Alucinação dourada
Francisco das Chagas de Oliveira
Licenciado em História (UPIS), bacharel em Ciências Sociais (UnB), licenciando de Ciências Sociais (IFG), analista de políticas públicas e legislação brasileira de educação.
Toda vez que o humorista precisa explicar a piada, ele morre. Lá vou eu me deitar no caixão outra vez.
Ah, aquelas minhas reticências faciais... Os lábios contraídos segurando o riso, aquilo fazia com que a marcha das horas fosse menos pesada sobre as minhas costelas, porque meu trabalho era um sapato importado usado por um cara suntuoso e gordo a me espremer contra o chão durante todo o expediente.
Eu trabalhava em uma franquia de uma lanchonete 24 horas perto do centro da cidade. Meu trabalho era simples. Eu perguntava: “Qual a forma de pagamento?”. E aquilo se repetia infinitamente da meia-noite até às seis da manhã, acompanhado de um bip hipnótico e incessante que trucidava os meus ouvidos e debulhava minha consciência dentro de nada. Fantásticas tempestades brancas de sal caíam nas batatas preparadas pelo Arlindo, uma das almas penadas que dividia comigo o suplício. A fumaça de gordura dos embutidos tomava nossos corações, nos mantendo nauseados enquanto a chapa da cozinha vomitava gordura no ar. Eu estava prestes a adoecer.
Entre um cliente e outro e a chiadeira da chapa eu imaginava a luz me cegando diante do público, acima da minha cabeça meu nome brilhava em luz forte como uma auréola, o microfone na mão, qualquer situação banal envolvendo um domingo em família, um supermercado, uma ofensa indecifrável ou um engano ao telefone. Coisas que na verdade não iam além de uma distração torpe e sem sentido. Histórias medíocres para plateias abaixo da mediocridade. Meu público e eu nos identificaríamos bem. Todos gargalhando absortos na mais completa letargia das minhas histórias.
Eu lhes daria o que eles queriam, seria a agulha e a seringa da certeza de que não ia me apossar de nada que estava abrigado sob seus domínios, pois aquilo tudo não passava de tempo inútil e dinheiro insignificante, não era o que verdadeiramente lhes pertencia. Ao laçar seus braços e bater em suas veias, a anestesia entraria com vigor, minhas piadas como um remédio sem efeito colateral, dóceis e inofensivas.
Meus cálculos manteriam todos calmos, não haveria ameaça a nada que estivesse realmente incrustado em suas cabeças. Eu me faria ininteligível quando fizesse isso, e todos dormiriam em paz. Porque é isso que eles sempre desejam. Eu ia me curvar ao sabor da língua que eles falavam, e, quando do beijo, o gosto de sumo de limão passado travaria minhas papilas.
Aqui vai uma. A tempestade de sal a cortar o céu da boca dos clientes.
Eu ia invadir o espírito deles mais uma vez, porque era o que eu sabia fazer todos os dias, desde que havia começado naquele lugar. Eu não queria mais ser esmagado. Você precisa dessa guerra, eu dizia a mim mesmo. Eu enfrentava há dois anos aquele conflito interminável debaixo de luzes vermelhas e amarelas.
Eu levanto minha voz, e de trás da caixa registradora eu armo a piada para um dos clientes que movimentava de maneira bovina sua mandíbula enquanto comia um sanduíche. Um fio de molho e um pedaço de alface escorriam do lábio até o seu queixo.
Ele ri desesperado, resquícios de comida são lançados sobre a mesa enquanto ele ofega de boca aberta, o som de sua gargalhada incomoda os outros clientes, mas imediatamente a piada corre o lugar inteiro, por meio dele tudo se transforma numa coisa ainda mais bizarra e inusitada, uma espécie de telefone sem fio no qual eu decido não interferir. As mesas todas riem escandalosamente, eu era bom. Essa era sobre um índio que vendia dindins de cachaça e bilhetes de loteria na plataforma superior da rodoviária.
Eu não tive tempo para entrar no mesmo delírio, ao passo que o frenesi ia morrendo e a alucinação dourada sumia, eu adoeci. O esforço para achar sentido naquela loucura fadigou-me veementemente. Adoeci lá no meu estômago, fundo nas minhas chantagens gástricas havia alguém que não queria mais fazer o que fazia. Era como se eu tivesse engolido a mim mesmo e agora não pudesse digerir-me. De unhas afiadas, eu tentava escavar meu estômago, tentando irromper violentamente de novo pra fora de mim. Eu havia me tornado o rato no balde, que de maneira inversa fugia atroz da chama infernal do meu estômago.
O suor frio desceu áspero pela minha testa e senti meu rosto congelar; olhei o chão, a vista escureceu, pedi socorro de forma ridícula, porque não havia como ser de outra forma. O uniforme do suplício foi me sufocando. “Isso é queda de pressão”, murmuravam alguns clientes. Caiu então na minha boca uma tempestade branca de sal. Apaguei em seguida.
Acordei sentado numa cadeira de ferro fria no corredor do hospital; eu tinha agulhas no meu braço, em mim entrava alguma coisa, todo o meu corpo reclamava dor. As reclamações não eram engraçadas.
De noite as estrelas chegaram e de dia foram embora deixando só a mais insuportável de todas no céu, e todos os enfermos que gemiam no corredor junto comigo não diziam nada além de solidão.
Horas e horas crucificado naquela cadeira, até que o médico apareceu. Os exames deram normais, eu já podia voltar ao trabalho, eu já podia voltar ao meu senso de humor vazio, de braços abertos para o meu sonho sem substância. O médico me deu uma ficha e uma caneta.
— Doutor, o senhor já ouviu aquela piada sobre um cara que roubou um trator e quis derrubar a casa da sogra?
— Não.
— Se o senhor mudar o meu diagnóstico e me mantiver crucificado aqui eu conto.
— Vá pra casa, meu caro.
Vi então o médico tal qual um fantasma virando as costas e sumindo no corredor.
É assim que centenas de milhares de cupins tomam conta do seu coração quando a notícia terrível não vem e a guerra tem que continuar sendo travada em território absolutamente estranho, utilizando as armas erradas por falta de um norte. Sem esperança de vitória eu recuo, porque a alucinação dourada é um fracasso, ela é o meu medo.
Madrugada seguinte, eu de volta. Caixa registradora, tempestades de sal, fumaça de gordura e uma sensação penosa, minhas ideias mansas me matando aos poucos. Emudecido propositalmente, meu sonho desmaia. Eu sou inteiro medo de dar o que eles não querem. Bip.
Publicado em 14 de julho de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
OLIVEIRA, Francisco das Chagas de. Alucinação dourada. Revista Educação Pública, v. 20, nº 26, 14 de julho de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/26/alucinacao-dourada
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