Educação e autonomia
Francisco Marcos Alves
Professor da rede municipal em Pombal/PB
O conceito sobre educação é algo que já sabemos não ser homogêneo; no entanto, também sabemos que nem por isso essa temática deixa de provocar os setores ligados a ela e a toda a sociedade que, de forma direta ou indireta, encontra-se interligada a ela. Uma coisa é importante salientar desde já: não há um verdadeiro processo de ensino-aprendizagem se ele não promove a autonomia dos indivíduos. Afirmamos isso porque se encontra arraigado culturalmente em nosso país o senso quase comum de que educação é o mero repasse de técnicas e informações; e isso não é educação.
O ensino tradicional, baseado nos ditames do tecnicismo e da reprodutividade, tem progressivamente tomado as diversas instâncias e espaços da nossa educação e da sociedade brasileira. Contrapondo-se a isso têm surgido movimentos de resistência suscitados pelo interesse de desarticular esse tipo de falácia educacional com argumentos ligados à vida prática. O viés ideológico do ensino tradicional é muito forte, pois quem o mantém é o próprio capitalismo; mas é invencível, pois o seu desserviço tem provocado insatisfação.
Este trabalho propõe uma análise acerca da educação e da autonomia que ela oferece aos indivíduos. Não há como pensar educação sem essa perspectiva, pois qualquer modelo educacional que não tenha essa característica foge ao caráter principal desse processo dinâmico. O intuito deste artigo é também trazer uma análise conceitual que oriente a não reproduzir os velhos erros da educação bancária, de Paulo Freire.
O objetivo geral é enaltecer a importância do processo de ensino-aprendizagem voltado para a autonomia dos indivíduos. Trazemos como objetivos específicos analisar as principais características da educação que reproduz a formação tecnicista; apresentar propostas que viabilizem a transformação do processo de ensino-aprendizagem; e destacar elementos que enalteçam a formação dos indivíduos numa perspectiva cidadã.
Este artigo foi desenvolvido baseado em pesquisa bibliográfica e tem o compromisso de fazer uma análise crítica e reflexiva sobre ele. Trazemos uma boa contribuição social por meio do levantamento de dados, tendo em consideração que o tema educação e a autonomia dos indivíduos sejam de bastante relevância, já que não há como compreender educação sem a promoção da autonomia.
Referencial teórico
A educação é uma temática envolvente; desse modo, favorece a participação de diversas pessoas e setores da sociedade nessa discussão (Matos; Costa, 2013, p. 117); desde uma perspectiva ética e política, passando por diversos teóricos e seus modelos, à aceitação do problema central que é a construção de uma sociedade justa. A educação seria o terreno para harmonizar os interesses privados e públicos.
Os direcionamentos aos quais esses pontos de vista chegam ou esbarram são diversos e por isso requerem de nossa parte o desdobramento, como profissionais da Educação, para discernir. Em princípio, uma questão é indispensável para ser pontuada: a insistência em que ensinar não é transferir conhecimento. E essa verdade não deve ser apreendida apenas pelo professor, mas também vivida e testemunhada pelo estudante em todas as suas dimensões (Freire, 1996, p. 21). Seu sonho é
uma escola na qual seja dada à criança a possibilidade de ter uma formação, de tornar-se homem, de adquirir aqueles critérios gerais que servem para o desenvolvimento do caráter. Em suma, uma escola humanista, tal como a entendiam os antigos e, mais recentemente, os homens do Renascimento. Uma escola que não hipoteque o futuro da criança e não constrinja a sua vontade, sua inteligência, sua consciência em formação a mover-se por um caminho cuja meta seja prefixada (MONASTA, 2010, p. 66).
Infelizmente, a escola atualmente é fortemente tentada (Monasta, 2010, p. 122) a se preocupar em satisfazer interesses práticos imediatos. Desse modo, acaba esquivando-se de seu papel, que é a promoção do indivíduo e, consequentemente, da sociedade. Assim, não tem sido satisfatório esse modelo de educação, pois os resultados estão postos e nos frustra o cenário. Não estamos conseguindo com esse modelo educacional proporcionar qualidade de ensino, tampouco aprendizagem.
