O romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e os cortiços de hoje: reconhecendo as segregações socioespaciais na área da Lapa /RJ, por meio do trabalho de campo em Geografia
Rafael Alves de Freitas
Licenciado em Geografia (UERJ/Cederj) e bacharel em Sistemas de Informação (FEUC), atua nas linhas de pesquisa de Geografia Humana, Estudo sobre o Lugar, Interdisciplinaridade e Ensino da Geografia
Phelipe Florez Rodrigues
Doutor e mestre em Educação (ProPEd/UERJ), licenciado em Geografia (UFF), professor universitário (Unesa), pesquisador do Grupo Políticas de Currículo e Cultura (ProPEd/UERJ) e do Laboratório de Ensino/Pesquisa em Geografia do Araguaia (UFMT), professor da Educação Básica em escolas privadas e na Seeduc/RJ, onde é coordenador pedagógico
O papel da Educação e, dentro dessa, o do ensino de Geografia, é trazer à tona as condições necessárias para a evidenciação das contradições da sociedade pelo espaço, para que no seu entendimento e esclarecimento possa surgir um inconformismo e, a partir daí, urna outra possibilidade para a condição da existência humana.
Rafael Straforini
O trabalho de campo aqui apresentado nasce da ideia de aliarmos Geografia e Literatura, por meio do romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Esse romance foi lançado pela primeira vez em 1890, e em sintonia com a doutrina naturalista, escola literária que nasceu na França e que buscava denunciar os fatos reais da sociedade, logo inspirando Azevedo, sendo esse o mais importante escritor naturalista aqui do Brasil. A obra é composta de 23 capítulos, que relatam a vida em uma habitação coletiva de pessoas pobres (cortiço) na cidade do Rio de Janeiro dos fins do século XIX (Coutinho, 2002). Este trabalho de campo foi realizado ainda durante a minha graduação em Geografia pela UERJ/Cederj, para a disciplina de Estágio Supervisionado IV, sob a supervisão do professor de Geografia, Phelipe Florez Rodrigues, o qual também é autor.
Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), nascido na capital São Luís do Maranhão em 14 de abril de 1857, além de ter sido escritor, foi caricaturista, jornalista e diplomata. É o patrono da cadeira de número 4 da Academia Brasileira de Letras e autor de obras como O Mulato (1881), Casa de Pensão (1884) e O Cortiço (1890), este último considerado sua obra-prima e o representante máximo da inauguração do naturalismo no Brasil. Azevedo foi um crítico ferrenho a denunciar por meio da Literatura a sociedade provinciana brasileira e de suas instituições, além de denunciar a realidade vivida daqueles que moravam em cortiços, sabidamente os das camadas mais pobres da sociedade à época (Coutinho, 2002).
De modo geral, os cortiços são pequenos quartos de cômodos, com pouca ou nenhuma luminosidade, por vezes úmidos e sem ventilação, onde os moradores compartilham do mesmo banheiro. Essa estrutura inóspita de moradia (que também se aplica às favelas) mostra a precariedade em que viviam e vivem pessoas, lugar de segregação de quem não pode pagar por um lugar que ofereça condições habitacionais servidas de infraestrutura mínima, tais como saneamento básico, água tratada, coleta de lixo urbano, etc. É sobre esses aspectos que Azevedo se debruçou ao escrever esse romance, do qual se torna recurso didático neste trabalho de campo enquanto possibilidade interdisciplinar, no diálogo entre Geografia e Literatura, tendo no conceito de segregação socioespacial o referencial que funciona como elo entre ambas.
Assim, a escolha desse romance se dá pelo contexto em que ele foi escrito e pela realidade atual de algumas áreas da cidade do Rio de Janeiro, como a área da Lapa, recorte espacial de investigação deste trabalho e que mantém, ainda nos dias de hoje, cortiços, mostrando assim a persistência da desigualdade social.
Em suma, é importante para o leitor desse romance perceber que a crítica social estabelecida por Azevedo se dá por meio de algumas estratégias. Primeiro, pela descrição de um cenário (lugar) corrompido pela ausência do Estado; segundo, por personagens avessos aos costumes aristocráticos da época e aliados à segregação social decorrente dos cortiços. Quase 130 anos depois de publicada pela primeira vez, a obra de Azevedo continua atual, por refletir problemas históricos e caros à nossa sociedade.
