Uma pesquisa bibliográfica sobre figuras de linguagem no Sermão da Sexagésima, do padre Antônio Vieira

Adelena Leitão Silva Carlôto

Licenciada em Letras (UFC)

O Brasil, desde o princípio, se deteve à religião; a expressão de fé de seu povo não começou quando os portugueses o colonizaram, mas antes mesmo de se ter consciência de nação, quando os índios ainda eram os únicos nesta terra sem nome. Eram povos distintos dentro de um território comum, com diversidade de pensamento e cultural muito forte. Após a descoberta, os portugueses perceberam que a melhor forma de colonizar os povos indígenas era por meio do ensinamento da língua e da religião católica, assim criando e instituindo uma conexão por meio da língua, da espiritualidade, da moral e da ética.

Esta pesquisa tem por objetivo geral analisar uma das obras mais reconhecidas pelo povo brasileiro e até mesmo português: o Sermão da Sexagésima, escrito pelo padre Antônio Vieira e pregado em 1655 na Capela Real, em Lisboa. Esta análise parte do princípio de que Vieira utilizou diversas figuras de linguagem na construção de seu sermão, o que o enriqueceu no sentido estético; porém, por vezes, no decorrer da sua leitura, é preciso atenção para perceber os recursos literários, que se fazem muitas vezes parte fundamental do entendimento do sermão que é baseado na Parábola do Semeador (uma das parábolas de Jesus registradas); é encontrada em três evangelhos: Mateus, 13:1-9, Marcos, 4:1-20, e Lucas, 8:4-15.

Essa forma criativa, que emprega diversas figuras de linguagem, foi investigada para trazer a reflexão sobre os seus aparentes excessos, que confrontavam seus ouvintes de forma suave, por utilizar diversos recursos linguísticos, geralmente usados na poesia, mas que trouxeram leveza à prosa de Vieira. Ao mesmo tempo, por possuir oratória reconhecida por todos, fez-se eficaz e contundente em seus sermões.

Esta análise buscará interpretar parte dessas figuras de linguagem e verificará as mais recorrentes para tentar identificar e compreender o intuito do autor na utilização desses recursos. Por isso foi feita uma pesquisa bibliográfica.

A escolha de Vieira é pelo fato de ele ser conhecido como o principal autor da prosa barroca brasileira; sua relação com a religião e com a literatura é expressa de maneira surpreendente e talentosa, tal qual Santo Agostinho, no livro Confissões. Essa curta obra, que é o Sermão da Sexagésima, é original e muito rica, a ponto de apenas um artigo não ser suficiente para fazer uma análise completa. Mas se buscarão, paulatina e progressivamente, por meio de uma leitura crítica da obra, os pontos do sermão que mais utilizaram a subjetividade para que a sua pregação fosse ao mesmo tempo original e persuasiva.

Vida de Padre Antônio Vieira

Padre Antônio Vieira nasceu em 1608 em Lisboa e se mudou com os seus pais para a Bahia quando ainda era criança. Ali entrou logo adolescente na Companhia de Jesus, movimento católico que tinha como objetivo maior a catequização dos índios e que lutava contra a escravidão deles; nessa companhia foi ordenado sacerdote em 1626. Com apenas dezoito anos, foi encarregado de redigir em latim a Carta ânua ao geral dos jesuítas, endereçada a Roma, e no mesmo ano se mudou para Olinda para ser professor de Retórica no colégio dos jesuítas.

Após o término da União Ibérica (unidade política que regeu a Península Ibérica de 1580 a 1640, resultado da união dinástica entre as monarquias de Portugal e da Espanha após a Guerra da Sucessão Portuguesa), quando Portugal passou a ter autonomia política e econômica em relação à Espanha, Vieira foi para Lisboa na comitiva do filho do vice-rei do Brasil para jurar fidelidade ao novo rei de Portugal, D. João IV. O título de vice-rei só era, inicialmente, atribuído aos governadores-gerais pertencentes à mais alta fidalguia. Nessa época o vice-rei da colônia era o Conde de Óbidos. O padre se tornou referência de diplomacia na Europa, pois percorreu boa parte da Europa tentando promover os interesse portugueses; chegou a negociar até mesmo com inimigos da fé católica, como os protestantes holandeses. Tudo isso lhe atribuiu admirações e inimizades, fazendo com que em 1649 fosse denunciado junto ao Santo Ofício, que era o órgão responsável pela Inquisição – um grupo de instituições pertencentes ao ordenamento jurídico canônico, cujo objetivo é combater a heresia, ou seja, ideias contrárias ao credo católico. Uma das acusações contra Vieira era de ele defender os novos-cristãos, que eram judeus que haviam sido forçados a professar a fé católica. Vieira dizia que os novos cristãos retornavam às práticas religiosas antigas porque não tinham embasamento doutrinário suficiente, ou seja, que os bispos estavam falhando na doutrinação dos fiéis.

