Jornal da EJA: uma experiência e tanto...

Fábio Roberto Ferreira Barreto

Mestrando (USP), professor de Língua Portuguesa da rede municipal de São Paulo

É consensual que a heterogeneidade seja característica do corpo discente da modalidade de ensino EJA (Educação de Jovens e Adultos). Mais do que nas classes de ensino regular, cada turma – e, em cada uma das salas de aulas, cada estudante – tem uma história peculiar, em razão de competências específicas, de conhecimentos prévios particulares e de experiências singulares vivenciadas ao longo de suas trajetórias de vida e de escolarização.

Por essa razão, faz-se necessário ter sensibilidade para diagnosticar estratégias de ensino-aprendizagem que não afetem a autoestima dos educandos, quer por “estar muito aquém ou além do que os estudantes precisam naquele momento para superarem os desafios” (São Paulo, 2019, p. 120). Em se tratando de Língua Portuguesa, o educador deve dimensionar ações que, dada sua complexidade, não afastem o educando que se sinta mais inseguro, tampouco, dada sua simplicidade, não desestimulem o educando que se sinta menos desafiado. Assim, ainda que seja superada a concepção de que a responsabilidade pelo desenvolvimento e/ou aprimoramento das competências leitora e escritora sejam de exclusividade de uma área do conhecimento, é por meio dessa disciplina que o trabalho com textos deve ser mais denso: “Em suas hipóteses de escrita ou de construírem novos conhecimentos relativos à Língua Portuguesa” (São Paulo, 2019, p. 120).

No primeiro semestre de 2019, as turmas 4° TC e 4° TD foram atribuídas a mim em um bloco fechado de aulas para EJA (do qual havia, ainda, outras três turmas de outros anos escolares), na EMEF CEU Cantos do Amanhecer, da Diretoria de Ensino de Campo Limpo (rede municipal da capital paulista). Dessas duas turmas de que o relato trata, a primeira se constituía majoritariamente de estudantes aos quais havia lecionado no semestre anterior (o último de 2018); a segunda era uma novidade em todos os aspectos: em seus conhecimentos prévios de conteúdos escolares e em suas histórias de vida. À medida que aplicava os instrumentos diagnósticos, no início do bimestre, percebi que era possível utilizar as mesmas estratégias para garantir conteúdo comum às duas turmas para as quais lecionaria. Identifiquei desde o primeiro momento que um grupo de estudantes de ambas as turmas demandava sensibilidade no ato de avaliar, em razão de causas diversas – retorno à escola após lapso temporal considerável, dificuldades extremas em relação ao domínio de convenções ortográficas, bem como a desvios gramaticais, irregularidade na frequência escolar. Ao mesmo tempo, notei o potencial e – especialmente – o desejo de explorar competências e habilidades em outro grupo, proporcionalmente grande se considerados apenas os estudantes assíduos.

Por essa razão, no que se refere à produção textual, estipulei aprofundar-me no artigo de opinião no transcorrer do primeiro bimestre e centrar-me em reportagem, no decorrer do segundo. Apostei em trabalhos individuais em relação ao primeiro e em trabalhos coletivos no segundo.

Objetivos

Especificamente no que diz respeito ao gênero reportagem, não poderia perder a oportunidade de associar tal prática a questões sociais do cotidiano dos estudantes. Por essa razão, procurei desenvolver competências e habilidades para escrever reportagens que tivessem impacto social no contexto em que estavam inseridos. Ao mesmo tempo, pretendi também ampliar competência para escrever textos argumentativos; aprimorar a capacidade de produzir textos na esfera jornalística, em especial reportagem; ensinar técnicas de composição do gênero reportagem por meio de estratégias de coleta informações de testemunhas e fontes oficiais; aperfeiçoar a capacidade de utilizar técnicas de pesquisa, especialmente resumo e paráfrase; aprimorar a capacidade de fazer citação de textos alheios; demonstrar como se articula um texto autoral do gênero reportagem, utilizando fontes alheias; fazer com que entendessem como se coadunam textos verbais, não verbais e mistos na composição da reportagem; amplificar conhecimentos sobre regras de pontuação; melhorar a capacidade de trabalhar em grupo; demonstrar que o aparelho celular pode ser bem empregado em ambiente escolar.

