Com a Matemática construímos pontes e não barreiras

Rayssa Gaspar Ramos

Estudante do Colégio Estadual Professora Nilde Maria Monteiro Xavier, da rede pública de ensino da Bahia

Verônika Aryelle Guimarães da Silva

Estudante do Colégio Estadual Professora Nilde Maria Monteiro Xavier, da rede pública de ensino da Bahia

Clara Ramos Dourado

Estudante do Colégio Estadual Professora Nilde Maria Monteiro Xavier, da rede pública de ensino da Bahia

Jadson de Souza Conceição

Licenciado em Matemática, mestre em Educação Matemática (PPGEM/UESC), docente da rede pública de ensino da Bahia

O trabalho com Geometria é de suma importância para o desenvolvimento do senso espacial e do raciocínio lógico matemático, como aponta a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (Brasil, 2017). Esse campo de conhecimento caracteriza-se pelas múltiplas possibilidades de trabalho, como o uso de materiais manipulativos, jogos ou investigação matemática, todas com um único objetivo: a construção de conceitos geométricos. Todavia, durante muito tempo a Geometria não teve o mesmo destaque que a Álgebra e Aritmética tiveram nos programas escolares (Conceição; Santos; Oliveira, 2018), fazendo com que professores a trabalhassem de forma superficial, levando os alunos a não desenvolver conceitos geométricos básicos (Conceição, 2018). Quando nos atemos às especificidades da Geometria, destacando-se o triângulo, Conceição (2018) aponta que esse é o calcanhar de Aquiles, tanto para professores quanto para alunos, sendo não compreendido muitas vezes.

Dados históricos apontam que os primeiros delineamentos relacionados aos triângulos têm sua origem na Grécia, com os estudos de Talles de Mileto (624-546 a.C.) relacionados à medida da altura de uma pirâmide no Egito, mas foi com Pitágoras (570-490 a.C.) que os estudos relacionados ao triângulo ganharam destaque, dada a demonstração do Teorema que leva seu nome, considerado um dos grandes feitos da Geometria. De acordo com Donce e Pompeo (1997, p. 36, grifos do autor), “dados três pontos A, B e C não colineares, a reunião dos segmentos AB, AC e BC é chamada triângulo ABC”. Diante da definição é possível observar que triângulo é o menor polígono, o mais simples e um dos mais importantes, devido às suas infinitas utilidades e propriedades, dentre as quais destacamos a rigidez.

Neves (2014, p. 34) aponta que o triângulo é a única figura redigida, isto é, “uma vez fixadas às medidas dos lados, as medidas dos ângulos não se alteram”. Diferentemente dos outros polígonos, o triângulo, quando submetido à situação de compressão, é o único que mantém suas propriedades, permanecendo intacto.  Dada essa característica, o triângulo desde a Antiguidade vem sendo utilizado em múltiplas construções, das mais simples até as mais complexas – como é o caso das pontes.

Assim, este estudo relata uma experiência desenvolvida na Fecima – Feira de Ciência e Matemática do Colégio Estadual Professora Nilde Maria Monteiro Xavier, localizado no município de Palmeiras/BA, na Chapada Diamantina; na feira objetivamos construir uma ponte de palito de picolé baseada nas propriedades do triângulo.

Metodologia

Este estudo fundamenta-se teórico-metodologicamente na investigação matemática. De acordo com Ponte, Brocardo e Oliveira (2009, p. 13), “investigar é descobrir relações entre objetos matemáticos conhecidos ou desconhecidos, procurando identificar as respectivas propriedades", ou seja, uma pesquisa em Matemática de cunho investigativo visa construir, de forma experimental, indutiva e por meio da resolução de problemas, conceitos, descobertas e redescobertas matemáticas. Desse modo, o presente estudo foi desenvolvido em cinco etapas:

  1. Experimento 1 – rigidez do triângulo: para o desenvolvimento desta etapa, foram construídas, utilizando palitos de picolé e percevejos coloridos, três formas geométricas: um quadrado, um triângulo e outro quadrado, porém este último com a diagonal. Objetivou-se com este experimento perceber e considerar que o triângulo era a única figura rígida, ou seja, que quando pressionado ele não perderia sua forma original, isto é, conservaria suas propriedades. De modo análogo, o quadrado com a diagonal demarcada.
  2. Estudo sobre construções de pontes: nesta etapa foi realizada análise minuciosa sobre como são construídas as pontes, em especial as pontes feitas com palitos de picolé. Durante as análises foi identificado que tais construções, em sua maioria, são realizadas por alunos que cursam Engenharia Civil para participar de concursos. A intenção com esse estudo era compreender a dinâmica de construção dessas pontes e os mecanismos e conceitos utilizados. Durante a etapa, observamos que um conceito básico na construção de qualquer ponte é o de treliça; tal conceito caracteriza a Etapa III deste estudo e o segundo experimento.
  3. Experimento 2 – construindo uma treliça: após estudos, foi possível identificar que para obter êxito na execução da construção de uma ponte é preciso compreender o que é uma treliça e como ela funciona. De acordo com Souza e Rodrigues (2008), treliça é uma estrutura constituída por membros interligados em seus extremos de modo a formar painéis triangulares e tem por finalidade desenvolver resistência quando submedida a certa força aplicada. Segundo Machado (2016), toda estrutura treliçada, em especial as pontes, lidam com duas forças: força de compressão e de tração. De acordo com Junior et al. (2012 apud Machado, 2016, p. 56), “a força de compressão age para comprimir ou diminuir a coisa sobre a qual está agindo, e a força de tração age para expandir ou aumentar a coisa sobre a qual está agindo”. Assim, as forças de tração e compressão são distribuídas sobre os nós (extremidades da estrutura treliçada), mantendo conexão delas, fazendo com que a estrutura não entorte ou rache.
  4. Experimento 3 – construindo a ponte: após a realização dos Experimentos 1 e 2, bem como da análise dos estudos da etapa II, deu-se início à construção da ponte aplicando os conceitos vistos em sala e aprimorados após as etapas I, II e III. É válido salientar que a ponte foi construída por partes utilizando palitos de picolé e cola de madeira. Assim, inicialmente foram construídas duas fileiras de palitos sobrepostos, um par com sete palitos e o outro com nove palitos, para montar as laterais. Em seguida, essas laterais foram unidas, como mostra a Figura 1.

Figura 1: Construção da ponte
Fonte: Acervo da pesquisa (2019).

  1. Experimento 4 – teste de carga da ponte: esta etapa objetivou identificar a carga máxima suportada pela ponte, dada sua construção – cola de madeira e palito de picolé. Inicialmente a estrutura foi pesada (Figura 2) para que pudesse ser estimada a carga que suportaria.

Figura 2: Peso da estrutura
Fonte: Acervo da pesquisa (2019).

Pesando 0,410kg, foi estimado, com base nos estudos realizados na etapa II, que a estrutura suportaria 100 vezes seu próprio peso, isto é, 41kg. Assim, para a realização do último experimento foram colocadas sobre a ponte algumas anilhas (pesos) de 10kg, 15kg, 20kg e 25kg, para que pudesse ser observado o peso que a estrutura suportaria.

Discussão dos resultados

Os dados produzidos e coletados foram discutidos em suas vertentes: a rigidez do triângulo e a ponte de palito de picolé. As discussões aqui apresentadas são direcionadas para elucidar as dúvidas referentes ao triângulo e para despertar a necessidade de utilizar outros meios para trabalhar Matemática que não sejam somente o quadro branco e a caneta piloto.

A rigidez do triângulo

Como discutido na primeira etapa da seção anterior, foram construídas três estruturas com palito de picolé e percevejos: (i) uma estrutura de forma triangular; (ii) uma estrutura de forma quadrada; e (iii) uma estrutura de forma quadrada com a diagonal; as três estruturas foram submetidas a um teste de força. Na estrutura (i) (ver Figura 3), quando pressionada, nada aconteceu, isto é, a estrutura se manteve igual e preservou todas as suas características.

Figura 3: Estrutura de forma triangular
Fonte: Acervo da pesquisa (2019).

