raciais e como acontece a distribuição de privilégios em nossa sociedade. O jogo foi idealizado pelo Instituto Identidades do Brasil (ID_BR) com o intuito de mostrar como a desigualdade racial é uma desvantagem em todos os aspectos da vida de uma pessoa negra. O Instituto Identidades do Brasil é uma organização sem fins lucrativos, pioneira no Brasil e 100% comprometida com a aceleração da promoção da igualdade racial.

O jogo é começa com todos os participantes em uma linha de partida e perguntas sobre classe social, situação econômica, raça e gênero são feitas aos jogadores; conforme suas respostas, eles recebem comandos para dar um passo à frente, um passo atrás ou ficar parados. Por exemplo: “Se você pode cometer erros e não ter seu comportamento atribuído a falhas da sua raça ou gênero, dê um passo à frente”; “Se você já sentiu que não existe, na mídia, uma representação adequada ou precisa do seu grupo racial, orientação sexual, gênero ou deficiência, dê um passo para trás”. O objetivo é, ao final do jogo, observar e refletir como na vida as linhas de partida de cada indivíduo se dão em posições diferentes: uns partem de uma posição mais à frente, privilegiada, enquanto outros mais de trás.

Para realizar a dinâmica, levamos os alunos para o pátio da escola. Marcamos no chão com fita crepe tanto a linha inicial de partida quanto as demais linhas. No dia estavam presentes 15 alunos e realizamos 35 perguntas (Quadro 1).

Quadro 1: Perguntas do Jogo do Privilégio

Jogo do Privilégio

1. Se seus pais trabalharam noites e fins de semana para sustentar sua família, dê um passo para trás.
2. Se você é capaz de mover-se pelo do mundo sem medo de abuso sexual, dê um passo à frente.
3. Se você pode mostrar afeição pelo seu par romântico em público sem medo de ser ridicularizado ou violentado, dê um passo à frente.
4. Se você já foi diagnosticado como portador de alguma doença/limitação mental ou física, dê um passo para trás.
5. Se a língua principal falada na casa em que você cresceu não foi o português, dê um passo para trás.
6. Se você veio de um ambiente familiar que lhe deu apoio constante, dê um passo à frente.
7. Se você já tentou mudar sua fala ou “maneirismos” para ganhar credibilidade, dê um passo para trás.
8. Se você pode ir a qualquer lugar do país e facilmente encontra os produtos e cosméticos apropriados para sua cor de pele e cabelo, dê um passo à frente.
9. Se você já se sentiu envergonhado por causa das suas roupas ou da sua casa na sua infância ou adolescência, dê um passo para trás.
10. Se você pode cometer erros e não ter seu comportamento atribuído a falhas da sua raça ou gênero, dê um passo à frente.
11. Se você pode casar-se legalmente com a pessoa que você ama, independentemente do lugar onde você mora, dê um passo à frente.
12. Se você nasceu no Brasil, dê um passo à frente.
13. Se você ou seus pais já passaram por divórcio, dê um passo para trás.
14. Se você tinha acesso adequado a comidas saudáveis na sua infância e adolescência, dê um passo à frente.
15. Se você tem uma razoável certeza de que seria contratado para um trabalho baseado nas suas habilidades e qualificações, dê um passo à frente.
16. Se você não pensaria duas vezes antes de ligar para a polícia quando tem um problema, dê um passo à frente.
17. Se você pode consultar um médico sempre que julgar necessário, dê um passo à frente.
18. Se você se sente confortável sendo emocionalmente expressivo/aberto, dê um passo à frente.
19. Se você alguma vez já foi a única pessoa da sua raça/gênero/status econômico/orientação sexual em uma sala de aula ou ambiente de trabalho, dê um passo para trás.
20. Se você já fez empréstimos ou financiamentos para pagar sua educação, dê um passo para trás.
21. Se suas celebrações religiosas têm feriados nacionais, dê um passo à frente.
22. Se você trabalhava durante o Ensino Médio ou faculdade, dê um passo para trás.
23. Se você se sente confortável voltando para casa a pé, sem companhia, à noite, dê um passo à frente.
24. Se você já fez alguma viagem para o exterior, dê um passo à frente.
25. Se você já sentiu que não existe, na mídia, uma representação adequada ou precisa do seu grupo racial, orientação sexual, gênero ou deficiência, dê um passo para trás.
26. Se você tem certeza de que seus pais seriam capazes de auxiliar você financeiramente se você estivesse passando por dificuldades financeiras, dê um passo à frente.
27. Se você já sofreu bullying ou foi ridicularizado por causa de algo que você não pode mudar, dê um passo para trás.
28. Se havia mais de 50 livros na casa onde você cresceu, dê um passo à frente.
29. Se você estudou a cultura ou história de seus ancestrais na escola, dê um passo à frente.
30. Se seus pais ou tutores frequentaram a faculdade, dê um passo à frente.
31. Se você já saiu de férias com a família, dê um passo à frente.
32. Se você pode comprar roupas novas ou jantar fora quando você quer, dê um passo à frente.
33. Se você já teve um trabalho oferecido a você por causa de uma amizade ou membro da família, dê um passo à frente.
34. Se algum de seus pais já foi demitido ou ficou desempregado sem decisão própria, dê um passo para trás.
35. Se você já se sentiu desconfortável com uma piada ou comentário relacionado à sua raça, etnia, gênero, aparência ou orientação sexual, mas se sentiu inseguro para confrontar a situação, dê um passo para trás.

