O esvaziamento do caráter humanizador da literatura no ambiente escolar

Tatiane Sperandio Fernandes Molini

Graduada em Letras e em Pedagogia, mestre em Estudos Literários (UFES), professora de Língua Portuguesa e Literatura na rede municipal e presidente do Conselho Municipal de Educação de Vila Velha

Oferecer a literatura às crianças desde os primeiros meses de vida contribui para que cada uma delas possa exercer, em condições de igualdade, seu direito de se transformar e de transformar o mundo por meio do pensamento, da imaginação e da criação (Conta de Novo?! as famílias e a formação literária do pequeno leitor. MEC. Brasília, 2016).

Se o texto literário não puder nos mostrar outros mundos e outras vidas, se a ficção ou a poesia não tiverem mais o poder de enriquecer a vida e o pensamento, então teremos de concordar com Todorov e dizer que, de fato, a literatura está em perigo (Caio Meira).

Observando os mais variados conceitos de literatura nos seus diversos contextos, podemos dizer que muitos são alvos de questionamentos e todos passíveis de discussões. Apesar de muitos ainda acharem complexa a definição de literatura, já que se aplica ao campo da ciência e suas características universais e essenciais, é possível encontrar algumas definições que nos remetam a ela como a arte da palavra. A partir desse conceito, voltamo-nos para a palavra no seu estado de arte, com suas múltiplas significações e que remetem à fruição estética do texto literário como bem nos lembra Arnaldo Antunes em seu livro As Coisas: “Todas as coisas do mundo não cabem numa ideia. Mas tudo cabe numa palavra, nesta palavra tudo” (Antunes, 1993, p. 24-25).

Questões como as das palavras e a linguagem são próprias ao homem e à sua obsessão em entender o mundo e as coisas que estão à sua volta. Adilson Citelli, em seu livro Linguagem e persuasão, revela como a linguagem possui, desde a tradição do discurso clássico, a capacidade de firmar, inflamar ou até modificar um ponto de vista, dando assim início aos estudos pertinentes a ela:

O exercício do poder via palavra era ao mesmo tempo uma ciência e uma arte, louvado como instância de extrema sabedoria; portanto, não causa estranheza que surgissem aí as primeiras sistematizações e reflexões acerca da linguagem. Os pensadores gregos de Sócrates a Platão escreveram sobre o assunto, porém foi com Aristóteles que o discurso será dissecado em sua estrutura e funcionamento (Citelli, 2004, p. 9).

No entanto, é necessária a união da arte ao convencimento, surgindo assim a preocupação com a constituição e a construção das palavras e de seus múltiplos significados. Perceber a literatura como arte expressa por palavras tem, nesse contexto, seu caráter cultural materializado por meio da linguagem, o que, por si só, ou seja, a palavra em suas possibilidades de expressão, proporciona uma diversidade de linguagens que ganham uma infinidade significados, cores e formas por meio da literatura.

As palavras
Há muitas e poucas palavras. Por exemplo: pegamos um corpo. Se continuarmos a linha que sai do lado de fora de um dos pés (isto é, do ponto de vista do próprio corpo: o lado direito do pé ou o lado esquerdo do esquerdo) e vai pelo chão até o outro pé, teremos a palavra planeta, que inclui o corpo. Incluídos nesse corpo temos membros. Entre os membros pernas. Dentro das pernas pés. Nos pés dedos e nos dedos unhas. Mas se dissermos unhas podem ser das mãos. Se estiverem riscando um muro diremos atrito. Então podemos estar falando de fósforos ou de pneus. De sexo, discussões ou condutores elétricos. Assim: mesa e cadeira são duas palavras. Móveis é uma palavra só – Coisas que se movem. Mas não há palavra para dizer dois corpos encostados, ou uma mão segurando um punhado de terra ou duas mãos dadas com um tanto de terra entre elas; como há, por exemplo, a palavra jardim para designar o conjunto de terra e plantas; ou a palavra planta para expressar a soma da parte dessa parte do jardim que fica em cima e da parte que fica em baixo da terra. Com raiz bulbo folha talo ramo galho tronco fruto flor pistilo pólen dentro. Mas se não quisermos dizer planta podemos dizer pé. E a sola do pé chamaremos de planta. Sobre o solo. Assim como dizemos planta para o pé diremos palma. Para mão. Folha da palmeira. E se não quisermos dizer planeta podemos dizer terra. Ou isso. Mas se ele não estiver por perto não podemos chama-lo de isso (Antunes, 1993, p. 57).

