Conhecimento ecológico local e o segredo da sustentabilidade ambiental: saberes, práticas e relações ecológicas
Eduardo Beltrão de Lucena Córdula
Doutor em Desenvolvimento e Meio Ambiente (UFPB), Licenciado em Biologia, presidente da ONG MAR
Glória Cristina Cornélio do Nascimento
Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente (UFPB), Licenciada em Biologia, professora substituta (IFPB - câmpus Cabedelo)
Conhecendo o contexto
A dominação da cultura ocidental cristã sobre os povos nativos em diversas partes do globo é notória e marcadamente registrada em livros didáticos, acervos históricos e artísticos (pinturas, poemas etc.). A exemplo do Brasil, a história retratou a dominação e a exploração que esses povos sofreram durante o processo de colonização, até períodos recentes no século XIX e que pouco vêm se modificando na atualidade (Jesus, 2011, p. 8). Estes povos têm seu modo de vida ameaçado, em virtude da exploração ilegal dos seus territórios por madeireiros, garimpeiros, pecuaristas e pelos fazendeiros da monocultura (Almeida, 2014).
Os povos nativos ou comunidades tradicionais possuem uma visão própria do mundo que os cerca, repleta de saberes, tradições, mitos, lendas e permeadas pelo misticismo e pelo sobrenatural, gerando assim, seusistema de ideias e sentimentos acerca do universo e do mundo; concepção do mundo, ou seja, sua cosmovisão (Córdula; Nascimento, 2014). Esses conhecimentos são oriundos da relação intrínseca do ser humano com a natureza e seus fenômenos, o que a Etnobiologia vem classificando como conhecimentos ecológicos locais (CEL) e que constitui um campo de estudos que desde o século passado floresce na Etnociência como estudo das relações do ser humano com o mundo natural, sua cultura, seu modo de vida, os saberes acumulados, os usos dos recursos à sua volta e costumes (cultura), e hoje se ramifica em áreas específicas, como Etnoecologia e a Etnobotânica, entre outras (Albuquerque; Medeiros, 2012; Córdula; Nascimento, 2014; Córdula; Nascimento; Lucena, 2018).
Os dados produzidos e os registros armazenados dos CEL estão fornecendo subsídios a serem utilizados pela comunidade científica, promovendo o entendimento da natureza, dos sistemas que sustentam esse patrimônio e de seus processos de equilíbrio, em que os próprios povos estão inseridos, em uma relação de harmonia secular (Valeri, 2001).
Porém, com o crescimento da população mundial ao longo dos séculos, houve aumento do consumo de matéria-prima e de energia oriundas da natureza, sendo superexploradas; nesse processo, impactos profundos ao planeta foram detectados (Dias, 1998; Córdula; Nascimento; Lucena, 2018). O marco histórico desse processo promovido pelo capitalismo está na era industrial no século XIX e no século XX, pela revolução científico-tecnológica, com o exemplo clássico do modelo de produção em série e em massa, desenvolvido pelo modelo norte-americano de Henry Ford, o fordismo (Wood Jr., 1992). Com isso, nasceu o modelo de alta produção em curto espaço de tempo, engrenando fornecedores de materiais e energia, além de estímulo ao consumo da sociedade, o que passou a ampliar o lucro (Capra, 2006).
Esse modelo reduziu o valor econômico e a durabilidade dos produtos finais para manter o consumismo operante e cíclico, alimentado pelo marketing, que surge e é utilizado pelo mercado para manter constante o processo de consumo, que por sua vez retroalimenta o setor industrial e, assim, fortalece o sistema capitalista (Capra, 2006).
Nesse processo vislumbrado como modernismo, pós-modernismo e atualmente como Contemporaneidade, a humanidade foi permeada pelo materialismo e passou a gradativamente abandonar a afetividade, o pertencimento, a espiritualidade e o distanciamento nas relações interpessoais, em detrimento do poder, do capital e da posse de bens materiais e humanos (Dias, 1998; Capra, 2006; Córdula, 2011).
Conhecimento ecológico local (CEL)
O CEL refere-se ao modo de vida de povos categorizados como tradicionais e os locais, culturalmente diferenciados e constituídos, tanto nas relações entre si como com o meio natural que os cerca (Albuquerque; Medeiros, 2013).
Os povos ou comunidades tradicionais são "grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição" (Brasil, 2007, p. 1). Essas transmissões ocorrem de geração a geração, observados e repetidos pela prática cotidiana e aprendidos pela oralidade, formando assim uma cultura própria e única dentro da sociedade contemporânea (Nascimento; Nascimento; Córdula, 2014a).
Figura 1: Classificação das populações tradicionais no Brasil
Fonte: Diegues e Arruda (2001, p. 38 e 52).
A ciência busca ainda por especificidades nesses conhecimentos, como da utilização de plantas e animais na cura de enfermidades; ainda timidamente, tenta registrar os conhecimentos dessas populações sobre as relações ecológicas existentes com os diversos organismos nos ecossistemas e desses povos com esses sistemas naturais, para obter um amplo entendimento holostêmico dessa integridade e que mantém o equilíbrio ecológico do planeta (Córdula, 2012; Nascimento; Nascimento; Córdula, 2014b). Essa visão holostêmica enfatiza a essência vital de tudo no planeta, buscando a manutenção do estado de harmonia suprema entre todos os fenômenos naturais, espirituais e físicos que regem a Terra. Essa concepção da vida e do ser humano busca a condensação entre a concepção sistêmica, holística, espiritual e afetiva (razão e emoções) (Córdula, 2012, p. 28).