No decorrer da dinâmica percebemos que os alunos não estavam familiarizados com discussões relacionadas a raça, gênero e classe social, sobretudo no ambiente escolar, e que eles ainda não tinham refletido criticamente sobre essas questões e como isso está envolvido com a vida de cada um. Isso pode ser atribuído à Pedagogia da ausência da reflexão-ação sobre o assunto no espaço escolar (Matos et al., 2009).

Para finalizar a dinâmica, explicamos para a turma o intuito do jogo e sua lógica, como o preconceito racial está presente no cotidiano e como a sociedade brasileira perpetua a manutenção da desigualdade social, da discriminação e do racismo, reproduzindo a pobreza, a desigualdade, os estereótipos raciais e as discriminações de gênero (Souza, 2016). A partir daí, novamente alguns discentes negros relataram situações pelas quais haviam passado, como abordagens policiais sem motivo e “perseguição” por seguranças em lojas e supermercados. Como aborda Souza (2016, p. 5),

compreendemos que a educação e a escola têm um importante papel no combate ao racismo e à discriminação de um modo geral, pois a formação das pessoas passa pela escola e ali os/as alunos/as conhecem visões de mundo que podem orientar o seu posicionamento frente aos fatos e situações. Se a escola tornou-se um espaço construído de imagens e representações negativas sobre o negro, ela também pode ser um importante local de discussão sobre as mesmas na busca pela superação do racismo e das discriminações.

A fim de espacializar as posições no final do jogo, segue o croqui desenvolvido com a configuração e a imagem dos alunos (Figura 3).

Figura 3: Dinâmica Jogo do Privilégio

O croqui representando a espacialidade dos alunos ao finalizarmos a prática do Jogo do Privilégio mostra que as posições periféricas são compostas pelas noções de gênero e cor consideradas discriminatórias: estudante mulher e negra ocupa o último lugar, enquanto o estudante homem e branco está no primeiro lugar desde a partida da linha inicial.

Figura 4: Posicionamento final do Jogo do Privilégio

A configuração final do jogo nos remete a outro elemento importante na organização social brasileira, que extrapola a temática do racismo: a questão de gênero, destacando-se seus desdobramentos para o feminismo negro. De acordo com Carneiro (2003), o feminismo é de origem branca e ocidental; portanto, se pautou nas questões das diferenças de gênero, cabendo destacar a importância do feminismo negro, em que mulheres não brancas e pobres, de todas as partes do mundo, lutam para integrar em seu ideário as especificidades raciais, étnicas, culturais, religiosas e de classe social.

Palestra

Considerando a faixa etária da turma, entre 16 e 18 anos, e o fato de alguns alunos já estarem buscando entrar no mercado de trabalho, convidamos o professor Leandro Assis para dar uma breve palestra sobre sua dissertação de mestrado, intitulada Serviço de preto: o trabalhador negro inserido no mercado de trabalho juiz-forano. O objetivo era apresentar aos alunos as relações de trabalho da cidade de Juiz de Fora, abordando a desigualdade de tratamento entre trabalhadores brancos e negros, mesmo que atuando nas mesmas funções.

No entanto, logo no início de sua fala o palestrante percebeu que os alunos não sabiam explicar o que era racismo, discriminação e preconceito. O desconhecimento desses conceitos básicos pela turma mostra como possivelmente eles não tiveram contato com o assunto na trajetória escolar. Dessa forma, vemos como há uma negação pela omissão no contexto escolar dessas questões e das relações étnicos-raciais. A esse respeito, Matos et al. (2009, p. 134) dizem que

a escola, muitas vezes, desconhece e desconsidera os múltiplos enfoques que envolvem as relações étnico-raciais, como por exemplo: a) mecanismos sociais do estabelecimento do racismo; b) as diversas práticas da discriminação; c) as técnicas de convencimento, nem sempre claras, de colocar o outro em situação de baixa autoestima; d) quem, quando e por que alguns se beneficiam das relações racistas; e) como os racializados podem agir para escapar das relações racistas etc. A desconsideração da complexidade da questão arrasa a diversidade e coloca submersos os diferentes e, assim, as ações educativas pretensamente democráticas acabam por ser discriminatórias.

Diante dessa situação, o foco da palestra ficou em discutir e explicar tais conceitos para a turma. Para ser mais didático e envolver a realidade dos alunos, o palestrante fez questionamentos como “Com quantos médicos negros vocês já foram consultados? Quantos professores? Quantos advogados?”. A partir daí também foram surgindo temas como cotas raciais, ensino superior e profissões.

