Violência de gênero e o ensino pela Pedagogia de Projetos: o caso da modalidade EJA em uma escola municipal de Duque de Caxias/RJ
Isaac Gabriel Gayer Fialho da Rosa
Doutor em Geografia (UFRJ)
Andrea Cristina Santana de Castro
Professora em Duque de Caxias/RJ
O Brasil apresenta uma das mais altas taxas mundiais de violência contra a mulher. Essa violência se manifesta das mais variadas maneiras, desde agressão simbólica (como silenciamentos ao desnível salarial no mercado de trabalho) à violência explícita, como agressão física ou até feminicídios.
O município de Duque de Caxias localiza-se na Baixada Fluminense e se destaca negativamente nesses dados. Segundo levantamento do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), a cidade é líder no quesito no estado no ano de 2019, com a 1ª posição em registros de violência doméstica de gênero. Em 2018, o TJ-RJ apontou a ocorrência na cidade de mais de 50 mil casos de lesão corporal contra a mulher, ameaças sendo tipificadas como violência psicológica em mais de 27 mil casos e violência moral em mais de 8 mil casos, denotando um cenário epidêmico de violência de gênero na urbe em destaque.
Acredita-se que todos os tipos de violência de gênero são oriundos do machismo e patriarcado estrutural da sociedade brasileira. Destaca-se a importância das ações jurídico-policiais para o combate dessa chaga social (como a construção e efetivação da Lei Maria da Penha, ou tipificação do feminicídio no texto penal), mas entende-se que, de maneira profunda, a mudança dessa característica social pode se dar por meio de ações educativas, já que se pretende, a partir dessas, desnaturalizar as desigualdades de gênero para se desconstruir o machismo que permeia as relações sociais/escolares. Defende-se assim que a escola pode se consubstanciar como uma importante instituição de prevenção de violência e extirpação de agressões de gênero.
A escola Municipal Expedicionário Aquino de Araújo pertence à rede de Duque de Caxias/RJ e foi fundada no ano de 1945. Em 1956, foi transferida para o bairro Vila São Luiz (localização da atualidade) e atualmente funciona em 3 turnos, com mais de 40 turmas (cerca de 1.700 estudantes) do Ensino Fundamental regular e Fundamental na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Na modalidade EJA percebeu-se ao longo da vivência docente um cenário de presença de violência contra a mulher na rotina dos próprios estudantes e de seus familiares. Desse modo, se produziu um projeto interdisciplinar de violência de gênero ao longo do ano letivo de 2019. Portanto, o objetivo central do presente escrito é apresentar o trajeto da produção dessa intervenção educacional na escola em tela.
Objetivos
O objetivo central do trabalho é apresentar as contribuições do projeto interdisciplinar contra a violência de gênero aplicado na Escola Municipal Expedicionário Aquino de Araújo, da rede municipal de Duque de Caxias/RJ, denominado “Violência de Gênero - uma outra realidade é possível?”, executado na modalidade EJA do Fundamental II no ano letivo de 2019.
Pretende-se também, como objetivos secundários:
- Fazer uma reflexão sobre a desnaturalização dos papéis de gênero na sociedade;
- Refletir como as desigualdades de gênero são estruturadoras da lógica de violência de gênero;
- Problematizar o papel da escola como instituição preventiva de violência de gênero;
- Explicitar os caminhos pedagógicos do projeto em tela.
Referencial teórico
As sociedades latino-americanas foram marcadas, ao longo da sua história, por intensa desigualdade racial e de gênero, visto que, ao longo da sua formação colonial, ao gênero feminino não foi possibilitada quase nenhuma participação na vida pública (como o debate político), mas apenas afazeres na esfera privada (como os cuidados com o lar). Além disso, sobretudo contra as mulheres negras e indígenas, um cenário de intensa violência real e simbólica (como estupros) foi marca constante em toda a formação da América Latina como um todo, e no Brasil, em particular.
O patriarcado, portanto, é um traço inequívoco da sociedade brasileira. Esse é definido pela geógrafa Joseli Silva (2009) como:
um sistema de relações hierarquizadas no qual os seres humanos detêm poderes desiguais, com a supremacia da autoridade masculina sobre a feminina em diversos aspectos da vida social, abrangendo desde os sistemas econômicos e sistemas jurídico-institucionais até os regimes cotidianos do exercício da sexualidade (p. 34).
