“Não sei desenhar”: um ensaio sobre o bloqueio criativo em aulas de Artes Visuais
Danielle Reis Araujo
Pós-graduanda (UFRJ)
Este ensaio tem por objetivo refletir sobre o processo criativo dos alunos da turma 12B – segundo ano do Ensino Fundamental – de Artes Visuais do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp-UFRJ), de modo que se constatem os caminhos que geram os conflitos e bloqueios da criação no contexto de ensino-aprendizagem de Educação Artística. Para tanto, recorre-se a considerações relativas à desmistificação de paradigmas acerca da beleza e acerto pautados na necessidade de recorrer a uma reprodução mimética da realidade. Estima-se, com a elaboração de uma análise procedente de um quadro percebido durante o período de realização de estágio obrigatório, tecer argumentos críticos para a maneira como a questão da afetividade e construções de sentidos singulares emergem de experiências no contexto escolar.
Com o estabelecimento de prerrogativas legais basilares às metodologias e às práticas pedagógicas empenhadas no sistema educacional brasileiro, o processo de ensino-aprendizagem como um todo integrado passa a ser norteado por considerações político-filosóficas específicas, as quais, de modo geral, visam ao desenvolvimento pleno de cidadãos críticos perante a realidade em que se encontram inseridos (Brasil,1998). Uma dessas políticas estruturantes é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017), que, dentre muitas contribuições, propõe questões caras à delineação de um ensino perpassado, sobretudo, pela construção colaborativa de experiências no ambiente escolar, situando o aluno como sujeito histórico de direitos e de contribuição ativa em seu processo educativo. Especificamente no que diz respeito à composição do ensino de Artes Visuais, sobressai-se na BNCC tanto aspectos relativos à definição dos processos de ensino-aprendizagem quanto aos campos de experiências que entrelaçam competências da expressividade humana em suas múltiplas faces artístico-culturais.
No que concerne à prática educacional na Educação Básica pautada, sobretudo, nos eixos estruturantes da Educação Infantil (EI), é incumbida a garantia de seis direitos básicos de aprendizagem e desenvolvimento: conviver, brincar, explorar, expressar e conhecer-se. Em vista disso, compreende-se que o aluno tem a sua formação escolar relacionada a cinco campos de experiências relacionados ao seu contato com o eu, o outro e o nós; o corpo, gestos e movimentos; os traços, sons, cores e formas; a escuta, fala, pensamento e imaginação e os espaços, tempos, quantidades, relações e transformações (BNCC, 2017). Sendo assim, o ensino de Artes Visuais na EI confronta-se com as vivências e experiências individuais e coletivas desses discentes de modo não ordenado e, ao mesmo tempo, sob uma responsabilidade precípua ao desenvolvimento dos alunos enquanto indivíduos sociais: promover o reconhecimento da arte como um ramo potencializador das capacidades de criar e expressar.
Apesar disso, muitas questões interpõem problemas à efetivação da prática de ensino como um todo e, no que diz respeito ao ensino de Artes Visuais ainda nos primeiros anos da vida escolar, a situação não se mostra diferente. O que se vê, corriqueiramente, são práticas pouco promotoras da criatividade, reforço de estigmas quanto à criação e reprodução de padrões há muito combatidos por uma pedagogia que se propõe ativa em prol da autonomia. Tal situação, inegavelmente, é perceptível em contextos os mais variados possíveis e, uma vez perpetuada, pode vir a ocasionar danos que vão de encontro a uma concepção de ensino apreciável.
É, pois, nesta perspectiva que o presente ensaio se delineia: tecer uma consideração crítica inicial acerca da maneira como o ensino de Artes Visuais delimita o processo criativo, de modo a demonstrar alguns espólios percebidos durante a realização do estágio obrigatório no CAp-UFRJ no que tange à maneira como os alunos de Educação Infantil se projetam diante do ato de criar nas aulas dessa disciplina. Assim, almeja-se relacionar discussões teóricas e percepções empíricas na tentativa de pensar o processo de ensino-aprendizagem de Artes Visuais na Educação Básica como uma prática afetiva, pedagogicamente intencionada à promoção do criar, propiciadora de experiências, construtora de bens simbólicos e gerenciadoras da conjugação de diferentes linguagens artísticas, bem como ao que o processo criativo a elas subjacentes se propõem.