Após esse período na Europa, ele retornou ao Brasil. E em 1652, quando pregava no Maranhão contra a escravidão indígena, foi expulso pelos colonos que se aborreceram com sua pregação; para alguns críticos, tais pregações eram contraditórias, pois enquanto ele pregava a liberdade do índio apoiava a escravidão do negro. Como cita Amarilio Ferreira Jr. em seu artigo A Pedagogia da Escravidão nos sermões de Padre Antônio Vieira, “a escravidão negra, para ele, estava em consonância com os próprios interesses econômicos professados pela Companhia de Jesus ao longo dos 210 anos (1549-1759) em que perdurou a sua hegemonia educacional no Brasil”. Essa ideologia pode ser interpretada pelo fato de que a Igreja Católica possuía muitas terras e muitos escravos negros; então ele não poderia bater de frente com tal fato em suas pregações.

Após longos entraves com a Igreja Católica, Vieira obteve em 1675 a decisão do papa que o absolveu das penas passadas, e assim o livrou da Inquisição Portuguesa.

Em 18 de julho de 1697, o padre morreu após longos embates no Brasil contra a escravidão do índio e a favor da escravidão do negro, a ponto de ter apoiado a destruição do Quilombo de Palmares no final do século XVII.

Literatura colonial ou literatura barroca?

Para alguns historiadores e literatos, a discussão sobre a nomenclatura da literatura produzida em solo brasileiro entre 1500 e 1808 ainda tem sido um problema. Isso ocorre porque muitos entendem a literatura como fenômeno da vida social e política; por isso parte-se da ideia de que se o Brasil, do ponto de vista político, era colônia de Portugal nessa época, então sua literatura seria colonial.

Essa ideia é equivocada, pois não se pode classificar o que é literatura com um termo e uma visão política. Afinal de contas, a classificação de colônia e metrópole não agrega valor à obra literária em si. Não podemos medir como subalterna, por exemplo, a literatura produzida no Brasil na época em que era colônia. Não podemos também considerar a literatura feita em Portugal como mais prestigiada devido a seu status de metrópole.

Tais classificações também não podem permanecer, pelo fato de que falamos de algo construído em sociedades, estilos e problemas diferentes. Os modelos de vida apresentados em ambas as formas de escrever são diferentes. Sobre isso, Coutinho (2014, p. 20) afirma:

mais do que a língua, simples instrumento, o que importa à definição, à caracterização de uma literatura é a experiência humana que ela transmite, é o sentimento, é a visão da realidade, tudo aquilo de que a literatura não é mais do que a transfiguração, mercê de artifícios artísticos. E quando essa realidade, essa experiência, esse sentimento são novos, a literatura que os exprime tem que ser nova, outra, diferente.

Para Coutinho, a partir do momento em que houve a descoberta do Brasil pelos portugueses, o cenário mudou, a vida mudou, tudo se fez novo para nascer consequentemente uma nova literatura. Para ele, o Descobrimento fez nascer um novo homem em um novo espaço, em uma nova cultura, com novos objetivos; enfim, com uma nova jornada.

E essa nova literatura que nascia é a que chamamos de brasileira. Como Coutinho (2014, p. 22) afirma, “a literatura brasileira é brasileira porque exprime a experiência brasileira, porque testemunha o homem brasileiro de todos os tempos, homem que é o mesmo, falando da mesma forma e sentindo igualmente, tanto quando era colono como quando se tornou livre”.