Engels (1986), dentro do enfoque marxista, debate em sua obra a relação entre a reprodução do capitalismo e a organização monogâmica da família burguesa. Para esse autor, a monogamia seria imposta a mulher para garantir a paternidade dos filhos como herdeiros do patrimônio acumulado calcado na propriedade privada capitalista. Dessa maneira, existiria castração sexual da mulher, enquanto o homem poderia ter outras relações sexuais com o meretrício. Para o filósofo, esse modelo de família foi uma grande derrota histórica para a mulher, devendo existir uma superação da sociedade de classes e da propriedade privada para uma efetiva emancipação feminina.
Para Welby (1991), o patriarcado se mantém no presente pelos seguintes mecanismos que ratificam e reproduzem o domínio do homem em relação à mulher: trabalho doméstico, trabalho remunerado, Estado, violência, sexualidade e instituições culturais.
Nas reflexões dessa autora, essas variáveis são interdependentes e mantêm a sociedade com a atual situação de desigualdade de gênero. O trabalho doméstico é entendido como obrigação feminina e visto como “ato de amor” para com os membros familiares (marido e filhos). Esse, então, é apropriado pelo homem sem nenhuma remuneração e com baixa significância no cotidiano social, penalizando a mulher em termos de competitividade no mercado de trabalho remunerado. Os homens dominam as instituições públicas e construção de legislação no âmbito do Estado; sendo assim, essas são permeadas pelo patriarcado. Esse jogo de poder cria, por parte dos homens, redes de geração de violência simbólica e efetiva contra os corpos femininos. E, por fim, essa autora reflete sobre a importância do controle masculino das instituições culturais que normalizam e naturalizam as representações de homem e mulher na sociedade, como obras artísticas ou peças de propaganda de massa.
Desse modo, articularam-se historicamente movimentos de mulheres para desconstrução desse papel social de grupo a ser subjugado pelos homens. Podemos citar, como exemplo, a luta das sufragistas europeias no século XIX por melhores condições de trabalho e direito à participação política.
O uso da categoria “mulher” para esse tipo de luta se esvaiu a partir da década de 1970, visto que os movimentos feministas perceberam que essa conceituação naturaliza papéis sociais de gênero atribuídos ao grupo feminino. Simone de Beauvoir, no livro O segundo sexo (1967), desenvolve um pensamento extremamente importante para retirar a definição de mulher como mera marca biológica, mas defini-la como construção social. Seguem as palavras da própria autora:
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino (p. 9).
Dentro desse importante debate, a autora corrobora a concepção de que fêmeas e machos humanos são constructos sociais como homens e mulheres, e não meras determinações biológicas. Dessa maneira, parafraseando a importante autora, ninguém nasce homem ou mulher, torna-se, ao longo da sua socialização.
Sendo assim, os termos de gênero feminino suplantam, no debate, o conceito de mulher (já que esse é visto como primordialmente biológico) nas lutas de emancipação feminista ao longo da história.
A partir dessa reflexão, pode-se perceber que homens e mulheres exercem papéis sociais construídos culturalmente, e não por determinismo biológico. Laraia (1986) define que todo sujeito passa ao longo da vida por instituições culturais (como família, escola, rede de amigos etc.) que formam sua visão cultural de mundo. Dessa maneira, essas instituições são, em regra, machistas e tendem a reproduzir o patriarcado que inferioriza a mulher como categoria social.
Butler (1990) faz uma crítica à noção de identidade de gênero extremamente fixa do papel feminino, já que essa autora prega que o mesmo pode e deve admitir transitoriedade de socialização. Já que esse não é um mero corpo passivo em que se pode imprimir uma noção determinista e única do que socialmente se define como mulher. Dessa maneira, admitem-se vários papéis sociais desse gênero.
Defende-se, portanto, que a escola pode ser uma importante instituição na construção da noção de que a mulher deve desempenhar diversos papéis públicos, laborais, artísticos, etc., para que ocorra uma superação de uma noção do feminino como sinônimo de dependência e fragilidade, logo, sujeita à violência masculina.
Sendo assim, cabe à escola e aos seus profissionais primeiro produzir uma autorreflexão no sentido de desconstruir essa percepção da reprodução de uma educação machista, para depois conseguir, como agente de socialização cultural, fomentar sociabilidades entre os estudantes que gerem combate à reprodução do patriarcado e visão que inferioriza a mulher nas diversas variáveis sociais.