As comunidades locais e os povos tradicionais estão imersos nessa caótica situação de agravamento dos problemas ambientais globais e sofrem pela ineficácia do sistema executivo e legislativo em conseguir reparar os danos diretos causados a essas populações (Oliveira, 2013; Magalhães; Santos, 2015). Porém, como vítimas que são do capitalismo e do consumismo ocidental e, consequentemente, dos problemas ambientais gerados sobre o planeta, são excluídos das políticas públicas (Dias, 1998; Capra, 2006).
O consumo de recursos naturais que causam impactos ambientais e a produção de resíduos que ocasionam a poluição e a perda de áreas verdes em diversas partes do mundo provocaram modificações ambientais com a degradação nos biomas e ecossistemas, o que influencia diretamente a ecologia dos organismos (Leff, 2011). Os saberes tradicionais vêm como último campo e recurso científico para resgatar o equilíbrio ambiental (Diegues, 2014).
Conhecimento ecológico local e sustentabilidade
Para entender essas relações que constroem o CEL, surgiu a obra O Papalagui, uma excelente publicação que retrata bem a relação dos povos tradicionais (polinésios) com o ambiente em que vivem e, ao mesmo tempo, o contato com a civilização ocidental moderna no século XIX (Tuiávii; Scheurmann, 2003). Os polinésios são nativos de um conjunto de ilhas situadas no Oceano Pacífico, próximas à Austrália, colônias de países da Europa e da América que foram exploradas pela posição geográfica, servindo como base de abastecimento ou militares (Tuiávii; Scheurmann, 2003).
Os relatos foram transcritos por Erich Scheurmann, que os considerou valiosos para ser levados ao mundo ocidental, pela cosmovisão dos nativos sobre o mundo que os cerca e a forma como percebiam o ser humano vindo do Ocidente (Tuiávii; Scheurmann, 2003).
Apesar de essa população tradicional ter tido contato direto com a cultura europeia, o líder tribal observou ao longo do tempo o europeu e destacou com Scheurmann os seguintes pontos:
- a pele e as vestimentas;
- as habitações e o modo de vida;
- a ganância pelo dinheiro;
- o consumismo de bens materiais;
- a correria no dia a dia;
- a abdicação da espiritualidade;
- a existência de uma força maior que rege tudo;
- a busca pelo status do trabalho;
- o foco em moradia e individualidade;
- a racionalização de tudo, ao invés de aceitar e contemplar; e,
- a catequização e a imposição do mundo civilizado (Tuiávii; Scheurmann, 2003, p. 11).
Tuiávii, o líder tribal, tornou-se coautor da obra, por dialogar e apontar sua cosmovisão sobre a recém-chegada cultura, que era totalmente oposta à sua de nativo polinésio.
Esses relatos mostram a diversidade de conhecimentos sobre o meio ambiente, o respeito e a conservação aos recursos naturais e de valorização de saberes, crenças e atitudes, que a cultura ocidental capitalista esqueceu ao longo do processo de crescimento e expansão (Diegues, 2014). Esses conhecimentos são de suma importância, pois retratam saberes que podem estar em vias de extinção (Diegues; Arruda, 2001).
Para obtenção das mudanças necessárias à sobrevivência planetária,
respeitar, resgatar e preservar tais saberes das comunidades tradicionais é dever da sociedade e da ciência, para que possamos entender, pelas suas gerações, as verdadeiras relações entre o ser humano e o ambiente à sua volta, a cultura envolvida nesse processo e as tecnologias rudimentares desenvolvidas, além dos recursos utilizados para as mais diversas finalidades, indo da alimentação, passando pela vestimenta, até o uso dos fitoterápicos no tratamento de doenças (Córdula; Nascimento, 2014, p. 2).
Considerações finais
As culturas tradicionais possuem uma cosmovisão única sobre as forças que regem o mundo à sua volta; seus saberes são igualmente únicos e se refletem nas suas relações interpessoais e com a natureza. Suas práticas retratam dois pontos: cosmovisão e saberes, mantendo assim uma relação salutar de equilíbrio com o meio.
Essa relação de homeostase demonstra que o ser humano ocidental pode modificar seu comportamento e sua cultura e se integrar ao ambiente sem destruí-lo, constituindo um novo processo civilizatório. Portanto, reconhecer esses conhecimentos como vitais ao entendimento das relações do ser humano com o meio ambiente e a utilização equilibrada dos seus recursos, registrá-los e incorporá-los à ciência colocará a sociedade contemporânea ocidental em um novo rumo, na busca do desenvolvimento e da sustentabilidade.
Os representantes de muitas comunidades locais estão atualmente, inseridos em meio urbano; com o auxílio das escolas, poder-se-iam identificar os representantes com notório saber que possuem em suas vidas a tradição de uma cultura diferenciada e que se reconhecem como tal. Dessa forma, haveria a valorização dessas pessoas, de seus conhecimentos e, ao mesmo tempo, seria possível trazê-los para as gerações atuais, para que saibam da existência desse universo e dessa relação de respeito com o meio ambiente.
Referências
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Publicado em 14 de julho de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
CÓRDULA, Eduardo Beltrão de Lucena; NASCIMENTO, Glória Cristina Cornélio. Conhecimento ecológico local e o segredo da sustentabilidade ambiental: saberes, práticas e relações ecológicas. Revista Educação Pública, v. 20, nº 26, 14 de julho de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/26/conhecimento-ecologico-local-e-o-segredo-da-sustentabilidade-ambiental-saberes-praticas-e-relacoes-ecologicas
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