Assim, considerando que a literatura pode ter várias funções, é preciso uma visão mais cuidadosa principalmente quando nos remetemos ao seu valor subjetivo, humanizador e construtor de identidade. Não tratar a literatura numa perspectiva simplesmente pedagógica de cunho educativo, mas, sobretudo em sua origem estética e humanizadora. Atualmente, muitos textos literários têm sido apenas objeto de interpretação. sendo esquecida a sua capacidade de fazer com que os sujeitos, em especial os que estão no ambiente escolar, entendam como as coisas estão postas no mundo em que vivemos. É perceptível, por exemplo, que há na escola uma seleção do texto literário em que são priorizados apenas alguns escritores. Estes, na maioria das vezes, motivados pelos textos postos nos livros didáticos. No entanto, vale destacar que a escola tem sido há muito tempo o espaço onde as crianças têm tido seus primeiros contatos com a literatura, o que, porém, não nos impede de contestar que tipo de experiências literárias têm sido oferecidas a esses sujeitos.

Sabendo que a convivência com as diferentes manifestações artísticas e culturais são experiências importantes para que as crianças desde pequenas possam desenvolver um conhecimento da realidade estética e crítica que é manifestada à sua volta, incluímos a literatura como prática cultural integrada à nossa visão de mundo. Antônio Candido, em seu ensaio O direito à literatura, ensina que a literatura ajuda a formar nossa visão do mundo, pois nos organiza, nos liberta e assim nos humaniza; ensina também que negar a literatura é também negar nossa humanidade. Dentre os aspectos relacionados à nossa formação humana, temos na língua, na linguagem e nas palavras objetos de interação social significativos para a constituição do pensamento humano; em outras palavras, possuem papel fundamental para a evolução do homem, pois possibilitam a interação com o outro. Umberto Eco, em seu discurso Sobre algumas funções da literatura, destaca, dentre as diversas funções, a manutenção da língua como patrimônio. Ele afirma que “a língua vai para onde quer, mas é sensível às sugestões da literatura” (Eco, 2003, p. 12), ou seja, Eco evidencia a contribuição da literatura para a formação da língua, e acrescenta que tal função “cria identidade e comunidade” (Eco, 2003, p.13).

Do mesmo modo a palavra, um dos componentes fundamentais da linguagem, constituída de seus significados, possibilita a transmissão de experiências e a aquisição de cada uma delas. Assim, linguagem e palavra se encontram na literatura e fazem dela uma das práticas mais importantes de saberes sobre o homem e o mundo. A literatura é esse saber que possibilita uma transformação na maneira como vemos as coisas, tornando-nos mais críticos, fraternos, criativos, sociais; enfim, ampliando nossas relações conosco e com o outro.

No entanto, há uma grande tensão entre o discurso pedagógico e o discurso estético-literário no que diz respeito à escolarização da leitura literária. A ideia de uma literatura extremamente escolarizada, centrada exclusivamente em atividades de ensino e aprendizagem, gera certa desconfiança no tipo de literatura produzida, por exemplo, para crianças. Seria uma literatura produzida para um público escolar, ou seja, para ser consumida na escola e por meio da escola? Sabe-se que desde os primórdios a literatura infantil surgiu atrelada a uma função utilitário-pedagógica que muitas vezes é usada para servir a um lucrativo mercado que converte literatura em leitura de uso escolar. Desse modo, toda função estética, formadora, humanizadora que tem a literatura se converte a propósitos educacionais com fins puramente pedagógicos. Magda Soares, ao falar da escolarização da literatura, lembra bem como esse conceito já vem há tempo afetando a produção do livro infantil:

Esse conceito de literatura infantil pode parecer, aos mais radicais, uma heresia – talvez seja, mas deve-se também reconhecer que sempre se atribuiu à literatura infantil (como também à juvenil) um caráter educativo, formador; por isso ela quase sempre se vincula à escola, a instituição, por excelência, educativa e formadora de crianças e jovens; lembre-se, por exemplo, que Monteiro Lobato, quando publicou A menina do nariz arrebitado, em 1921, caracterizou-o, na capa, como “livro de leitura para as segundas séries”; o livro foi anunciado como “um novo livro escolar aprovado pelo governo de São Paulo”, e a edição foi realmente vendida para o governo de São Paulo para que o livro fosse adotado nas escolas. (Soares, 2011, p. 18-19)