Dessa maneira, acredita-se, na presente pesquisa, que a escola pode contribuir para a diminuição da violência de gênero, pois essa é efeito direto de papéis sociais de homens e mulheres construídos culturalmente. O corpo e a psique feminina são vistos como posse pelo individuo socializado como homem. Dessa maneira, ao desconstruir essa visão desigual de homem e mulher e da reprodução do patriarcado pode-se contribuir para a diminuição da violência de gênero que marca o território de ação da escola em tela.
Procedimentos metodológicos
A motivação para a construção do projeto sobre violência de gênero advém de várias escalas de fatores. O primeiro diz respeito a essa chaga existir de maneira marcante no território caxiense. Posteriormente, na rotina da escola, percebe-se que os alunos atendidos pelo EJA (modalidade objeto da intervenção) verbalizam para docentes e funcionários em várias ocasiões a existência de casos de violência contra a mulher em suas vidas diárias, justificando assim a intervenção para dimensionar a escola como um espaço que possa dirimir esse processo socialmente deletério.
Cabe destacar que a escola já apresenta um histórico de utilização da pedagogia de projetos pela equipe, facilitando em termos logísticos e de cultura discente e docente para a execução dessa atividade, que se realizou ao longo do ano letivo de 2019.
O trabalho no espaço escolar foi organizado por meio de construção de projeto pedagógico interdisciplinar. Acredita-se que, em muitos casos, a organização curricular estanque formal dificulta a produção de uma intervenção de longo prazo com os estudantes e não produz diálogo entre os conhecimentos disciplinares. Dessa maneira, o trabalho por projetos gera uma intervenção de longo prazo com as turmas e permite a produção de pontes entre as várias disciplinas escolares. A pedagogia por projetos acredita que a escola não é um mero corredor de passagem, onde o aluno só utilizará aquele saber construído no futuro da sua vida. Ao contrário dessa concepção, defende que a vida e aprendizagem vão se construindo de maneira imbricada. Geram-se, assim, temas que estejam no cotidiano do estudante, para que as intervenções escolares façam sentido de imediato na vida desses sujeitos-aprendizes (Leite, 1998).
Para o desenvolvimento do projeto, utilizou-se o debate do tema de violência de gênero nas mais variadas expressões artísticas, tais como curtas-metragens, longas-metragens, música, clipes, teatro, etc. A ideia que regulou essa decisão advém das reflexões de Paixão (2016) ao propor a narrativa transmídia como passível de apropriação pela educação escolar. O autor enfatiza que essa estratégia é bastante comum na indústria cultural, ao se contar uma estória que se comunica em livros, cinema, séries, quadrinhos, etc., mas que esse encaminhamento é pouco utilizado pela escola. A riqueza desse processo diz respeito a conceber que nenhuma estratégia narrativa é completa em si, necessitando assim de diálogo entre os meios para um enriquecimento da problemática em tela.
Para tanto, o projeto apresentou os seguintes objetivos geradores:
a) Compreender as relações de gênero como construção cultural;
b) Conhecer a luta da emancipação feminina;
c) Problematizar a violência contra a mulher e o feminicídio;
d) Esclarecer sobre a Lei Maria da Penha.
Apresentação e discussão de resultados
Para a realização do projeto, programou-se, ao longo do ano letivo, uma série de intervenções com a utilização de diversas expressões artísticas para desenvolver o método transmídia.
A problematização inicial foi feita com o curta-metragem Acorda Raimunda, Acorda, de 1990, sob a direção de Alfredo Alves. Essa película produz uma narrativa de inversão de papéis de gêneros entre homens e mulheres. O uso desse recurso se deu para desnaturalizar as identidades de gênero e fazer com que o estudante perceba que essas são edificações culturalmente posicionadas.
Exibiu-se também a animação Era uma vez outra Maria, de 2006, sob a direção de Reginaldo Bianco. Essa obra enfatiza uma personagem central que questiona os estereótipos da socialização feminina, tais como brincadeiras de menino e menina, divisão desigual dos trabalhos domésticos, castração dos primeiros desejos sexuais etc. A ideia era, a partir da película, discutir com os educandos sobre como essas identidades de gênero podem ser tensionadas e ressignificadas.
Posteriormente, fez-se com os alunos um jogo de perguntas e respostas sobre identificação de objetos e cômodos masculinos e femininos. A meta era também tencionar essa naturalização de objetos como femininos ou masculinos.