A época de que estamos tratando é a de Vieira, nosso escritor que, mesmo nascido em Portugal, chamamos de nosso, pois estava inserido na cultura, na sociedade e no solo brasileiros. Não chamaremos sua literatura de colonial, mas sim de barroco brasileiro, assim como tantos outros que escreveram nesse estilo pós-renascentista, como Gregório de Matos, Botelho de Oliveira, Frei Itaparica. Nessa época também houve grande despertar em outras artes, como a arquitetura e a escultura, com Aleijadinho e Manuel da Costa Ataíde. Também tivemos grandes nomes na música, com composições de Lobo de Mesquita, Marcos Coelho e outros.

Características gerais da obra de Vieira

A literatura brasileira foi marcada por um fato histórico que influenciou não só o Brasil, mas também o mundo: a Reforma Protestante, que deu seus primeiros passos com um monge agostiniano, Martinho Lutero. Ele contestava diversos pontos do catolicismo, o que o levou a publicar as 95 teses em 1517, trazendo grande divisão no que era até então a Igreja Católica Apostólica Romana.

O barroco se insere exatamente nesse período conturbado por novas ideologias; além do mais, houve outras ameaças ao pensamento teocêntrico (que afirma estar Deus no centro de tudo; que enxerga Deus como o centro de tudo, como o ponto para onde tudo se converge) – como o Renascimento, corrente de pensamento que surgiu no século XIV e se estendeu até o século XVII, tendo seu ápice no século XVI. Tal corrente trouxe mudanças no estilo de pensar humano, pois o que antes tinha como resposta Deus agora estava sendo substituído pelo pensamento humanista, que sofria influência do pensamento greco-romano, ou seja, a ideia de que o divino estava mais próximo do humano.

Padre Antônio Vieira, por sua pregação, se levantou para contra-atacar. É isso que afirma Bosi (2017, p. 29) em seu comentário sobre o barroco:

É na estufa da nobreza e do clero espanhol, português e romano que se incuba a maneira barroco-jesuítica: trata-se de um mundo já em defensiva, organicamente preso à Contrarreforma e ao império filipino e em luta com as áreas liberais do protestantismo e do racionalismo crescente na Inglaterra, na Holanda e na França.

A prosa de Vieira é a mais importante do barroco brasileiro; sua religiosidade, sua teologia e sua retórica construíram um marco histórico na literatura de língua portuguesa. Segundo Bosi (2017, p. 44),

a religiosidade, a sólida cultura humanística e a perícia verbal serviam, nesse militante incansável, a projetos grandiosos, quase sempre quiméricos, mas todos nascidos da utopia contrarreformista de uma igreja triunfante na Terra, sonho medieval que um império português e missionário tornaria afinal realidade

A obra de Vieira é marcada não apenas com teologia e críticas; é também imersa a um mundo metafórico, cheio de figuras de linguagem, que se tornam praticamente inseparáveis das ideias centrais de seus sermões. Conforme Gontijo e Massimi (2007), no artigo A persuasão e o dinamismo psíquico em sermões de Antônio Vieira, afirmam:

A metáfora penetra e investiga as noções mais abstrusas para acoplá-las de modo genial, tendo como resultado uma dilatação do campo semântico ordinário. Os vocábulos metafóricos carregam-se por uma multidão de imagens e noções, proporcionando ao olhar interior um espetáculo surpreendente.

Figuras de linguagem como instrumento persuasivo

Metáfora

As figuras de linguagem são diversas e no Sermão da Sexagésima são um desafio para a o leitor, pois são recorrentes e quase espontâneas por parte de Vieira, mas sabemos que tanto esse como outros sermões são legítimas obras pensadas, estudadas e pregadas, o que acrescenta ainda mais à figura do Padre Antônio Vieira, pois se toda a complexidade de seu pensamento não era uma mera espontaneidade, então temos um grande estudioso tanto da Literatura como da Teologia.

O sermão começa com uma epígrafe intrigante, que diz muito sobre o conteúdo do texto, porém é citada em latim: “Semen est verbum Dei”,que significa “A semente é a palavra de Deus”. O autor começa com uma metáfora que introduz o texto que será abordado, A parábola do semeador. O autor muda o foco do título da parábola, que é o semeador, e coloca o foco na semente, ou seja, no que é semeado; além disso, ele já dá significado à semente, chamando-a de palavra de Deus.