Objetivo da atividade e justificativa
O objetivo deste trabalho de campo foi levar os alunos a reconhecer visualmente a ocupação dos cortiços de hoje, dispostos na área da Lapa, que ainda apresenta e mantém diversas habitações coletivas do século XX. Nesse contexto, promovemos uma investigação junto com os alunos, para que pudéssemos, através do empirismo, observar nesta área da cidade os conceitos estudados previamente em sala de aula e amplamente debatidos a respeito da segregação socioespacial verificada a partir das mudanças de paisagens sofridas ao longo do tempo, mas que ainda mantém suas marcas de outrora, entendendo assim a produção e estruturação desse espaço urbano da cidade, em que convive a desigualdade social de um lado com construções modernas do outro.
A partir dos romances literários, tendo aqui O Cortiço, os alunos podem ser despertados a ter um senso crítico e reflexivo, tal como pensar, questionar e debater sobre o espaço geográfico dentro das obras literárias e, com isso, trazer para sua realidade escolar e fora dela essa criticidade tão importante não só para a Geografia enquanto ciência/disciplina, como para a própria formação do aluno enquanto cidadão consciente do seu papel na sociedade.
Consequentemente, a proposta de que a leitura [de Literatura] seja enfatizada na sala de aula significa o resgate de sua função primordial, buscando, sobretudo, a recuperação do contato do aluno com a obra de ficção. Deste intercâmbio, respeitando-se o convívio individualizado que se estabelece entre texto e leitor, emerge a possibilidade de um conhecimento real, ampliando os limites – até físicos, já que a escola se constrói como um espaço à parte – a que o ensino se submete (Zilberman, 2009, p. 35).
Importante destacarmos também que a Literatura é pouco ou mal utilizada no campo geográfico, embora os Parâmetros Curriculares Nacionais vejam o seu uso como uma nova possibilidade por meio da interdisciplinaridade no ensino de Geografia. De acordo com os PCN, é possível aprender Geografia com a ajuda da leitura de alguns autores/clássicos da Literatura Brasileira.
Com isso:
Ao pretender o estudo das paisagens, territórios, lugares e regiões, a Geografia tem buscado um trabalho interdisciplinar, lançando mão de outras fontes de informação. Mesmo na escola, a relação da Geografia com a Literatura, por exemplo, tem sido redescoberta, proporcionando um trabalho que provoca interesse e curiosidade sobre a leitura desse espaço. É possível aprender Geografia desde os primeiros ciclos do ensino fundamental, mediante a leitura de autores brasileiros consagrados (Jorge Amado, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, entre outros) (PCN, 1998, p. 33).
Ainda nesse contexto, ressaltamos que a interdisciplinaridade é um conceito que pode ser entendido como a integração de duas ou mais áreas do saber para investigações mais analíticas, mas não é somente isso, pois é preciso que esse conceito nos remeta, em última análise, a caminhos novos do conhecimento que em uma única área/disciplina separadamente não seria possível conhecer. Segundo Farias (2014),
a interdisciplinaridade, em quaisquer das suas perspectivas, procura restabelecer o diálogo entre os diferentes campos do conhecimento, entender melhor a relação entre o todo e as partes, restituir a integração entre as particularidades e a totalidade, entre a unidade e a diversidade (Farias, 2014, p. 59).
Desse modo, o uso de obras literárias no ensino de Geografia deve ser encarado pelo professor como possibilidade para novas práticas educativas, em que a ciência geográfica lança mão de recursos didáticos que podem ganhar destaque no processo de ensino-aprendizagem, além da inserção da proposta interdisciplinar como boa estratégia para o aprendizado dos conteúdos trabalhados com os alunos. E aqui, além da prática interdisciplinar, ainda oferecemos um trabalho de campo, o que ajuda a consolidar os conhecimentos adquiridos na teoria. Para Castrogiovanni (2000, p. 13), trabalho de campo é “toda atividade oportunizada fora da sala de aula que busque concretizar etapas do conhecimento e/ou desenvolver habilidades em situações concretas perante a observação e participação”.
O trabalho de campo e a metodologia
O trabalho de campo aconteceu no dia 05 de outubro de 2019, das 07h às 13h, com 30 alunos da turma 3001 do 3º Ano do Ensino Médio (sendo 18 meninas e 12 meninos, entre 16 e 20 anos de idade), do Ciep 313 Rubem Braga, situado no bairro de Senador Camará, na cidade do Rio de Janeiro/RJ e sob supervisão do professor de Geografia, Phelipe Florez Rodrigues. O recorte espacial da área de estudo percorrida com os alunos encontra-se a seguir:
Mapa 1: Área de Estudo (Campo)
Fonte: Google Earth.