Não é possível respeito aos educandos, à sua dignidade, a seu ser formando-se, à sua identidade fazendo-se, se não se levam em consideração as condições em que eles vêm existindo, se não se reconhece a importância dos “conhecimentos de experiência feitos” com que chegam à escola. O respeito devido à dignidade do educando não me permite subestimar, pior ainda, zombar do saber que ele traz consigo para a escola (Freire, 1996, p. 26).
O processo de ensino-aprendizagem fundamentado na perspectiva da construção para a educação do indivíduo tem que levar em conta não apenas o que citamos, que nossos estudantes não são folhas em branco, mas que todos os envolvidos na formação trazem consigo para o processo inúmeras experiências. Também vale ressaltar que sempre seremos seres inacabados.
Outro saber necessário à prática educativa, e que se funda na mesma raiz que acabo de discutir – a da inconclusão do ser que se sabe inconcluso – , é o que fala do respeito devido à autonomia do ser do educando. Do educando criança, jovem ou adulto. Como educador, devo estar constantemente advertido com relação a esse respeito, que implica igualmente o que devo ter por mim mesmo (Freire, 1996, p. 24-25).
Quanto a isso, tendo a consciência de que somos inacabados, Freire (1996, p. 23) faz uma releitura de sua presença no mundo e se coloca não apenas como objeto, mas como sujeito que é capaz de transformar a realidade em que está, de fazer história, ou seja, sente-se protagonista do meio social do qual também faz parte.
É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade. É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a esperança. “Não sou esperançoso”, disse certa vez por pura teimosia, mas por exigência ontológica (Freire, 1996, p. 24).
Se pudermos traçar até aqui a nossa discussão como se fosse um mapa, poderíamos destacar como ponto de partida o cenário atual, no qual estão configurados todos os que fazem a educação, como professores, estudantes, pais e a sociedade, de forma direta ou indireta, tendo influência e participação no processo. Perceptivelmente, constata-se que a educação segue o rol sistemático da reprodutividade do conhecimento e social; elencamos a partir dessa constatação algumas medidas a serem tomadas para um novo projeto.
Não podemos negar que são enormes os desafios para a conquista desse novo projeto; no entanto, não podemos considerar como algo impossível. O caminho tem abertura a partir da disposição dos professores, que, para Freire (1996, p. 25), devem buscar respeitar a curiosidade do educando, o seu gosto estético e a sua inquietude. O professor não deve ser autoritário nem licencioso, mas ético. Nessa dimensão ética, como sujeito consciente, deverá promover a liberdade.
A liberdade amadurece no confronto com outras liberdades, na defesa de seus direitos em face da autoridade dos pais, do professor, do Estado. É claro que, nem sempre, a liberdade do adolescente faz a melhor decisão com relação a seu amanhã. É indispensável que os pais tornem parte das discussões com os filhos em torno desse amanhã. Não podem nem devem omitir-se, mas precisam saber e assumir que o futuro é de seus filhos e não seu. É preferível, para mim, reforçar o direito que tem a liberdade de decidir, mesmo correndo o risco de não acertar, a seguir a decisão dos pais. É decidindo que se aprende a decidir (Freire, 1996, p. 41).
É importantíssimo esse aspecto da liberdade no processo formativo, mas precisamos ter cuidado com aquilo que já elencamos em relação à percepção que o professor precisa ter, que é o cuidado com a permissividade. Tendo em vista o caráter prático da educação que está intimamente ligado ao teórico, para Freire (1996, p. 25) não há justificativa para a superioridade de um sobre outro por conta da cor, sexo, classe ou qualquer outra coisa. Por isso, considera imoral qualquer discriminação, e a luta contra é um dever para a garantia da autonomia do educando.
A autoridade coerentemente democrática, mais ainda, que reconhece a eticidade de nossa presença, a das mulheres e dos homens, no mundo, reconhece, também e necessariamente, que não se vive a eticidade sem liberdade e não se tem liberdade sem risco. O educando que exercita sua liberdade ficará tão mais livre quanto mais eticamente vá assumindo a responsabilidade de suas ações. Decidir é romper e, para isso, é preciso correr o risco. Não se rompe como quem toma um suco de piranga numa praia tropical. Mas, por outro lado, a autoridade coerentemente democrática jamais se omite (Freire, 1996, p. 36).