Celso Cunha chama as figuras de linguagem de figuras de estilo, porque elas fazem parte da Estilística, podendo ser classificadas em figuras de palavras, de sintaxe e de pensamento. Nesse caso temos uma figura de palavra, pois a metáfora, segundo Cunha, é a alteração de sentido de uma palavra ou expressão. No caso apresentado, o sentido que foi alterado foi o da palavra semente, pois o autor tanto utilizou o verbo ser para dar a nova definição de semente como também se apoiou na sua interpretação do texto bíblico, no qual o próprio Jesus, quando explicava a sua parábola, se referiu à semente como “a palavra do reino” (Mateus 13,19). Além disso, o autor do sermão uniu ao núcleo do predicativo (semente) um artigo definido, o que traz um pouco mais de complexidade ao trecho, pois como seria o emprego de uma oração na forma direta cujo predicado é nominal? Um exemplo que Cunha traz é “Os caboclos estavam desconfiados”. Como está na ordem direta, o exemplo dá um esquema sintático de que é:

artigo + substantivo (sujeito)

verbo de ligação

adjetivo (predicativo do sujeito)

Na epígrafe de Vieira, encontramos um desafio, já que sua construção dá margem para entendermos o sintagma “semente” tanto como núcleo do sujeito como do predicativo. O texto vem na seguinte ordem: A semente é a palavra de Deus.

artigo + substantivo (sujeito)

verbo de ligação

expressão substantiva

  Da forma como Vieira usou o substantivo e o predicativo, como expressão substantivada, podemos entender como sujeito tanto “a semente” como “a palavra de Deus”. Esse fenômeno também se dá devido à metáfora que define dois termos simultaneamente devido ao verbo de ligação, que nesse tipo de oração geralmente é usado como no primeiro esquema.

Metonímia

Vieira começa a explicar o trecho da parábola que diz “O semeador saiu a semear” (Mateus 13, 3), explorando o texto da seguinte forma:

Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até sair é semear, porque também das passadas colhem fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão (Vieira, 2012).

Podemos perceber que nesse pequeno parágrafo há diversas figuras de linguagem; talvez isso se dê pelo fato de tal pregação partir de uma parábola, cuja essência é dar uma lição a partir de uma prosa metafórica, ou seja, simbólica. Mas atentemos agora para o último período do parágrafo “são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão”. Temos aí uma metonímia, que, segundo Bechara, é a translação de significado pela proximidade de ideias. Nesse caso, percebemos que houve a troca das nacionalidades que ouviriam a mensagem pelo nome de nações: Índia, China, Japão.

Prosopopeia

Ainda falando da ida do semeador, Vieira faz a seguinte pergunta:

E se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos, que havia de fazer?

Nesse caso, o sermão se enriquece de outra forma, pois por meio da prosopopeia Vieira dá vida aos espinhos e às pedras. Essa figura de linguagem pertence às figuras de pensamento, que ocorrem quando atribuímos características humanas a seres inanimados ou irracionais. Nesse caso, diferentemente da parábola do semeador, na qual Jesus atribui o problema da conversão do indivíduo não na pedra, mas no sol, Vieira faz uma interpretação que vai um pouco além da proposta inicial. Leiamos o trecho da parábola: “Outra parte caiu em solo pedregoso, onde não havia muita terra, e logo brotou, pois a terra não era profunda; mas saiu o sol e a queimou; e, como não tinha raiz, secou” (Mateus 13, 6).

Para Jesus, a questão não eram as pedras, mas a falta de raiz, como ele mesmo explica nos versículos 20 e 21 do mesmo capítulo: “E o que foi semeado no solo pedregoso, esse é o que ouve a palavra e a recebe imediatamente com alegria; mas não tem raiz em si mesmo e dura pouco. Quando vem a tribulação ou a perseguição por causa da palavra, logo tropeça”.

A prosopopeia feita pelo padre, que mostra as pedras como ameaça ao pregador, é uma interpretação válida; Marcuschi (2008, p. 87), falando de textualidade e interpretação de texto, afirma:

Assim chegamos às relações ditas contextuais. Essas relações se estabelecem entre o texto e sua situacionalidade ou inserção cultural, social, histórica e cognitiva (o que envolve os conhecimentos individuais e coletivos). Não se pode produzir nem entender um texto considerando apenas a linguagem. O nicho significativo do texto (e da própria língua) é a cultura, a história e a sociedade. Essa inserção pode dar-se de diversas formas e por isso um texto pode ter várias interpretações, embora não inúmeras nem infinitas. Mas mesmo essas várias interpretações devem ser coerentes entre si e com isso não podem ser incompatíveis.