Em campo, andamos pelas ruas da Lapa, fotografando – “já que a fotografia torna-se uma poderosa ferramenta de auxílio no ensino de Geografia, pois é de fácil manuseio e obtenção. Com ela, podemos trabalhar temas e conceitos importantíssimos para a nossa disciplina, como a paisagem, o território e o espaço geográfico” (Santos; Chiapetti, 2011, p.169) – as construções modernas e as antigas, expressas pelas suas fachadas, muitas degradadas, onde hoje encontramos muitos dos cortiços que ainda persistem no cenário carioca, principalmente nessa área central da cidade.
Nesse sentido, Milton Santos (2007) diz que
o passado passou e só o presente é real, mas a atualidade do espaço tem isto de singular: ela é formada de momentos que foram, estando agora cristalizados como objetos geográficos atuais; essas formas-objetos, tempo passado, são igualmente tempo presente, enquanto formas que abrigam uma essência, dada pelo fracionamento da sociedade total. Por isso, o momento passado está morto como tempo, não porém como espaço; o momento passado já não é, nem voltará a ser, mas sua objetivação não equivale totalmente ao passado, uma vez que está sempre aqui e participa da vida atual como forma indispensável à realização social (Santos, 2007, p. 14).
Santos (2007) nos coloca a pensar a respeito dessa dualidade entre passado e presente, ou seja, objetos de um passado distante, mas que permanece no presente dialogando com as formas atuais. Assim, fomos explicando aos alunos a importância do passado para o entendimento de como os espaços são ocupados modernamente, estabelecendo assim vínculos entre a obra O Cortiço, previamente lida pelos alunos e discutido em sala de aula, com a realidade de hoje, percebida pelo campo - Lapa.
De posse desse campo, algumas problemáticas foram levantadas, tais como: o porquê da persistência de cortiços ainda nos dias de hoje. Qual a explicação para a Lapa ter um grande número desse tipo de moradia? Como explicar a desigualdade e a segregação socioespacial e em que contexto ela se manifesta?
Contudo, para que eles respondessem a tais questionamentos, precisaríamos estabelecer alguns pensamentos antes, e assim o fizemos. Dessa forma, pensar o urbano através da organização espacial das classes sociais nos reporta a inúmeros problemas de ordem social, econômica, política e ideológica. Dentre eles, destacam-se pobreza, miséria, violência, degradação ambiental e social, exclusão, desemprego, falta de moradia, favelização, periferização, segregação, insuficiência de transporte adequado, entre outros. Assim como nos conduz Negri (2008, p. 130):
É neste contexto, nos dias atuais, que o espaço urbano tem sido objeto de estudo dos mais variados campos do saber das ciências humanas e sociais. A complexidade da sociedade atual face à questão da habitação leva-nos a buscar entender a produção e a separação entre as classes sociais nas cidades, separação esta não só espacial, como também, social. Como por exemplo, através da renda, do tipo de ocupação e do nível educacional. Cada vez mais a cidade é lugar de atuação dos agentes de produção do espaço. Uma vez humanizados, esses espaços refletirão na sua arquitetura e na sua organização o padrão de desenvolvimento da complexidade das relações sociais. Este padrão ocorre por meio da segregação socioespacial, principalmente por meio da diferenciação econômica.
A seguir, para ilustrar aquilo que está sendo discutido, seguem figuras de cortiços. A Figura 1 retrata um cortiço ainda do século XIX, no Centro do Rio de Janeiro, no contexto do romance de Azevedo. As Figuras 2, 3 e 4 mostram cortiços atuais encontrados na Lapa.
Figura 1: Os cortiços do centro do Rio de Janeiro do século XIX
Fonte: Augusto Malta - Biblioteca Nacional (1906).
Figura 2: Cortiço na Rua do Lavradio, 122, Lapa/Centro do Rio de Janeiro/RJ
Fonte: Custódio Coimbra – Agência O Globo (2013).
Figura 3: Cortiço na Rua dos Inválidos, 122 – Lapa/Centro do Rio de Janeiro/RJ
Fonte: Custódio Coimbra – Agência O Globo (2013).
Figura 4: Cortiços da atualidade: Lapa/Centro do Rio de Janeiro/RJ
Fonte: Custódio Coimbra – Agência O Globo (2013).
Considerações finais
O trabalho de campo ou estudo do meio, como preferem alguns estudiosos, é sempre um momento de nos apropriarmos de um discurso mais amplo e aberto, oportunizando um conhecimento menos enquanto resposta pronta e acabada, e mais enquanto possibilidade de rompermos as quatro paredes da sala de sula.