Desenvolvimento
Partindo de concepções acerca da produção artística nas aulas de Artes Visuais, sabe-se que “a capacidade criadora é inata ao ser humano, não se vive sem, é ela quem impulsiona recursos para melhorias constantes dos aspectos para os quais o indivíduo é preparado, gera mecanismos para favorecer diversos meios, tanto externos quanto internos” (Pereira; Deheinzelin, 2017, p. 3).
No processo de criação, o indivíduo estabelece um diálogo entre suas experiências e potencialidades, no entanto, entraves gerados quer seja pelo medo de não atingir o padrão de beleza ou realismo, censura e controle ao corpo subversivo ou consideração de certo ou errado no ato artístico, inibem o aluno no urdimento das atividades em sala de aula. Sendo assim, o professor de Artes Visuais, como mediador no processo educacional do aluno, no que diz respeito às linguagens artísticas, tem o papel de estimular a imaginação e promover tanto conhecimentos teóricos relativos à História da Arte quanto propostas que impulsionem e deem autonomia criativa à turma, a fim de que essa possa construir, gradualmente, apreço e familiarização com o processo criativo em suas múltiplas possibilidades de materialização por meio das linguagens artísticas emergentes nas propostas pedagógicas.
Na vivência do estágio obrigatório no CAp-UFRJ, observou-se, na turma acompanhada de Artes Visuais, um quadro específico de bloqueio criativo nas produções das atividades artísticas de uma aluna, cuja inibição se mostrou altamente elevada ao ponto de, em uma aula centrada na proposta de redigir e produzir um desenho sobre o que os alunos não gostavam nas aulas de artes, a referida aluna escrever “não gosto de criar”, deixando o restante da folha em branco. Esse episódio foi escolhido como motivador do tema, uma vez que fomentou questões cruciais relativas ao modo como os alunos lidam com demandas e expectativas envoltas na criação artística.
De fato, esta é uma questão intrigante do ponto de vista da análise do processo de ensino-aprendizagem e, certamente, pode ser reflexo de uma união de diversos fatores coexistentes. No entanto, ao mesmo tempo em que tal “gatilho” expõe esse aspecto multifacetado, exibe também a maneira como a construção de sentidos a respeito do criar artístico integra a sala de aula de Artes Visuais, sem, no entanto, limitar-se às suas fronteiras, visto que a criação define-se por um processo dinâmico e altamente recrutado ao longo da interação humana.
Frente a tais questões, surgem algumas que podem corroborar a prática docente em Artes Visuais, ainda mais em se tratando do contexto da EI, uma etapa da escolarização salutar à consolidação de aprendizagens que perpassarão não só a vida acadêmica do aluno, como também moldarão suas potencialidades enquanto sujeito que se relaciona a todo momento com outros sujeitos, com os quais exercem laços políticos, afetivos, convencionais, históricos e também artísticos. Isso faz com que novas perspectivas sobre os objetivos e os alcances prévios do ensino de Artes Visuais como um catalisador de eventos cotidianos e caleidoscópio da expressividade em suas dimensões criativa, receptiva e crítica.
Assim, criar, no ambiente escolar, ação intrinsecamente relacionada ao fazer pedagógico no eixo de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias – abrangendo, portanto, outras cadeiras disciplinares que não a de Artes Visuais, tais como as de Dança, Teatro, Educação Física, Língua Portuguesa, Literatura e Música – volta-se a discussões ainda maiores na esfera da Pedagogia. Sendo assim, pontos principais da formação de professores, das concepções de ensino-aprendizagem, de metodologias didáticas e avaliativas ativas e de conceitos fundamentais ao desenvolvimento cognitivo do ser humano vêm à tona, por exemplo, por meio de uma resposta aparentemente simplória como “não gosto de criar”.