Ter um olhar criterioso sobre esse tipo de sacada feita por Paulo Freire em relação à luta pela garantia da autonomia dos indivíduos que estão configurados ao processo de ensino-aprendizagem confirma a impressão que temos de que a relação que tem o indivíduo com o mundo merece seu respaldo na educação. Quanto a isso, Vera Barreto (1998, p. 59) afirma que é na relação que mantêm entre si e com o mundo que os seres humanos, sem deixar de ser sujeitos, vão se completando e ajudando os outros a se completarem. Dessa mesma forma, na relação com o mundo eles se completam e contribuem para transformar o mundo.
O meu bom senso me diz, por exemplo, que é imoral afirmar que a fome e a miséria a que se acham expostos milhões de brasileiras e de brasileiros são uma fatalidade em face de que só há uma coisa a fazer: esperar pacientemente que a realidade mude. O meu bom senso diz que isso é imoral e exige de minha rigorosidade científica a afirmação de que é possível mudar com a disciplina da gulodice da minoria insaciável (Freire, 1996, p. 26).
É preciso superar os grilhões que amordaçam o processo de ensino-aprendizagem, que por trás da educação tradicional e tecnicista desenvolvem a manutenção do sistema de opressão. Para Freire (1996, p. 52), o esquema ideológico é muito forte, permeia todos os meios de comunicação para disseminar seu projeto; é preciso a todo tempo se esforçar para ter uma perspectiva epistemológica, para não ser vitimado pelas falsas informações que são propagadas.
Pode-se dizer grosso modo, e passando por cima de qualquer mediação e especificidade, que a economia política tem um papel na sociedade capitalista, ela serve aos interesses da classe burguesa, que foi feita por ela e para ela, que carrega, enfim, o estigma de suas origens até em seus conceitos e em sua arquitetura lógica; mas qualquer descrição mais precisa das relações entre a estrutura epistemológica da economia e sua função ideológica deverá passar pela análise da formação discursiva que lhe deu lugar e do conjunto dos objetos, conceitos e escolhas teóricas que tiveram de ser elaborados e sistematizados (Foucault, 2008, p. 208-209).
O processo de ensino-aprendizagem é o caminho para a superação de tudo quanto escraviza o homem na sua existência. Quando a educação se envolver nessa perspectiva, haverá de fato transformação social e qualidade de vida mais digna para todos. O caminho é árduo, o contraprojeto em relação a isso é altamente eficiente, mas é preciso se desvencilhar de todo esse aparato ideológico que se instalou na educação com o seu ensino tecnicista e reprodutivista até as estruturas de ordem econômica, cultural e social.
Metodologia
Este trabalho é resultado de pesquisa bibliográfica, sendo realizada consulta a livros físicos que versam sobre a temática Educação e autonomia. A abrangência da temática levou-nos à abordagem da cidadania e ao entendimento de que somos seres inacabados.
Este é um saber fundante da nossa prática educativa, da formação docente, o da nossa inconclusão assumida. O ideal é que, na experiência educativa, educandos, educadoras e educadores, juntos, “convivam” de tal maneira com este como com outros saberes de que falarei que eles vão virando sabedoria. Algo que não é estranho a educadoras e educadores. Quando saio de casa para trabalhar com os alunos, não tenho dúvida nenhuma de que, inacabados e conscientes de inacabamento, abertos à procura, curiosos, “programados, mas para, aprender”, exercitaremos tanto mais e melhor a nossa capacidade de aprender e de ensinar quanto mais sujeitos e não puros objetos do processo nosfaçamos (Freire, 1996, p. 24).
A consciência de que não estamos prontos, nem professores nem estudantes, deve favorecer a busca incansável pelo conhecimento e utilizar a experiência adquirida no processo como combustível para o ensino e a aprendizagem. O bom professor não é aquele que sabe tudo e faz questão de que o indivíduo seja tratado como quem não sabe, mas aquele que junto ao discente coloca-se numa atitude de aprendizagem.
Ao pensar sobre o dever que tenho, como professor, de respeitar a dignidade do educando, sua autonomia, sua identidade em processo, devo pensar também, como já salientei, em como ter uma prática educativa em que aquele respeito, que sei dever ter ao educando, se realize em lugar de ser negado (Freire, 1996, p. 26).
A negação da educação é muito comum na quase totalidade do nosso país, quando, na maioria das escolas e universidades, é oferecida ao nosso público uma formação centrada em conhecimentos prontos e propostos por técnicas ultrapassadas. A velha educação bancária precisa ceder lugar para uma educação que promova autonomia – elemento primordial, elemento que, se estiver ausente no processo, o desqualifica e o torna outra coisa, menos educação.