Houve interesse da turma pela palestra, perceptível pelo envolvimento que os alunos demonstraram com os questionamentos levantados, respondendo que nunca foram consultados por médicos negros e tiveram poucos professores negros em sua trajetória escolar.

Relato do professor/supervisor

O tema emerge de discursos racistas que muitas vezes são considerados naturais em nossa prática cotidiana no espaço escolar. Como supervisor, ainda não havia aprofundado essa temática como abordagem central em diferentes grupos etários escolares na minha prática pedagógica. Essa experiência foi de grande valia, uma vez que muitos conceitos, metodologias, habilidades e competências inerentes ao tema racismo nunca haviam perpassado minhas aulas.

Em um primeiro momento, foi um desafio pessoal a ser superado, dada a grande carga horária de trabalho; mas, ao final, além de trazer conhecimento, foi um importante elo de aproximação com o cotidiano dos alunos reafirmando o que já foi apresentado em Freire (2011, p. 25):

não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.

Uma vez que os alunos trouxeram, pelas provocações, suas experiências com abordagens racistas que já sofreram, eles também assumem o protagonismo do processo de ensino-aprendizagem.

Relato da coordenadora: o saber da academia e o Pibid

Coordenar o Pibid foi um momento importante de encontro entre formadores: eu, como coordenadora e representante da educação superior, e o supervisor que representa a Educação Básica. De acordo com Lopes et al.(2017), esse programa pode ser considerado, além de um campo de extensão e ensino, um campo privilegiado de observação e de investigação para o coordenador. Nesse sentido, destaco que foi enriquecedora a dialogicidade de experiências vivida pelos bolsistas e pelo supervisor, desde as etapas de observação até a culminância dos resultados construídos por métodos e práticas pedagógicas propositivos, embasados na teoria ora buscada na academia.

Considero que, para além da importância de incentivar a aquisição de uma consciência progressiva sobre a prática, sem desvalorizar a importância dos contributos teóricos (Sacristán, 1995), os bolsistas e o supervisor que atuaram na E. E. G. Juscelino Kubitschek souberam ressignificar os limites da teoria em suas atuações práticas, cabendo destacar o protagonismo dos bolsistas no que tange ao caráter reflexivo e crítico para atuar nas temáticas e nos conceitos geográficos difundidos e discutidos no âmbito universitário. Por fim, ressalto a importância do Pibid pelo importante diálogo entre os professores formadores.

Considerações finais

Durante o primeiro semestre de 2019, em que as atividades foram desenvolvidas, percepções e relatos presenciados demonstraram grande dificuldade ao tratar de temas estranhamente desconhecidos por diversos alunos, despertando, assim, sentidos e sensações nas pibidianas pela busca por uma educação pública, gratuita e de qualidade que abarcasse, através da Geografia, a importância do (re)conhecimento do povo negro e, consequentemente, o olhar dos jovens para o entorno, do interno ao externo, seja diante da família, do bairro, da cidade, do país e de suas próprias relações sociais. Assim, foi possível observar e presenciar que, diante do cenário político-sócio-cultural do Brasil, há muitos desafios a encarar e alternativas como ações práticas no desenvolvimento do pensamento crítico e da autoconsciência dos jovens negros.

Contudo, a busca primordial esteve envolvida com o rompimento dos modelos estereotipados e eurocêntricos engendrados na sociedade brasileira, assim como com “as reflexões atinentes ao processo educacional, essenciais para a construção da cidadania plena em meio à diversidade étnico-racial” (Santos, 2014, p. 12). De modo geral, nota-se que não houve muitos avanços na perspectiva dos jovens, mas também não houve retrocesso por parte dos alunos na repercussão do preconceito, da discriminação e do racismo, observados antes das ações práticas realizadas. Durante e após as atividades, percebe-se um “cansaço” sobre o tema por parte dos estudantes, embora o Jogo do Privilégio tenha sido relevante para alertar os alunos sobre a realidade racista da sociedade; desse modo, observam-se mudanças comportamentais da turma na presença das bolsistas nas aulas de Geografia.

Portanto, o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência gerou a oportunidade de trabalhar e levar para o contexto escolar e da Geografia a multiculturalidade, o conhecimento, a realidade social brasileira, mas, sobretudo, as vivências e trocas de experiências entre bolsistas e alunos da rede pública de ensino sobre o conhecimento geográfico por meio de um novo olhar comprometido com as questões étnico-raciais.

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Publicado em 09 de junho de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

SILVA, Clarice Israel Rocha e; SOUZA, Hérika Teixeira de; LOURES, Lara Pereira; ANDRADE, Leonardo Biage de; SANTOS, Gisele Barbosa dos. O ensino de Geografia e as relações étnico-raciais na escola. Revista Educação Pública, v. 20, nº 21, 9 de junho de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/21/o-ensino-de-geografia-e-as-relacoes-etnico-raciais-na-escola

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