Nota-se que há uma força sendo exercida sobre a estrutura triangular, mas esta se manteve intacta, não sofrendo alteração. Nesse momento, é possível perceber que a teoria, o que foi lido, discutido e estudado estava convergindo com a prática. Quando o mesmo teste foi realizado na estrutura quadrada, esta desconfigurou-se, perdendo todas as suas características e propriedades, como pode ser visto na Figura 4.

Figura 4: Estrutura de forma quadrada
Fonte: Acervo da pesquisa (2019).

É possível observar que na estrutura quadrada quase não foi exercida força; apenas ao segurá-la por suas extremidades (vértices) ela deixa de ter forma quadrada e assume a forma de losango. É possível concluir que, se os vértices opostos ficassem cada vez mais distantes, a estrutura transformar-se-ia em algo semelhante a dois segmentos de retas. Na estrutura (iii) essa perda de característica não foi observada, como se vê na Figura 5.

Figura 5: Estrutura de forma quadrada com a diagonal
Fonte: Acervo da pesquisa (2019).

Ao estudar a Figura 5, percebe-se que nada aconteceu à estrutura quadrada com a diagonal quando ela foi manipulada, o que se deve ao fato de sua diagonal transformar a estrutura quadrada em dois triângulos. Logo, diante das Figuras 3, 4 e 5 e apoiado nas ideias de Neves (2014), é possível concluir que o triângulo é a única forma geométrica rígida, isto é, que, quando submetida a qualquer experimento de força, não perde suas propriedades, diferentemente das demais formas planas. Observa-se ainda que a estrutura da Figura 5 é muito semelhante às cancelas utilizadas na maioria das propriedades rurais no Nordeste, em especial no interior da Bahia.

A ponte de palito de picolé

Inicialmente, é preciso que pontuemos que imaginamos ser capazes de construir uma ponte, principalmente que tínhamos condições. Todavia, dedicamo-nos a ponto de construir não só uma ponte, mas uma ponte que suportou carga até então não imaginada por nós.

Como pontuado na metodologia, foram realizados vários testes de carga na ponte: com 10kg, 20kg, 50kg, 80kg e 100kg. Na Figura 6 é possível observar o teste com 100kg.

Figura 6: Teste com carga de 100kg
Fonte: Acervo da Pesquisa (2019).

Como pontuado na metodologia, estimamos que a ponte suportasse 100 vezes seu próprio peso, mas a Figura 6 contradiz física e matematicamente essa afirmação. Durante o teste de carga, algumas pessoas que assistiam a essa etapa do projeto pareciam não acreditar no que estavam vendo – uma estrutura de palito de picolé suportar 100kg – e comentavam. Nesse momento, aproveitamos para explicar que o que tornava a estrutura tão resistente era a rigidez do triângulo.
Dando continuidade, passamos ao teste final: 200kg (Figura 7). Os riscos eram conhecidos, mas conhecer os limites da estrutura era de fundamental importância para o projeto, pois ele seria apresentado na Feira de Ciências e Matemática – Fecima (2019).

Figura 7: Teste com carga de 200kg
Fonte: Acervo da pesquisa (2019).

Na Figura 7 é possível observar a ponte com a carga de 200kg; ao receber essa carga a estrutura começou a estalar e a pender para frente, não suportando mais que 10 segundos, e rachou. Dada a construção e os experimentos anteriores, é possível inferir que a ponte poderia ter suportado uma carga superior, pois o que ocasionou a rachadura não foi apenas o peso, mas a base utilizada, que não era fixa; logo, com o sobrepeso movimentou-se e fez com que as anilhas caíssem sobre a ponte.

É válido salientar que havia outra ponte construída sob as mesmas condições e passou por todos os testes realizados, exceto o de 200kg, porque seria a estrutura exibida durante a Fecima (2019) e não poderia ser danificada, pois, além de ser o projeto a ser exibido, pretendia-se colocar sobre ela uma pessoa com peso inferior a 180kg, por questões de segurança. Na Figura 8 é possível observar o teste que realizamos na Fecima (2019).