Resultados e discussão
O resultado em relação à nossa pesquisa é bastante significativo, já que conseguimos comprovar a hipótese inicial de nosso trabalho, proposta nos objetivos. De início, a educação conta com um grande desafio que é a superação do ensino tradicional, em que o professor ensina e o aluno aprende; esse tipo de ensino gera a antipatia do estudante, pois o coloca como paciente e o intimida a ser um expectador.
A nossa capacidade de aprender, de que decorre a de ensinar, sugere ou, mais do que isso, implica a nossa habilidade de apreender a substantividade do objeto aprendido. A memorização mecânica do perfil do objeto não é aprendizado verdadeiro do objeto ou do conteúdo. Neste caso, o aprendiz funciona muito mais como paciente da transferência do objeto ou do conteúdo do que como sujeito crítico, epistemologicamente curioso, que constrói o conhecimento do objeto ou participa de sua construção. É precisamente por causa dessa habilidade de apreender a substantividade do objeto que nos é possível reconstruir um mau aprendizado, em que o aprendiz foi puro paciente da transferência do conhecimento feita pelo educador (Freire, 1996, p. 28).
A percepção do processo de ensino-aprendizagem pautado na perspectiva tecnicista e reprodutivista impulsiona Paulo Freire a pensar a educação com uma nova concepção: a ideia de que ninguém vem à sala de aula sem saber de nada. Todos os que estão envolvidos no processo têm conhecimento prévio daquela experiência, merecendo, desse modo, a devida consideração. Nessa direção, ele entende que é possível educar fazendo previamente a “leitura de mundo”, sucedendo com a “leitura da palavra”.
Como educador preciso de ir "lendo” cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior de que o seu é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito, sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo “leitura do mundo” que precede sempre a “leitura da palavra” (Freire, 1996, p. 32).
De acordo com Freire (1996, p. 27), é importantíssimo que o professor seja o exemplo no cumprimento de seus deveres, bem como na luta pelos seus direitos para que o seu exemplo seja motivação na conquista das esferas sociais, a partir da escola até as outras configurações da sociedade, já que o caos instalado pelo sistema da educação tradicional e das políticas que a representam quer que as pessoas cruzem os braços e aceitem a ideia de que não tem mais jeito. Por isso, o professor é o primeiro que deve lutar para que essa falsa verdade não se instale, tampouco se propague.
Conclusão
De acordo com a abordagem bibliográfica, chegamos à conclusão de que o processo de ensino-aprendizagem é satisfatório quando atrelada a ele está a convicção de que a educação e a autonomia precisam ser configuradas. Uma educação que não esteja voltada para a autonomia não consegue atingir a sua finalidade, que é a construção de uma sociedade mais justa e solidária, tendo em vista a realização dos indivíduos envolvidos no processo, de forma direta ou indireta.
A educação tradicional, como percebemos, está cada vez mais ao desserviço da autonomia, valorizando apenas os que são privilegiados pelo sistema capitalista e menosprezando os que estão à margem; e alienando por alguns meros favores aqueles de quem ela pode tirar algum proveito. Esse tipo de formação tecnicista e que reproduz todo um sistema tem seu contraponto com as urgências que se apresentam por uma humanidade necessitada de um processo de ensino-aprendizagem que favoreça a formação humana e cidadã.
Entendemos que a autonomia é um processo dinâmico que se estabelece ao longo da história e que, atrelado à educação e a partir dela, poderá promover uma nova sociedade. A educação de fato torna-se o ponto de convergência entre os indivíduos e a sociedade na busca de melhores condições e realização de um presente comprometido com a solidariedade e um futuro promissor, compreendendo que precisamos acreditar que a educação é o ponto de partida para uma nova sociedade.
Referências
BARRETO, V. Paulo Freire para educadores. São Paulo: Arte & Ciência, 1998.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
MATOS, J. C.; COSTA, M. R. N. (Orgs.). Filosofia: caminhos do ensinar e aprender. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013.
MONASTA, A. Antonio Gramsci. Trad. Paolo Nosella. Recife: Massangana, 2010.
Publicado em 18 de agosto de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
ALVES, Francisco Marcos. Educação e autonomia. Revista Educação Pública, v. 20, nº31, 18 de agosto de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/31/educacao-e-autonomia
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