Para Vieira, as pedras eram um problema direto; para Jesus, as pedras eram um problema indireto, já que a semente que não se tornou uma planta com raízes profundas estava em solo pedregoso.

O outro ponto são os espinhos que Jesus e Antônio Vieira citam. Jesus disse: “Outra parte caiu entre os espinhos, os quais a sufocaram quando cresceram” (Mateus 13, 6). De fato, nesse trecho Jesus e Vieira focam no mesmo elemento: os espinhos. A prosopopeia nasce dessa figura estética. Como diz Fiorin (2007, p. 123), ela é “a combinação de qualificações ou funções que possuem determinado traço semântico com um elemento que apresente um traço contrário ou contraditório, é um mecanismo retórico que produz diferentes unidades”.

Perífrase

Perífrase, segundo Cunha, consiste na substituição de uma designação simples por uma noção por meio de uma sequência de palavras; por exemplo, quando falamos do “poeta dos escravos”, já sabemos de quem falamos: Castro Alves. No caso do sermão de Vieira (2012, p. 23), existem algumas perífrases; uma que ainda hoje é muito utilizada é a do trecho: “os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e o tropel das coisas do mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam”.

Nesse período, Vieira explica que há aqueles que escutam a palavra de Deus, mas que a desprezam; o trecho não usa o vocábulo Bíblia, mas o troca pela expressão “palavra de Deus”, o que se repete muitas vezes no sermão. Podemos fazer uma análise simples dessa escolha pelo padre. Usar o termo “palavra de Deus” no lugar de Bíblia torna seu discurso mais marcado, como de fato o é, religioso, e aproxima o ouvinte da ideia de que a Bíblia não seria um livro qualquer, mas a palavra do próprio Deus. Então, se o ouvinte foi à missa para ouvir a palavra do padre, ele agora vai entender que está ouvindo uma palavra superior, que é a de Deus.

Comparação

No Capítulo II do sermão, o padre se questiona por que não havia uma grande colheita, ou seja, muitas conversões. Para ele, existia algum problema. Ele chega a se perguntar: “Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus?” (Vieira, 2012, p. 23). Aparentemente, ele se questiona sobre o poder a palavra de Deus, mas é uma pergunta que ele mesmo responde, dizendo em seguida: “assim como Deus não é hoje menos onipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era” (Vieira, 2012, p. 24).

A comparação é feita de forma simples; como Cunha diz, ela consiste em estabelecer um confronto entre dois termos da oração, numa busca de ressaltar as semelhanças que existem entre eles. Geralmente a oração usa o conectivo “como”, mas outros conectivos como o empregado no trecho (assim como) também trazem essa ideia de comparação. Essa figura de linguagem também pode ser chamada de símile, que significa semelhante. No trecho percebemos que o padre torna semelhante, por meio da comparação, a palavra de Deus e o próprio Deus.

Essa semelhança também se encontra no Evangelho de João, no Capítulo 1, quando o apóstolo descreve Jesus: “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus e era Deus” (João 1, 1).

Vieira faz a aproximação de Deus com sua palavra assim como João, porém, não é possível saber se Vieira estava de fato pensando nesse texto do apóstolo João. Cunha e Cintra (2001, p. 353), descrevendo a ideia de Bakhtin sobre o que é o discurso, afirmam:

o sujeito é ao mesmo tempo social e singular. Ele é social pelo fato de perceber a realidade e falar sobre ela premido pelas experiências compartilhadas no seio dos grupos sociais; também é social porque, imerso no colóquio universal, fala com palavras de outrem; contudo, o sujeito é singular, porque ocupa um lugar na vida social que somente ele (e ninguém mais) ocupa.

Essa semelhança entre os dois textos ocorre devido ao fato de a história se construir em cima de discursos e de gêneros. Não há grande diferença nos textos, pois são construídos dentro da mesma história e sociedade, que chamaria de humanidade. Então, por mais que alguém tenha uma ideia ou algo inovador para trazer a público, com certeza, esse algo inovador não será tão inovador assim.