Pereira e Souza (2007, p. 4) escrevem que o trabalho de campo desempenha na prática educativa quatro funções:
Ilustrativa, cujo objetivo é ilustrar os vários conceitos vistos nas salas de aula; motivadora, onde o objetivo é motivar o aluno a estudar determinado tema; treinadora, que visa a orientar a execução de uma habilidade técnica; e geradora de problemas, que visa orientar o aluno para resolver ou propor um problema.
Por isso, a atividade aqui descrita foi satisfatória, principalmente pela transposição interdisciplinar, envolvendo Geografia e Literatura, em que despertamos no aluno a curiosidade para os conceitos e categorias da Geografia estudados teoricamente e percebidos pelo campo na prática. Essa aproximação dos conceitos da Geografia, como a questão da segregação socioespacial com a realidade vivida dos alunos, que inclusive vivem em comunidade, onde a escola também está inserida, torna esse conceito caro a eles, pois muitos vivem diariamente essa situação de desigualdade. Essa percepção por parte dos alunos os leva a depreender da leitura da obra de Azevedo, para além dos aspectos da estética literária da qual o Naturalismo se insere, mas principalmente porque conseguem extrair dela os conceitos da Geografia, no entendimento das relações humanas expostas pelo romance, assim como pelo entendimento do espaço, que sofre continuamente influência do homem, sendo modificado e modificando o próprio homem nessa relação intrínseca inerente à condição geográfica e da qual buscaremos incessantemente compreender nas nossas aulas.
Por fim, ao retornarmos à escola, propusemos aos alunos a confecção de um relatório, em que consistia nas impressões de cada um deles acerca do campo, numa tentativa de aliar a obra O Cortiço, com a realidade atual, como pôde ser vista e percebida pelas ruas da Lapa, local do campo, assim como experienciada por cada um deles nas suas próprias vidas de moradores de comunidade ou simplesmente favela, como eles preferem chamá-la.
Referências
BRASIL. MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais: Geografia. Brasília: MEC/SEF, 1998.
CASTROGIOVANI, A. C. et al. Ensino de Geografia: práticas e textualizações no cotidiano. Porto Alegre: Mediação, 2000.
COIMBRA, Custódio. Os Cortiços do Rio. O Globo. Fonte: https://oglobo.globo.com/rio/os-corticos-do-rio-10704667. Atualizado em 8 de novembro de 2013. Acesso em: 6 abr. 2020.
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Vol. 3 - A era romântica. São Paulo: Global, 2002.
FARIAS, Paulo Sérgio Cunha. A interdisciplinaridade e as fronteiras do pensamento geográfico. In: FARIAS, Paulo Sérgio Cunha; OLIVEIRA, Marlene Macário de (Orgs.). A formação docente em Geografia: teorias e práticas. Campina Grande: EDUFCG, 2014.
MALTA, Augusto. Fotografias. Biblioteca Nacional. Disponível em: https://www.bn.gov.br. Acesso em: 8 abr. 2020.
NEGRI, Silvio Moisés. Segregação socioespacial: alguns conceitos e análises. Coletâneas do Nosso Tempo, ano VII, v. 8, n º 8, p. 129-153, 2008.
PEREIRA, R. M.; SOUZA, J. C. de. Uma reflexão acerca da importância do trabalho de campo e sua aplicabilidade no ensino de Geografia. Revista Mirante, Goiânia, 2ª ed., v. 01, nº 1, p. 1-15, set. 2007.
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5ª ed. São Paulo: EdUSP, 2007.
SANTOS, R. C. E.; CHIAPETTI, R. J. N. Geografia, Ensino & Pesquisa, v. 15, nº 3, p.168-169, set./dez. 2011.
ZILBERMAN, Regina. Das tábuas da lei à tela do computador – A leitura em seus discursos. São Paulo: Ática, 2009.
Publicado em 22 de setembro de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
FREITAS, Rafael Alves de; RODRIGUES, Phelipe Florez. O romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e os cortiços de hoje: reconhecendo as segregações socioespaciais na área da Lapa /RJ, por meio do trabalho de campo em Geografia. Revista Educação Pública, v. 20, nº 36, 22 de setembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/36/o-romance-io-corticoi-de-aluisio-azevedo-e-os-corticos-de-hoje-reconhecendo-as-segregacoes-socioespaciais-na-area-da-lapa-rj-por-meio-do-trabalho-de-campo-em-geografia
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