Evidentemente, a criação detém-se a uma temática um tanto quanto subjetiva, se pensarmos sua magnitude expansiva, o que implica considerar muitas variáveis em contexto educacional. Por meio da exploração da criatividade, da apropriação e do uso autônomo de elementos auxiliadores para a criação, o indivíduo entra em contato com a chance de refazer-se diante da realidade, de ressubjetivar seu olhar e, por fim, de assumir conscientemente uma postura de agente do mundo, uma postura necessariamente autoral. Tal característica não é delegada inequivocadamente ao ato de brincar, conforme a Psicologia pontua há décadas, mas se expande ao processo de criação artística, dando-lhe a característica central de uma ação contínua de apropriação de conhecimentos por meio da atividade cognitiva mais fácil e acessível de todas: a criatividade, a capacidade de elaborar estrategicamente alternativas à representação do mundo, do eu e de artefatos outros componentes da matriz cultural em que nos inserimos.
Em detrimento disso, faz-se plausível a dedução de que um ensino de Artes Visuais que se preze tenha de compactuar com proponentes estruturantes de uma proposta centrada na promoção do prazer por meio da produção de bens simbólicos, isto é, por meio da criação.
Conclusão
Com base nas reflexões levantadas a partir deste estudo de caso e apoiadas à luz das concepções teórico-metodológicas apresentadas neste ensaio, buscamos estabelecer uma ponte entre as práticas pedagógicas empenhadas no ensino de Artes Visuais nos primeiros anos da escolarização e os proponentes norteadores de uma prática de ensino consistente. Em outras palavras, o presente ensaio almeja contribuir com a proliferação e difusão de diferentes discussões a respeito dos entraves pedagógicos, dos componentes das ações educacionais e dos percalços recorrentes no processo de ensino-aprendizagem de Artes Visuais.
Buscou-se, portanto, considerar que o ensino de Artes Visuais deve refletir, necessariamente, postulados básicos do universo artístico por si, isto é, algo que esteja em conformidade com a naturalidade e razão de existir do processo de criação. Desse modo, ainda que as condições em contexto escolar disponham naturalmente de demasiada artificialidade contextual, defendemos uma visão sobre a criação artística pareada à perspectiva de Ostrower (1987, p. 135), para quem “o processo de criar significa um processo vivencial (...), enriquece espiritualmente o indivíduo que cria, como também o indivíduo que recebe a criação e a recria para si”.
Isso posto, assumindo a postura de que a criação seja inerente à condição humana e que práticas de ensino de Artes Visuais devem promover condições propícias ao desenvolvimento dessa característica, bem como em respaldo nas diretrizes legais a respeito do ensino, nota-se que tal distanciamento entre a realidade e a estimativa ideal para o entrosamento do criar em sala de aula deve ser inibido. Afinal, sua existência demonstra um declínio da proposta pedagógica para o tratamento das linguagens artísticas no ambiente escolar e, portanto, não pode ser tolerável com base em justificativa de outras ordens arroladas às dificuldades corriqueiras da profissão docente numa escala mais geral.
Referências
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Educação Infantil e Ensino Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2017.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BARBOSA, Ana Mae (Org.). Arte/Educação Contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
IAVELBERG, Rosa. Para gostar de aprender arte: sala de aula e formação de professores. Porto Alegre: Artmed, 2003.
LOWENFELD, Victor et al. Desenvolvimento da capacidade criadora. São Paulo: Mestre Jou, 1988.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1987.
PEREIRA, Isac; DEHEINZELIN, Monique. Os caminhos da criatividade em artes visuais na sala de aula: uma proposta de avaliação mediada pelos conflitos e contextos contemporâneos. Revista Belas Artes, v. 24, p. 1-18, 2017.
PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação a teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de Janeiro: Atlântica, 2005.
Publicado em 15 de setembro de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
ARAUJO, Danielle Reis. “Não sei desenhar”: um ensaio sobre o bloqueio criativo em aulas de Artes Visuais. Revista Educação Pública, v. 20, nº 35, 15 de setembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/35/joseph-rnao-sei-desenharr-um-ensaio-sobre-o-bloqueio-criativo-em-aulas-de-artes-visuais
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