Do desenvolvimento do trabalho: questões didáticas e metodológicas

1° – Familiarização com o gênero (na terceira semana de maio)

Familiarizar estudantes com o gênero reportagem, por meio da promoção de leitura compartilhada do texto Uso de celular em sala de aulas (disponível em livro didático destinado aos anos finais do ensino regular: CEREJA, 9° ano, p. 139). Com base nesse texto, apresentei elementos de reportagem: título, subtítulo, citações, dados, gráficos.
Outrossim, procurei, desde o texto de familiarização inicial, fazer distinção entre notícia e reportagem; em síntese, aquela visa a apresentar um fato sem se expressar explicitamente sobre ele, ao passo que este se posiciona sobre o fato (razão pela qual recorre a informações, argumentos, testemunhas, fontes diversas etc.).

2° – Ampliação de noções sobre o gênero (além de ser importante ressaltar, registre-se, que o elevado número de faltas dos educandos obriga o docente a reiterar conceitos; entre a penúltima e última semana de maio)

Na sequência, procurei promover a leitura em grupo de um dos textos:

  1. Conselheiros tutelares avaliam impacto do decreto de porte de armas nas periferias, publicado por Desenrola e não me enrola (coletivo de jornalismo da Zona Sul da cidade de São Paulo); ou
  2. Decreto de Bolsonaro pode levar aéreas estrangeiras a cancelar voos para o Brasil, publicado pela Folha de S. Paulo.

Considerei nesta etapa também os seguintes aspectos: apreensão de ponto de vista da reportagem; posicionamento do grupo sobre o ponto de vista do grupo sobre o texto; exposição do grupo a outros grupos. Para tanto, me vali de duas fontes de mídia escrita bastante distintas: uma de cunho ativista, outra comercial. A preocupação de ambas, demasiadamente relevantes, embasaram a discussão acerca de preocupações de pautas de cada equipe editorial: social versus mercado.

3° – Seleção de temas para produção de reportagens (última semana de maio)

Estipulei que os grupos tivessem a opção de escolher um dos temas:

  1. redução de funcionários de conservação e limpeza (no contexto, a prefeitura havia reduzido em dois terços a quantidade de colaboradores desse setor, impactando na qualidade dos serviços prestados e na renda de trabalhadores do bairro);
  2. importância de atividades no teatro;
  3. tipos de aulas promovidas pelos professores: projeto, sem projeto;
  4. importância das disciplinas para os estudantes (ou, se preferissem, do professor);
  5. importância das salas de leitura e informática para melhorar a relação ensino-aprendizagem.

Para garantir que nenhum estudante fosse coibido de escrever sobre o assunto de sua escolha, permiti ainda a inserção de temas não sugeridos, desde que o grupo relacionasse a proposta de reportagem a questões escolares. Como ensina Paulo Freire, “por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas descuidadas da cidade?” (Freire, 1996, p. 15).

4° – Produção coletiva de textos com utilização de celulares e editores de textos (entre a primeira semana de junho e a primeira semana de julho)

Nesta etapa, orientei os educandos sobre estruturas textuais nas quais se fizeram obrigatórias as inserções de:

  1. falas de testemunhas;
  2. inserção de elementos visuais (em nosso caso, por meio do combinado), especificamente, um gráfico;
  3. publicação de foto produzida pelo grupo.

Ademais, organizei equipes para o trabalho em grupo. Optei por deixá-los livres para escolher os membros, tentando intervir apenas em casos bem específicos. Ao finalizar a montagem de grupos, estipulei um combinado sobre o trabalho de orientação que exerceria: cada equipe deveria formar um grupo no WhatsApp, no qual seriam inclusos: o docente da sala (eu) e os integrantes da equipe, nomeando conforme combinado entre professor e turma de estudantes (exemplificando: GRUPO 1 4TC, GRUPO 2 4TC...).

Combinei que, a partir desse momento, as orientações dar-se-iam em sala de aula e por meio de rede social. O uso do grupo de WhatsApp, ressaltei eu, deveria se restringir a assuntos relacionados ao trabalho proposto e que as orientações seriam dadas sempre que o professor estivesse disponível, não ultrapassando, contudo, o prazo doze horas (mesmo no final de semana).

5° – Revisão/Reescrita (última semana de junho e primeira semana de julho)

Orientei os educandos à medida que as informações coletadas foram suficientes para dar início à escrita, considerando:

a) discussões com os grupos sobre o material coletado;
b) reflexões sobre como sequenciar os textos, uma vez que não se trataria de apresentar depoimentos de testemunhas sequenciados, mas tópicos argumentativos sequenciados (demandando pelo menos duas ou três reescritas por grupo);
c) exigência de que se escrevesse por meio de editor de textos, preferencialmente Word, encaminhando ao e-mail do docente responsável (fornecido por WhatsApp desde o primeiro momento).

