Educação que alimenta o corpo e a mente
Claudio Marcio dos Santos
Licenciado em Pedagogia (Fabel)
Escrevi um artigo na época da faculdade – Indisciplina – Uma Forma de Aprendizagem –, e um professor me fez a seguinte proposição: “Gostei muito de seu artigo, mas gostaria de saber: Daria certo na prática?” É algo que tenho perseguido desde o dia em que passei a lecionar na instituição pública (fevereiro de 2014): tornar minha metodologia de ensino prática, a ponto de permitir ao educando “indisciplinar-se” no processo de aprendizagem. Ao iniciar o Curso Especialização EPDS (Educação, Pobreza e Desigualdade Social), constatei algo que me impressionou e fez olhar o educando de forma diferente da qual estava acostumado: um ser humano que precisa da educação para alimentar a mente e o corpo. Ou seja, procurou-se nesse breve trabalho focar (metodologia da observação participante) em torno da realidade vivenciada em sala de aula, nas reuniões com pais/responsáveis de alunos e alunas e o material bibliográfico disponibilizado no curso e demais literaturas educacionais, tendo o objetivo de compreender os benefícios e deficiências da alimentação e realidade socioeconômica no processo de construção de saberes e a relação de aprendizagem.
Quando criança e durante parte de minha adolescência (até 14 anos), não tinha noção da diferença entre ser preto (cor) e negro (raça = característica biológica/etnia = aspecto cultural). Era forte, entretanto, a importância que minha mãe dava ao aspecto cor, educação e sua relação na sociedade. Ela dizia: “Você é preto e pobre, estude para ser alguém na vida!” Referência ao racismo existente no Brasil, que, particularmente, não havia eu sofrido em minhas relações sociais.
Outro fator que me impactou foi quando um primo, de pele clara, mas características negras herdadas de seu pai, meu tio-avô, me disse: “Você é um negro de feições finas (brancas)!” Minha mãe e meu primo estavam falando de minha identidade negra, desconhecida a mim, jamais apresentada na escola de forma positiva, pois o que aprendi foi que o negro era escravo e ponto.
A mesma modernidade que possibilitou ao mundo sair das trevas e chegar à luz (deixando de lado o conhecimento religioso e se apropriando do conhecimento científico) encerrou no cárcere da escravidão intelectual, social, econômica, política, religiosa e racial os seres humanos de condição econômica considerada classe baixa. Ou seja, na construção dessa proposta, existem dois termos que nos permitem refletir sobre a educação do currículo utilizado no Ensino Fundamental e Médio: são eles Paideia e Duleia, enquanto o primeiro termo se referia ao homem livre, o segundo focava o ensinamento ao escravo em seu próprio local de trabalho. “A instituição escolar se desenvolverá na Grécia como Paideia, enquanto educação dos homens livres, em oposição à Duleia, que implicava a educação dos escravos, fora da escola, no próprio processo de trabalho” (Saviani, 2008).
“É uma escola dividida em duas (e não mais do que duas) grandes redes, as quais correspondem à divisão da sociedade capitalista em duas classes fundamentais: a burguesia e o proletariado”. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/ pluginfile.php/1992603/ mod_resource/content/ 1/texto%20de%20 Dermeval%20Saviani.pdf. Acesso em: 30 jun. 2018, p. 27.
Temos um sistema educacional dualista que objetiva preparar um determinado grupo de classe social para exercer comando (uma cidadania plena, de autoridade e poder), enquanto o outro grupo (classe social baixa) é educado para operacionalizar o sistema, ser submisso e mantenedor da máquina que sustenta os benefícios daqueles que exercem o poder?
Grosso modo, alunos das instituições públicas, em sua maioria, vão à escola para comer, passar o tempo, receber um certificado e/ou diploma de conclusão e pouco aprender para mudar sua realidade socioeconômica, sendo os repositores das próximas gerações de submissos sociais?