De Monteiro Lobato para cá talvez muita coisa tenha mudado, mas outras tantas continuam semelhantes. Em seu livro Literatura em perigo, Tzvetan Todorov afirma que “o grande perigo que corre a literatura é o de não ter poder algum na formação do indivíduo” (Todorov, 2014, p. 8). Ele afirma que isso se dá principalmente pela forma como a literatura tem sido oferecida, de maneira disciplinar e institucional. Nesse contexto, observamos o crescimento de uma literatura padronizada com baixa qualidade estética para satisfação de determinado mercado. Tendo como parâmetro o viés comercial e sendo qualificada com base nesses interesses, a literatura torna-se produto e perde sua identidade. A necessidade de produzir um tipo de mercadoria que seja rentável e de rápida circulação não abre espaço para que a relação entre o leitor e a literatura se cristalize, seja estável. Isso posto numa sociedade em contínua mudança, em que nada é feito para durar, que o sociólogo e filósofo polonês Zigmunt Bauman traduz como “sociedade liquida”, uma pós-modernidade sem ilusões, em que as pessoas são incapazes de se relacionar com a pessoa do outro. Nesse contexto, Bauman destaca o papel das artes, em especial da literatura, na criação de uma sociedade melhor, já que nos revelam de maneira mais próxima as experiências humanas. Nesse sentido, é o texto literário que tem a capacidade de iluminar as relações dos sujeitos na sociedade, pois, como o próprio Bauman declara, “a literatura tem a liberdade que outros textos não podem desfrutar”.

Como fazer então para que a literatura tenha garantido o seu papel formador no ambiente escolar? É possível não escolarizar algo que está presente na escola? Para essas questões, Magda Soares (2011, p. 21) diz que a escolarização da literatura é um “inevitável processo” pelo qual passa um saber ao se tornar escolar. No entanto, o sentido negativo que tal escolarização adquire se refere ao modo como ele acontece. Na maioria das vezes há um comprometimento pedagógico em detrimento da arte, tornando o texto literário desvirtuado, desconectado, diminuído, didatizado.

Um dos motivos para essa inadequada escolarização da literatura está no fato de que os mediadores do processo de leitura literária, na maioria das vezes professores, bibliotecários e pedagogos, entre outros, não são leitores de literatura. Leem basicamente livros sobre pedagogia, informativos, ou seja, leituras para aperfeiçoamento e atualização de sua prática pedagógica. Há ainda os céticos que questionam o papel da literatura nos currículos escolares, sugerindo sua quase supressão. Para estes, a literatura não passa de um momento de prazer, ócio, descomprometido de qualquer importância para a educação do indivíduo. Equívoco que poderia ser amenizado segundo Dalvi:

Obviamente, essas diferentes esferas cambiam entre si todo o tempo, friccionam-se com outras e são constituídas por múltiplos agentes, que vivem diferentes experiências e se posicionam nas disputas internas ao campo literário de modos variados. Para mim, uma educação literária efetiva precisa ao menos dimensionar para os sujeitos essa complexidade. De saída, dar noção ao menos dessa complexidade teria o efeito de desfazer aquele equívoco tradicional que faz parecer que literatura é uma coisa antiga, sem vida, de gente desocupada ou ociosa ou que vive no mundo da lua e se recusa a encarar a realidade (Dalvi, 2018, p. 16).

Da maneira como se constroem as políticas educacionais e como é posto e reforçado nos documentos oficiais, a literatura torna-se para muitos profissionais uma atividade de lazer e entretenimento que não tem comprometimento nenhum com os currículos escolares ou então mais um conteúdo em que o aluno precisa extrair determinado conhecimento voltando-se para um determinado aprender e distanciando-se de sua função humanizadora. Observem-se, por exemplo, os conteúdos para verificação de aprendizagem por meio de avaliações de larga escala: há um significativo esvaziamento do pensamento crítico e, consequentemente, a subtração da experiência estética.

Os exames em larga escala (para a Educação Básica e para a Educação Superior), via de regra, prescindiram da leitura de obras literárias integrais – e trabalham com fragmentos “com unidade de sentido”, de modo que, no que tange ao processo de educação escolar/universitária, deu-se o esvaziamento da experiência individual e partilhada de leitura literária integral e a inviabilização da mediação literária qualificada, em um sistema feito pela racionalidade técnica, pela lógica do controle e do lucro que vê nos exames um fim educacional e não um instrumento de avaliação educacional (Dalvi, 2018, p. 17)