Para cada versão encaminhada pelos estudantes ao professor por e-mail, no retorno que lhes era dado, além de orientações na própria versão escrita produzida pelo grupo, também por correspondência eletrônica eram feitos envios de áudios por meio de WhatsAppsobre procedimentos a serem adotados no processo de reescrita, sempre na perspectiva de tornar o processo mais eficaz.

A despeito de fornecer dicas acerca de aspectos relacionados a desvios gramaticais e normas de convenção de escrita, foi dado auxílio na revisão final do texto em aspectos correcionais, bem como na diagramação – inicialmente projetado para acontecer em grupo, na sala de informática, com apoio de profissionais da sala, mas sendo feito por mim em razão de algumas de nossas aulas terem sido impossibilitadas por aplicação de avaliação da rede municipal de ensino por meios digitais, em junho.

6° – Edição de exemplares do Jornal da EJA, colocação em painéis da escola, no blog da EMEF CEU Cantos do Amanhecer e no Portal da Secretaria Municipal de Educação

Para que o texto exercesse sua função social, fiz a impressão de aproximadamente quarenta exemplares em minha casa (a Gestão Escolar apoia os trabalhos docentes, mas, à época, estava sem tinta colorida). Distribuí-os aos estudantes envolvidos e à Gestão Escolar, à Biblioteca e a algumas pessoas da comunidade. Por fim, elaborei um texto para que a Imprensa Jovem da unidade escolar pudesse publicar no blog EMEF CEU Cantos do Amanhecer.

A edição na íntegra dos textos dos estudantes está disponível no blog da escola.

Considerações finais

A experiência foi bastante exitosa em diversos sentidos. Além de potencializar competências e habilidades específicas da disciplina de Língua Portuguesa, permitiu ampliar a capacidade de envolvimento com colegas de sala, bem como uma reflexão sobre o papel que cada um pode exercer em prol da coletividade por meio da reflexão e da ação. Especificamente, ao final do processo, foi satisfatório como docente perceber que havia feito com que os alunos compreendessem que o ato de escrever um texto não é artificial, tal qual se vende muitas vezes na escola; na verdade, requer repertório para fazê-lo, além de dedicação à escrita e à reescrita, até que se possa chegar a uma versão a contento do que se pretende tratar no gênero discursivo produzido. Ademais, em se tratando de um momento histórico de supressão de investimentos públicos em educação, e de modo incisivo na Educação de Jovens e Adultos, é sabido que provar a eficácia da escola pública para formar cidadãos que tenham domínio de técnicas e, sobretudo, consciência ética, é essencial. Por fim, como o grupo escolar de Educação de Jovens e Adultos, não raro, sofre com o preconceito e com a infantilização de não poucos educadores, esta experiência serve para, em coro com tantas outras, estimular as reflexões acerca da heterogeneidade das turmas desse segmento. Não se trata de nivelar por cima, em oposição à prática comum de rebaixar expectativas, mas, respeitando as diversidades da Educação de Jovens e Adultos, lançar desafios pelo respeito que se deve ter pelo estudante. Apenas para frisar, isso não quer dizer abandonar os que tenham dificuldades para executar um trabalho desse porte, o que é outra história, a qual, tendo distintos propósitos do relato feito, não cabe aqui.

Para encerrar, Paulo Freire: “Quando falo em educação como intervenção me refiro tanto à que aspira a mudanças radicais na sociedade, no campo da economia, das relações humanas, da propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educação, à saúde, quanto à que, pelo contrário, reacionariamente pretende imobilizar a história e manter a ordem injusta” (Freire, 1996, p. 56).

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25a ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

HOUAISS. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

KOTSCHO, Ricardo. A prática da reportagem. São Paulo: Ática, 2000.

LAGE, Nílson. A reportagem. Teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. Rio de Janeiro: Record, 2001.

SÃO PAULO (Capital). Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da Cidade: Educação de Jovens e Adultos – Língua Portuguesa. São Paulo: Secretaria Municipal de Educação. 2019.

Publicado em 30 de junho de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

BARRETO, Fábio Roberto Ferreira. Jornal da EJA: uma experiência e tanto... Revista Educação Pública, v. 20, nº 24, 30 de junho de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/24/jornal-da-eja-uma-experiencia-e-tanto

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