Não podemos ser levianos para fazer afirmações, diante dos questionamentos supracitados, porém compreender a importância da alimentação, ou falta dela, na construção de um povo subserviente ou que tem autoridade, não ignorando que,
se uma sociedade não garante que todas as pessoas tenham as mesmas oportunidades (e condições – grifo meu) de acesso ao bem-estar, à cultura e à educação em sentido amplo, tal sociedade apresenta déficits enormes de democratização de sua estrutura social e política. Isso contamina, de forma nociva, o convívio cívico do corpo social, pois o hábito de conviver com a injustiça, o desrespeito e a desigualdade torna todos(as) os(as) habitantes de uma nação embrutecidos(as) e insensíveis à dor do outro.
A democracia deve proporcionar alimento para o corpo e para a mente, sendo a educação o instrumento social para ensinar ao ser humano a importância de uma distribuição justa e igualitária, (sem o viés da demagogia), dos recursos que possibilitem o combate aos déficits socioeconômicos e uma maior sensibilidade dos indivíduos em relação aos seus coiguais.
Fome e deseducação
Ao entrarmos em sala de aula, não nos preocupamos em perguntar: vocês já tomaram café da manhã/almoçaram? Isto é algo que não aprendemos na faculdade, tão pouco no ensino normal. Ou seja, parte-se do pressuposto que, se o educando está em sala de aula, tem condições para assistir à aula: físicas e mentais. As instituições de ensino público dão o alimento, mas não tornam claro sua relação direta com o processo de aprendizagem. Arroyo (2018, p. 32) é direto quanto a isto:
As vivências da pobreza se manifestam nos corpos precarizados de crianças e adolescentes, que chegam às escolas já condenados precocemente a vidas fragilizadas pela desnutrição e pela fome. Desses corpos vêm apelos para que sejam revistos amplamente currículos, conhecimentos, didáticas e tempos-espaços escolares.
Vê-se o educando em sala de aula, “pronto” para receber o ensinamento, mas não se observa seu corpo precarizado, sua sentença social de sua vida frágil e desnutrida, sua incapacidade para aprender, pois a fome deseduca, não permitindo ao aprendiz entender o que se ensina, pois o estômago grita mais alto que a voz do educador, sua realidade socioeconômica fomenta a fome e não a educação; e a fome, como já dito, deseduca. Como assim? Josué de Castro responde:
Como afirmou Câmara Cascudo (1958), a fome nunca foi tema para as salas de visitas, não leva ninguém a simpatizar ideal e romanticamente com o assunto. “A palavra fome é humilhante, inferior, indigna de todos os códigos de boa educação. Dizer que se tem fome, quando o almoço se eterniza, é um primor de deseducação” (Cascudo, 1958, p. 296).
Necessidades primárias (básicas) são as fisiológicas e as de segurança. Disponível em: http://www. sobreadministracao.com/ a-piramide-hierarquia-de- necessidades-de-maslow/. Acesso em: 30 jun. 2018.
Disponível em: http://unesdoc. unesco.org/images/ 0008/000862/ 086291por.pdf. Acesso em: 30 jun. 2018.
Como ensinar a quem tem fome a se emancipar, uma vez que está acorrentado e dependente de quem o alimenta? E, geralmente, quem alimenta determina o que se vai comer, ou seja, a educação Paideia encontra um cidadão alimentado e pronto para construir saberes, já a educação Duleia, um ser necessitado do básico (necessidades primárias), que tem a oportunidade em aprender (Educação para Todos), mas não tem as mesmas condições para a aprendizagem.
Educação: alimento para a mente
Integralidade e completude, palavras que deveriam fazer parte da escolarização. Ou seja, a educação precisa alcançar o seu objeto de existência: o educando, de maneira inteira e completa, não apenas de forma proporcional, pois educar é oferecer o necessário para que o ser humano desenvolva plenamente sua personalidade. E como isto será possível, se o discente não entende o porquê e para que estuda? Se não consegue aplicar o que aprende em sua realidade social?