Figura 8: Teste durante a Fecima (2019)
Fonte: Acervo da pesquisa (2019).

Durante toda exposição do trabalho, os visitantes se mostraram atentos e curiosos a respeito da construção, principalmente pelo fato de saber que seria permitido que pessoas subissem na ponte. Assim, chegando ao final da feira foi comunicado que estava liberada a subida na ponte, desde que a pessoa tivesse menos de 180kg. A pessoa que aparece sobre a ponte na Figura 8 pesa 80kg; quando ela se posicionou sobre a ponte, toda a atenção da feira voltou-se para o projeto, todos queriam entender o porquê de uma estrutura em palito de picolé conseguir suportar o peso de uma pessoa.

Nesse momento, foi trazida a questão da estrutura formada por triângulos (treliças), o caso da rigidez do triângulo e as forças de tração e compressão que atuavam quando a ponte recebia alguma carga. Assim, ao final de todos os experimentos e a exposição na feira, foi possível inferir que há possibilidades de trabalhar Matemática de modo que alunos sejam atores principais do processo de ensino-aprendizagem. Portanto, faz-se necessário e urgente que a escola, em especial a pública, proporcione aos alunos situações em que o conhecimento, em especial o matemático, faça-se presente para além do espaço da sala de aula.

Considerações finais

Diante dos estudos analisados e que subsidiaram este trabalho, percebemos que sabíamos quase nada a respeito do triângulo, apenas que era uma figura de três lados. Contudo, com o desenvolvimento do projeto passamos a vê-lo não apenas com uma simples figura, mas como a mais importante, principalmente para as múltiplas funções que desempenha. De modo análogo, o projeto contribuiu para que pudéssemos compreender a rigidez do triângulo e o porquê de cancelas, portas e portões terem suas diagonais demarcadas.

Para além da construção de conceitos, o projeto contribuiu para desmistificar a ideia de que a Matemática é uma ciência complexa, para poucos e tradicional. Existe uma Matemática fora daquela que é apresentada nos livros didáticos e que pode ser vivenciada pelos alunos da escola pública. Dando continuidade, foi gratificante ver todos os visitantes elogiando o projeto; foi a primeira vez que tivemos uma experiência como esta. Até então acreditávamos que essa sensação estava reservada para os alunos de colégios militares e federais.

Assim, pretendemos continuar a estudar o triângulo e a construir pontes; além disso, é de fundamental importância que haja investimentos para que a Matemática possa construir novas pontes e não barreiras, pois é devido a essa ponte, construída entre nós e a Matemática, que entendemos a necessidade de continuar compreendendo-a.

Referências

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CONCEIÇÃO, J. S. A construção do conceito de área nos anos iniciais do Ensino Fundamental: uma formação continuada.  2018. 205 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática), Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, 2018.

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MACHADO, G. C. O estudo dos triângulos através da observação de estruturas treliçadas e sua aplicação em competição de construção de pontes de espaguete. 2016. 99 f. Dissertação (Mestrado em Matemática), Centro de Ciência e Tecnologia, Laboratório de Ciências Matemáticas, Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Campos dos Goytacazes, 2016.

NEVES, E. M. Rigidez dos triângulos. 2014. 60 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Matemática), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São Paulo, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/115775.

PONTE, J. P.; BROCARDO, J.; OLIVEIRA, H. Investigações matemáticas na sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2009 (Coleção Tendências em Educação Matemática).

SOUZA, F. S. M.; RODRIGUES, R. B. Sistemas estruturais de edificações e exemplos. Relatório de Pesquisa. Faculdade de Engenharia Civil Arquitetura e Urbanismo. Departamento de Estruturas – DES, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.

Publicado em 08 de setembro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

RAMOS, Rayssa Gaspar; SILVA, Verônika Aryelle Guimarães da; DOURADO, Clara Ramos; CONCEIÇÃO, Jadson de Souza. Com a Matemática construímos pontes e não barreiras. Revista Educação Pública, v. 20, nº 34, 8 de setembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/34/com-a-matematica-construimos-pontes-e-nao-barreiras

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