O podemos afirmar, em relação ao discurso de Vieira, é que o uso daquela figura de linguagem traz autoridade e respaldo para o que ele pregava. Afinal de contas, falar que Deus e sua palavra são igualmente poderosos é não deixar dúvidas quanto ao poder da pregação, que era o objeto de análise do pregador, pois tal poder, para ele, não estava no pregador, mas na palavra de Deus, como lemos no trecho a seguir: “Porque a palavra de Deus é tão funda que nos bons faz muito fruto; e é tão eficaz que nos maus, ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras” (Vieira, 2012, p. 27).

Antítese

A antítese é uma figura de pensamento; consiste em transmitir ideias opostas. Tal figura foi muito utilizada no barroco brasileiro. Antônio Francisco Lisboa, mais conhecido como Aleijadinho, grande escultor brasileiro, utilizou em suas obras essa mesma noção de oposição que a antítese traz. Para ele, a vida era apresentada no mundo espiritual por meio do céu e do inferno, da tristeza e da alegria. Por isso sua obra repercute no mundo todo até hoje.

Vieira também faz isso muito bem por meio da literatura; no Capítulo IV do sermão, o pregador começa justificando o seu posicionamento do final do Capítulo III: para ele os pregadores eram culpados de a mensagem do Evangelho não ser totalmente frutífera na vida dos que a escutavam. Ele justifica: “Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá essa culpa?” (Vieira, 2012, p. 29).

Nesse caso, o contraste de ideia se dá pelo fato de um pregador não ser apenas um homem comum, mas ser cheio de muitas qualidades, e pelo fato de a pregação não ser apenas um texto robusto, mas por ter muitas leis no seu fundamento. Contudo, esses fatos não interferiram para um resultado positivo; pelo contrário, eles deram um resultado negativo, que foi a falta de frutos e, além disso, a culpa.

Pleonasmo

É uma figura de sintaxe muito usada para dar ênfase a algo, mas que, se mal usada, pode tornar o texto cansativo ou problemático, pois o ouvinte ou leitor pode fazer um prejulgamento do texto, pensando que o emissor não tem propriedade no uso da língua. Para Cunha e CIntra, é a surperabundância de palavras para enunciar uma ideia. Para Bechara, é a repetição de um termo já expresso ou de uma ideia já construída.

É importante que, ao olharmos a obra de Vieira, levemos em consideração que ele, por ser um pregador culto e experiente, não usaria sem propósito o pleonasmo, mas sim com intenções implícitas ou até mesmo explícitas para com os seus ouvintes.

No Capítulo IV, ele explica como o pregador pode ser o motivo do fracasso da pregação; para Vieira, era preciso que se considerassem cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo e a voz. Dessa forma, ele começa pontuando o que e como analisar “a pessoa que é, a ciência que tem, a matéria de que trata, o estilo que segue, a voz com que fala” (Vieira, 2012, p. 29).

Se considerarmos a interpretação de cada uma das orações, chegaremos facilmente a vários pleonasmos. Pois se é pessoa, tem algum tipo de ciência, não é possível um ser humano que não conheça nada. Todos nós, como seres racionais, conhecemos muitas coisas ou mesmo poucas coisas, como é o caso de um bebê, que, mesmo com poucos dias de vida, já conhece o aconchego de sua mãe e de seu pai.

A outra oração é “a matéria que trata”; essa é uma representação de algo que estava acontecendo, pois uma matéria não é algo que devemos apenas ver, principalmente para um pregador, porque é ele quem falará ao povo, e se vai falar deve ser sobre algo, ou seja, uma matéria, algo que acontece. Esse sutil pleonasmo vem mostrar que a palavra matéria é algo tratado pelo pregador apenas pelo fato de ser matéria, de ser conteúdo.

A oração “o estilo que segue” usa a mesma ideia da anterior, pois, se há um estilo, obviamente ele já é seguido, já é usado, já é vivido. Por último, a frase “a voz com que fala”, é a mais clara de todos os pleonasmos. Pois todas as vozes são transmitidas por meio da fala.