Como a comida alimenta o corpo e satisfaz a necessidade orgânica, fortalecendo o indivíduo para viver, a educação deve alimentar a mente para possibilitar um desenvolvimento pessoal e social do sujeito, cidadão de direitos. A escola de cem anos atrás não é a mesma de nossos dias, a sociedade mudou, e o aluno de hoje interage de forma diferente do aluno de cem anos atrás. Em outras palavras, o que o aluno espera da escola e o que a escola espera do aluno? Como bem expõem Santos e Silva (2016, p. 36),
a Escola somente poderá transformar a realidade onde está inserida quando identificar-se, entender o seu papel, enquanto organismo e não mais somente como instituição. Uma mudança que, partindo do autoconhecimento funcional, permitirá que seus atores: professores, alunos, pais, funcionários, direção e comunidade, revejam seus papéis. Como um todo integral, que não pode ficar de um lado, enquanto existem outros de outro lado, sua existência, eficiência, eficácia e efetividade transformadora, não estão mais pautadas, em sua competência em propor um currículo que acrescente algo ao não-saber de seus alunos, mas sim, num currículo que seja capaz de entender a si mesma, enquanto instituição e organismo que se adapta ao meio, troca informações, propõe mudanças. Atualiza-se, jamais se acomoda e intervém na política ambiental e social, deixando de ser fria e distante, para tornar-se viva, pulsante, necessária, desejada e indispensável ao meio social, pois cumprirá o papel de facilitadora das relações interpessoais.
A escola é o produto de relações sociais integralizadoras; por isso, seu papel não deve ser o de ditar normas, mas proporcionar o entendimento do papel social dos seres humanos, das classes sociais, diferenças e desigualdades sociais, possibilitando ao educando uma leitura de mundo não sob o viés de superioridade ou inferioridade, porém de cidadão planetário, ou seja, “A planetariedade deve nos levar a sentir e viver nossa cotidianidade em relação harmônica com os outros seres do planeta Terra” (Gutiérrez; Prado, 2002, p. 37). Sendo assim, a educação alimenta minha mente não de maneira condicional, mas incondicional, irrestrita, ampla e emancipatória; torno-me um ser que pensa a educação que recebe e participa da mesma.
Conclusão
Aprendemos, neste curso, que o papel da educação não é determinar um caminho, mas ensinar ao educando a construir caminhos, possibilidades de bem-viver; porém, nessa jornada da aprendizagem, os elementos básicos precisam ser considerados, pois sem comida, o alimento adequado, o melhor aprendizado está sujeito ao fracasso. Não se pode ignorar a fome que fragiliza o corpo e enfraquece a mente. Educar é importar-se com o outro, seja a relação docente-discente, discente-discente, discente-docente, incluindo os demais atores do processo educacional: comunidade, família, funcionários, etc. A fome mata o corpo, a falta de educação mata a mente, e uma sociedade que não tem acesso à comida e à educação morre física, moralmente e politicamente. O espaço escolar tem sido um local de alimentar a mente e o corpo dos discentes e precisa ser valorizado e fortalecido, pois um povo que investe em educação torna-se forte física, mental, moral e politicamente - e em sua história deixa registrado o quanto é capaz de superar dificuldades e vencer os obstáculos. Por isso, a educação é capaz de alimentar o corpo e a mente, pois ensina ao indivíduo a importância e os benefícios de ambos os alimentos: físico e mental.
Referências
ARROYO, Miguel G. Módulo IV - Pobreza e Currículo: uma complexa articulação. Educação, Pobreza e Desigualdade Social. Brasília: Ministério da Educação, 2018.CASTRO, Josué. Os estudos sobre a fome no Brasil. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/viewFile/1767/pdf_18. Acesso em: 30 jun. 2018.
LIBÂNEO, José Carlos. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v38n1/aop323.pdf. Acesso em: 30 jun. 2018.
SANTOS, Claudio Marcio dos; SILVA, Ludmila Furtado da. Pedagogia & Psicanálise: Diálogo sobre a indisciplina escolar. Rio de Janeiro: Autografia, 2016.
SAVIANI, Dermeval. História da História da Educação no Brasil: um balanço prévio e necessário. Conferência de abertura. V COLÓQUIO DE PESQUISA SOBRE INSTITUIÇÕES ESCOLARES. São Paulo, de 27 a 29 de agosto de 2008.
Publicado em 29 de setembro de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
SANTOS, Claudio Marcio dos. Educação que alimenta o corpo e a mente. Revista Educação Pública, v. 20, nº 37, 29 de setembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/37/joseph-educacao-que-alimenta-o-corpo-e-a-mente
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