O uso de histórias em quadrinhos no ensino: teoria, prática e BNCC

Lucinete Ornagui de Oliveira Nakamura

Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ensino (UNIC/IFMT)

Ana Graciela Mendes F. da Fonseca Voltolini

Doutora em Comunicação Social (Umesp), docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ensino (UNIC/IFMT)

José Serafim Bertoloto

Doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ensino em Associação Ampla (UNIC/IFMT)

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é o documento que regulamenta quais são as aprendizagens essenciais a serem trabalhadas nas escolas brasileiras de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. Tem como objetivo assegurar o desenvolvimento de competências gerais que consubstanciam, no âmbito pedagógico, os direitos de aprendizagem e desenvolvimento. A BNCC determina, a respeito da área de Linguagens para o Ensino Fundamental, que as atividades humanas realizam-se nas práticas sociais, mediadas por diferentes linguagens. Com essas práticas, as pessoas interagem consigo mesmas e com os outros, constituindo-se como sujeitos sociais. Para essas interações, são necessários conhecimentos, atitudes e valores culturais, morais e éticos.

Para a BNCC, o importante “é que os estudantes se apropriem das especificidades de cada linguagem, sem perder a visão do todo no qual elas estão inseridas” (2020, p. 63). As linguagens são dinâmicas e todos participam desse processo de constante transformação. As transformações tecnológicas, o aumento do fluxo de informações e a rapidez com que elas se propagam exigem uma nova postura no ato de pensar e agir, não se sobrevive sem interagir com as mudanças ao seu redor.

Ler não é só o ato de extrair um significado do texto (pois nem sempre o significado está expresso), mas ir “além”, é conhecer outros textos subjacentes para compreendê-lo, é propiciar a interação entre os interlocutores. Portanto, saber ler e produzir conhecimento torna-se uma necessidade cada vez mais premente.

O ato de ler assume novas dimensões, estabelece novos parâmetros para a constituição do novo leitor. Diante dessa realidade, a escrita com que nos deparamos no cotidiano, denominada escrita social, com caracteres e funções diferentes, propicia leituras diversificadas. Diariamente lançamos mão de estratégias de leitura diferentes para apreender as informações contidas nos diferentes textos. Essa flexibilidade de atenção e as várias formas de ler para apreender o sentido dos textos são fundamentais para o homem e sua adaptação ao mundo moderno.

A leitura é um dos processos que possibilitam a participação do ser humano na sociedade, pois traz a compreensão do passado, do presente e das possibilidades de uma transformação sociocultural futura. Por ser um instrumento de aquisição, transformação e produção do conhecimento, a leitura, acionada de forma crítica e reflexiva, dentro ou fora da escola, proporciona o combate à alienação, permitindo às pessoas e aos grupos sociais a realização da liberdade nas diferentes dimensões da vida.

Nesse sentido, é fundamental repensar as ações pedagógicas que se constituem no contexto escolar e buscar práticas que contribuam para a formação do sujeito leitor que irá atuar no contexto social. A prática pedagógica não é avaliada pelo discurso, mas pela capacidade de inventar, improvisar, pesquisar e percorrer caminhos que favoreçam a evolução e o aprendizado do aluno por meio das experiências.

Dessa forma, acreditamos que a leitura de histórias em quadrinhos favorece uma aprendizagem prazerosa, colabora para a formação do leitor e do processo de ensino-aprendizagem da escrita. Entendemos que é possível, por meio da literatura de história em quadrinhos, que se caracteriza pela sequência dos quadros combinando imagem e texto, formar cidadãos leitores capazes de atuar no contexto social dialogando e produzindo novos textos.

A história em quadrinhos, além de proporcionar prazer e entretenimento, constitui uma fascinante demonstração da criatividade humana. A forma e a estrutura desse gênero mostram ao aluno a vivacidade do discurso direto presentes nas histórias. Vivacidade provocada, sobretudo, pela variedade de expressões, dicções e termos que entram na sua composição.

História em quadrinhos e ensino

A leitura como fator de desenvolvimento pessoal e de possibilidade de participação social do indivíduo é dada e aceita, indiscutivelmente, como compromisso de todas as sociedades.

Ser leitor, porém, não é resultado de um processo natural, mas sim construído desde cedo pela interferência educacional, cultural e pelo contato permanente com o material escrito, variado e de qualidade, fruto de uma ação consciente da sua importância e sua função social.

A leitura da palavra escrita só tem sentido se colocar o leitor em contato com a cultura e a história de quem escreve, compreendendo a gênese do processo de libertação das pessoas e dos povos. A construção conceitual da leitura e da escrita deve estar presente em todos os momentos em que se exercita o uso da linguagem.

Assim, a leitura é sempre uma prática encarnada por gestos, espaços e hábitos. As histórias em quadrinhos (HQs) requerem do leitor mais do que decodificar o que está grafado; o leitor, para chegar à compreensão do texto, deve portar-se diante dele de forma atuante, modificando-o e modificando-se. Para Larrosa, “o essencial não é ter um método para ler bem, mas saber ler, isto é, saber rir, saber dançar e saber jogar, saber interiorizar-se jovialmente por territórios inexplorados, saber produzir sentidos novos e múltiplos” (2005, p. 27).