Hipérbole

Essa figura, assim como a antítese, o eufemismo, a ironia, a prosopopeia e a onomatopeia, é de pensamento. Ela é usada a fim de trazer a ideia de exagero para uma frase. No Capítulo IV, o padre continua o sermão explicando o fato de muitas pregações não surtirem efeito como nos tempos passados. E nessa parte do sermão ele afirma: “Antigamente convertia-se o mundo, hoje por que não se converte ninguém?” (Vieira, 2012, p. 30).

Vieira usa a hipérbole como forma de chamar a atenção dos que o ouviam. É bem possível que muitos que o ouviam também fossem pregadores, e nesse momento ele tenta intensificar a sua indignação por meio dessa figura de linguagem. O exagero é tanto em relação ao passado como em relação ao presente, pois, ao afirmar que “antigamente convertia-se o mundo”, ele, como pregador, sabe que essa afirmação não está completamente correta. Nunca todas as pessoas do mundo foram totalmente convertidas ao catolicismo. Ele também faz o exagero do tempo presente dos que ouviam quando pergunta “hoje por que não se converte ninguém?”. Essa afirmação é tão exagerada que ele excluiu a si mesmo para tal ideia ser verdade. Ele era padre católico de uma companhia católica, e é claro que, no meio de tantos homens e mulheres da companhia, havia os que eram realmente convertidos. Mas por que Vieira quis usar esses exageros? Justamente para que a sua palavra fosse mais pesada aos ouvintes. Talvez ele sentisse necessidade de mostrar que alguma coisa estava muito errada na pregação daqueles pregadores. Posteriormente ele fez diversas críticas ao muito falar dos pregadores e ao pouco fazer, dizendo que a pregação deveria ser feita de palavras e de obras, e não apenas de palavras.

“A razão disso é que as palavras ouvem-se, as obras veem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos” (Vieira, 2012, p. 31).

Conclusão

O tema abordado, figuras de linguagem no Sermão da Sexagésima, de Padre Antônio Vieira, não é em si um tema inovador, porém é de suma importância para a academia, pois ele une duas vertentes de estudo: a Linguística e a Literatura Brasileira, o que é de muito valor para o tipo de estudo e de ensino que vem se desenvolvendo não só nas faculdades e universidades do país, mas também nas escolas de Ensino Fundamental e Médio.

O grande desafio de unir duas matérias que muitas vezes são estudadas isoladamente trouxe curiosidade à pesquisa, tornando a análise textual mais rica, eficiente e eficaz. Percebemos, por meio de uma análise simples, que a estética do Sermão da Sexagésima é totalmente provocativa, pois usa diversas figuras de linguagens, que por vezes são explicadas pelo próprio pregador. Antônio Vieira fez muito bem o papel não só de pregador, mas também de construtor de um barroco com identidade brasileira, uma prosa fluida, mas cheia de riqueza textual.

Ele não só escreveu um sermão como também fez literatura. Sua arte e sua forma de expressar o que Jesus já havia deixado por meio da Parábola do Semeador trouxeram para aquele período histórico brilhantismo com as palavras. As diversas figuras de linguagem apresentadas no artigo são apenas um pequeno apanhado, pois foram analisados apenas quatro de dez capítulos do sermão.

Existem nesse sermão outras dezenas de figuras de linguagem: de palavras, de sintaxe e de pensamento. Toda essa pesquisa pode ser ampliada para trabalhar com esses diversos elementos que encontramos no sermão.

De fato, podemos concluir que Vieira não utiliza tais figuras por acaso, mas de forma pensada; ele cria seus argumentos apresentando suas teses, antíteses, fatos, verdades, valores e princípios. Percebemos que não só o índio era alvo de sua pregação, mas também os próprios padres e os que já haviam se convertido. Isso dá uma dimensão maior de que sua retórica fazia com que se debruçasse na palavra de Deus do mais leigo até o maior conhecedor da Bíblia.

Referências

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VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. Seleção, introdução e notas Homero Vizeu Araújo. Porto Alegre: L&PM, 2012.

Publicado em 22 de setembro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

CARLÔTO, Adelena Leitão Silva. Uma pesquisa bibliográfica sobre figuras de linguagem no Sermão da Sexagésima, do padre Antônio Vieira. Revista Educação Pública, v. 20, nº 36, 22 de setembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/36/uma-pesquisa-bibliografica-sobre-figuras-de-linguagem-no-isermao-da-sexagesimai-do-padre-antonio-vieira

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