Figura 1: Exemplos de perguntas do jogo utilizado
Fonte: Cristiano das Neves Bodart
Dentro do debate do projeto, foi organizada uma saída pedagógica com os estudantes ao teatro Firjan Sesi Caxias para assistir à peça Mujeres de Arena – um grito contra os feminicídios, do dramaturgo Humberto Robles. A reflexão trazida pela montagem visa debater a violência de gênero na América Latina.
Figura 2: Professores e alunos no Teatro Firjan Sesi Caxias na peça Mujeres de Arena
Dentro do projeto, ocorreu também a exibição do longa-metragem As sufragistas, de 2015, com a direção de Sarah Gavron. O objetivo central da sessão era promover um debate sobre a história das lutas femininas por direitos trabalhistas e expressão política.
Em outro momento, fizemos a exibição do clipe e debate da música Rosas, do grupo de rap Atitude Feminina. Essa canção narra a história da violência de gênero dentro de uma relação e a eclosão de um feminicídio. A meta era debater com os estudantes as características da história de agressão contra as mulheres no Brasil.
Posteriormente, foi feita uma roda de conversa com os alunos sobre a tipificação do feminicídio e a Lei Maria da Penha. A ideia era trabalhar a importância dos avanços jurídicos para a emancipação feminina.
Por fim, como avaliação, foram produzidos pelos alunos textos de reflexão sobre violência de gênero, que foram organizados em um livro pela equipe pedagógica do colégio e apresentado para a comunidade escolar na culminância do projeto, no dia 25 de novembro de 2019, marcado como o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher.
Figura 3: Produção de textos pelos alunos sobre a violência contra a mulher
Considerações finais
A violência de gênero é uma chaga social em níveis epidêmicos presente em várias escalas espaciais de análise: América Latina como um todo, Brasil e o município de Duque de Caxias. Dessa maneira, essa questão apareceu como uma problemática importante para os estudantes da modalidade EJA na escola aqui enfocada. Sendo assim, ratifica-se a importância da instituição escolar como um braço de enfrentamento dessa problemática.
Cabe o desenvolvimento, por parte da escola, da desnaturalização do papel feminino como posse e propriedade do sujeito masculinizado, visto que, se essa desconstrução ocorrer, tende a existir a diminuição dos vários tipos de violência contra a mulher presentes na sociedade.
Cabe destacar a importância da pedagogia de projetos como método que permite intervenções de longo prazo articuladas por vários saberes escolares. O projeto em tela percebeu que o método transmídia enriquece o debate escolar ao permitir que várias estratégias narrativas fossem elencadas para enfrentar os desafios educativos de tema tão complexo.
Por fim, conclui-se que a escola deve saber observar as questões trazidas pelo seu grupo discente, para que essa educação não se manifeste apenas em termos bancários (utilizando reflexão de Freire, 2019), mas produza, de fato, transformações nos sujeitos, para que esses produzam um mundo melhor e efetivamente mais cidadão.
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.
BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. London: Routledge, 1990.
ENGELS, Friedrich. El origen de la familia, la propiedad privada y el Estado. Madrid: Fundamentos, 1986.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.
LARAIA, R. B. Cultura. Um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
LEITE, Lúcia Helena Alvarez (Org.). Projetos de trabalho: repensando as relações entre escola e cultura. Belo Horizonte: Balão Vermelho, 1998. (Cadernos de Ação Pedagógica).
PAIXÃO, Y. N. F. O uso da narrativa transmídia no ensino de Geografia. Tese (Doutorado em Geografia), Departamento de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
SILVA, J. M. (Org.). Geografias subversivas: discursos sobre espaço, gênero e sexualidade. Ponta Grossa: Todapalavra, 2009.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Dados da violência contra a mulher. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/6237468. Acesso em: 6 abr. 2020.
WELBY, S. Theorizing Patriarchy. Londres: Basil Blackwel, 1991.
Publicado em 15 de setembro de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
ROSA, Isaac Gabriel Gayer Fialho da; CASTRO, Andrea Cristina Santana de. Violência de gênero e o ensino pela Pedagogia de Projetos: o caso da modalidade EJA em uma escola municipal de Duque de Caxias/RJ. Revista Educação Pública, v. 20, nº 35, 15 de setembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/35/joseph-violencia-de-genero-e-o-ensino-pela-pedagogia-de-projetos-o-caso-da-modalidade-eja-em-uma-escola-municipal-de-duque-de-caxiasrj
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