Nessa perspectiva, o educador, como mediador do processo, deve possibilitar que o aluno perceba a essência das histórias, transformando-se no cotidiano. Ao repensar as ações pedagógicas que se constituem no contexto escolar e na busca de práticas que contribuam para a formação do sujeito leitor que irá atuar no contexto social, surge o interesse em encontrar um instrumento que auxilie o professor no despertar do aluno para o gosto pela leitura e o interesse pela produção textual.

A BNCC, implementada recentemente, destaca o uso dos quadrinhos na Educação Infantil e na área de Linguagens no campo artístico-literário para o Ensino Fundamental, campo este “relativo à participação em situações de leitura, fruição e produção de textos literários e artísticos, representativos da diversidade cultural e linguística, que favoreçam experiências estéticas” (2020, p. 96).

Para Alves (2001), a utilização de histórias em quadrinhos na infância fortalece o ensino e o desenvolvimento da prática da leitura e contribui para a produção de texto e a formação do leitor. Segundo Alves, isso acontece porque está desvinculada de determinado tempo histórico e é mais conexa à forma de entendimento das crianças, facilitando a compreensão do texto. Esses fatores tornam a leitura mais atrativa e prazerosa, despertando o gosto pela leitura e pela produção de novos textos.

Nesse olhar, acreditamos que o uso e a leitura da HQs em sala de aula são um instrumento fundamental no desenvolvimento da aprendizagem, pois, além de proporcionar a leitura prazerosa, é uma forma divertida de incorporar conhecimento e auxiliar na superação de dificuldades encontradas no processo de aprendizagem.

De acordo com Vergueiro (2004), as HQs apresentam uma interação contínua entre as linguagens verbal e não verbal, o que permite em tempo real a compreensão clara da mensagem em sua plenitude, permitindo uma comunicação rápida entre o autor da HQ e o leitor; consequentemente, uma aprendizagem significativa e enriquecedora.

Para a BNCC, ao usar HQs do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental em Língua Portuguesa, as habilidades desenvolvidas envolvem “construir o sentido de histórias em quadrinhos e tirinhas, relacionando imagens e palavras e interpretando recursos gráficos (tipos de balões, de letras, onomatopeias)” (2020, p. 97).

Ramos (2009) defende a premissa de que os quadrinhos possibilitam perceber a “linguagem” numa nova perspectiva de olhar, mais “crítico e fundamentado”. Nesse sentido, eles ampliam os olhares e despertam maior interesse das crianças pela leitura, por meio das relações cognitivas e o prazer da leitura.

Nem sempre as HQs foram vistas como linguagem capaz de proporcionar conhecimento de forma prazerosa e contribuir para o processo educativo. Portanto, podemos dizer que atualmente a educação tem outra visão sobre as HQs, e que essa relação sólida e consciente é visualizada em livros didáticos, manuais de treinamento e campanhas de esclarecimento e informações, além da própria BNCC.

Como afirma Eisner (1989), não importa como são denominados – “história em quadrinhos, quadrinhos, comics, gibi, banda desenhada, fumetti ou mangá”, o que realmente importa é a magia traduzida pelos personagens e o encantamento com que as histórias que envolvem o leitor.

Para Ianesko, Andrade, Felsner e Zatta (2017), as HQs como recurso didático são uma ferramenta pedagógica que favorece o processo ensino-aprendizagem, além de dinamizar o conteúdo e permitir a compreensão de diferentes conceitos, intertextualizando com várias áreas de conhecimento.
Corroborando a ideia desses autores, Lavarda (2017) afirma que HQ é uma ferramenta importantíssima, pois, além de favorecer o processo ensino-aprendizagem, os conteúdos são abordados de forma divertida e interdisciplinar, o que reforça ainda mais um processo de construção de conhecimento significativo e prazeroso.

Segundo Calazans (2004), as HQs são uma forma universal de comunicação, e, por ser uma leitura espontânea e prazerosa, é um recurso didático riquíssimo que auxilia os professores em todos os níveis de ensino.

HQs em sala de aula

Publicada pela Fundação Mokiti Okada em formato de história em quadrinhos, a revista Turma do Planeta Azul circula especialmente nas escolas. Cada edição é composta por argumentos de histórias vividas pelos alunos em sala de aula, em suas famílias e/ou na sociedade e adaptadas aos personagens da HQ. As histórias abordam temas como cidadania, preservação do meio ambiente, respeito, limpeza e organização e alimentação saudável, entre outros.

Figura 1: Capa da edição 185 da revista Turma do Planeta Azul
Fonte: Fundação Mokiti Okada.

A pesquisa que analisamos aqui está em desenvolvimento em uma escola pública de Cuiabá/MT com alunos do 4º ano do Ensino Fundamental, uma vez por semana, realizando leituras da Turma do Planeta Azul. Além da leitura, estão previstas atividades como pensamento da semana, livro da aprendizagem, roda da leitura e elaboração de roteiros de histórias em quadrinhos.

A partir dessa metodologia, a cada semana, antes da leitura da história em quadrinhos, fazendo o uso de um pensamento, os alunos refletem sobre ações e práticas, valores e posturas necessárias para o desenvolvimento do ser humano e o processo de aprendizagem. Desenvolvimento e processo que requerem do aluno atitudes que são, no nosso olhar, essenciais para auxiliar na compreensão de diferentes conteúdos e abordagens, necessárias para a produção textual e formação do leitor.

Os conteúdos são abordados nas histórias com situações reais do cotidiano, que, além de resgatar valores e princípios éticos de forma lúdica e prazerosa, possibilitam ao aluno se perceber em situações semelhantes; assim, as ilustrações propiciam a motivação para a leitura. Partindo da vivência, o conteúdo vai evoluindo para uma sistematização científica, favorecendo a criticidade e a transformação.

Assim, toda semana, para cada nova história lida e trabalhada – primeiro na oralidade, na reflexão sobre os pontos abordados, na identificação dos personagens e suas atitudes –, uma forma de registro é escolhida como representação escrita da compreensão dos alunos sobre o tema. Mesmo os alunos que apresentam dificuldades na leitura e escrita o fazem utilizando o desenho, que posteriormente é socializado com a turma, respeitando a individualidade dos alunos.

Como instrumento didático, cada aluno possui um caderno de registro, que é denominado “Livro de aprendizagem”, que funciona como um diário de bordo em que são registradas tanto as experiências vividas pelas personagens como a percepção das próprias crianças. Com as discussões surge o levantamento de hipóteses, usando para isso questionamentos como: se fosse você no lugar da personagem, o que faria? Você já vivenciou alguma experiência semelhante?

À medida que as histórias vão sendo trabalhadas semanalmente, as crianças se apropriam da leitura e da escrita, gradativamente. A cada novo contato com a HQ e com a leitura de suas histórias, surgem perguntas e o levantamento de hipóteses sobre a escrita e a leitura.

Dessa forma, a HQ Turma do Planeta Azul pode ser uma ferramenta pedagógica de ensino e aprendizagem não só para a leitura e a escrita como também no processo de construção de conhecimento em diversas áreas.

Considerações parciais

Trata-se de uma pesquisa em desenvolvimento, e neste artigo iniciamos uma discussão sobre o uso da HQ em sala de aula como recurso para o estímulo à leitura e à escrita. Com base na literatura, na BNCC e em dados preliminares do campo, apresentamos um caminho para a inserção dos quadrinhos em sala e reflexões iniciais sobre o tema.

A BNCC insere os quadrinhos entre os gêneros como apoio às estratégias de leitura no Ensino Fundamental, de maneira a desenvolver habilidades como “ler, de forma autônoma, e compreender – selecionando procedimentos e estratégias de leitura adequados a diferentes objetivos e levando em conta características dos gêneros e suportes” (2020, p. 169).

Considerando a recente Base Curricular em processo de implementação no país, espera-se que esta pesquisa possa contribuir com dados e informações que demonstrem a possibilidade do uso das HQs como recurso pedagógico para a produção textual e a formação do leitor subsidiadas pelas histórias, além de despertar o interesse pela leitura e pela aprendizagem significativa por meio da produção textual.

Referências

ALVES, J. M. Histórias em quadrinhos e educação infantil. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 21, nº 3, 2001.

BRASIL. MEC. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2020. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/content/article/211-noticias/218175739/85151-entenda-como-funciona-a-base-nacional-comum-curricular?Itemid=164. Acesso em: 17 fev. 2020.

CALAZANS, F. História em quadrinhos na escola. São Paulo: Paulus, 2004.

EISNER, W. Narrativas Gráficas. Princípios e lendas dos quadrinhos. 2ª ed. São Paulo: Devir, 1999.

IANESKO, F.; ANDRADE, C. K.; FELSNER, M. L.; ZATTA, L. Elaboração e aplicação de história em quadrinhos. Experiências em Ensino de Ciências, v. 12, nº 5, 2017. Disponível em: http://if.ufmt.br/eenci/artigos/Artigo_ID382/v12_n5_a2017.pdf. Acesso em: 13 maio 2019.

LARROSA, J. Nietzsche & Educação. Trad. Semíramis Gorini da Veiga. 2ª ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

LAVARDA, T. C. F. da S. Sugestões do uso de histórias em quadrinhos como recurso didático. EDUCERE. VI SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE PROFISSIONALIZAÇÃO DOCENTE. Anais... Disponível em: https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/25298_12321.pdf. Acesso em: 27 mar. 2019.

RAMOS, P.  A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009.

VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: RAMA, Angela; VERGEIRO, Waldomiro (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004. p. 7-30.

Publicado em 04 de agosto de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

NAKAMURA, Lucinete Ornagui de Oliveira; VOLTOLINI, Ana Graciela Mendes F. da Fonseca; BERTOLOTO, José Serafim. O uso de histórias em quadrinhos no ensino: teoria, prática e BNCC. Revista Educação Pública, v. 20, nº 29, 4 de agosto de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/29/o-uso-de-historias-em-quadrinhos-no-ensino-teoria-pratica-e-bncc

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