As leituras, nesse contexto, se concentram principalmente no alto grau de informação que é exigido no mundo globalizado. Desse modo, se exclui aquilo que não pode ser mensurado em provas e avaliações. Se tomarmos, por exemplo, a BNCC – Base Nacional Curricular Comum, em seu documento escrito para o Ensino Médio, vemos uma subvalorização das áreas de Ciências Humanas. O texto da BNCC coloca de forma genérica, sem mencionar conteúdos específicos, cinco itinerários formativos: linguagens e suas tecnologias, matemáticas e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e formação técnica e profissional. Com 60% do currículo compostos por um conteúdo obrigatório, em que há valorização das disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, os outros 40% são destinados aos itinerários formativos. Porém não há obrigatoriedade de oferecer aos estudantes todos os itinerários. A definição é da instituição, que tem a obrigatoriedade de oferecer apenas um único itinerário. Isso pode acarretar uma restrição na formação dos estudantes e reforçar uma educação voltada para demandas imediatas do mercado. Ora, não poderá a literatura perder espaço para a gramática no intuito de atendimento a um ensino tecnicista, por exemplo? Ou ser priorizado o ensino normativo da língua e da linguagem, não dando nenhum espaço ao ensino da literatura? Que tipo de literatura teria espaço em uma escola cujo currículo estivesse voltado à profissionalização dos estudantes? Mais uma vez ficaria evidente a desvinculação da formação humana e cidadã desse sujeito, em prol de uma formação voltada a determinados interesses que, na verdade, confundem de maneira intencional a flexibilização com a precarização dessa formação.

No documento da BNCC voltado para o Ensino Fundamental, é possível encontrar no texto que trata das competências específicas de Língua Portuguesa um trecho que remete de certo modo à função humanizadora da literatura:

Envolver-se em práticas de leitura literária que possibilitem desenvolvimento do senso estético para fruição, valorizando a literatura e outras manifestações artístico-culturais como formas de acesso às dimensões lúdicas, de imaginário e encantamento, reconhecendo o potencial transformador e humanizador da experiência com a literatura (BNCC, 2017, p. 85).

Porém quando avaliamos o campo artístico-literário proposto no documento e suas respectivas habilidades, percebemos que o caráter humanizador do texto literário dá lugar à valorização dos processos linguísticos e de estrutura do texto, fazendo assim com que a literatura seja apenas suporte para aquisição de outros conhecimentos. Desse modo, o documento continua a reforçar a ideia de literatura ligada a critérios de avaliação quantitativa, em que o que importa não são os valores do texto literário e sim os recursos linguísticos presentes em determinado gênero por exemplo. Os objetos de conhecimento propostos na BNCC corroboram, nesse campo, habilidades que dão conta de analisar a estrutura do texto, suas marcas coesivas, a composição do gênero, o uso da pontuação, os recursos linguístico-gramaticais de maneira geral. No entanto, fomentar de maneira expressiva o desenvolvimento do senso crítico, a dimensão da experiência simbólica da linguagem, a motivação das emoções e outros tantos processos que podem ser apreendidos com a literatura não são objetivos do documento.

Outra situação que precisa ser revista são os tempos e espaços de leitura literária na escola. Na Educação Infantil, por exemplo, a rotina estabelecida, que é algo importante para as crianças, muitas vezes não abre espaço para a leitura literária, dando vez a atividades preestabelecidas, impostas de maneira mecânica. A leitura, quando aparece neste contexto, funciona como preenchimento de tempo que está totalmente descontextualizado ou da rotina escolar ou do compromisso com o letramento literário ou até com essas duas dimensões. Há, muitas vezes, problemas com o repertório do professor ou até mesmo do acervo da escola, que tem leitura comprometida com um objetivo pedagógico ou moralizante, com lições e ensinamentos que muitos adultos consideram o ponto principal ao oferecer literatura às crianças. Assim, os tempos e espaços dedicados à leitura literária têm em sua grande maioria uma pequena dedicação de cunho altamente pedagógico. Se levarmos em consideração os três princípios que estão postos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, éticos, políticos e estéticos, podemos perceber que este último vem justificar o quão é necessário para essa fase da escolarização a dedicação a uma leitura literária que priorize os valores “da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da liberdade de expressão nas diferentes manifestações artísticas e culturais” (Brasil, 2010, p. 16).

No Ensino Fundamental, quando faz parte das atividades, a literatura ganha um cunho pedagógico que desvirtua totalmente sua função estética e humanizadora. Os tempos e espaços dedicados a ela são na verdade tentativas de atuação nos campos da alfabetização, de temas transversais, disseminação dos aspectos gramaticais da língua em fragmentos de textos na maioria das vezes postos nos livros didáticos. Desse modo, o lugar da literatura fica atrelado a outras práticas, como ensino da gramática normativa e características do texto, o que não objetiva a formação do leitor literário.

No Ensino Médio, o ensino de literatura está muito mais centrado nas características dos períodos literários, nos nomes das obras e dos autores como numa sequência histórica. Quando há leitura das obras, elas se tornam objeto de estudo ligado às características do período estudado. Assim, há valorização da história, dos períodos, das características literárias em detrimento do texto literário.

Desse modo, observamos que em todas as situações descritas a literatura tem perdido o seu papel (sua função) principal. Uma espécie de apagamento da leitura literária, de maneira gradativa e contínua, vem sendo disseminado no ambiente escolar. Esse apagamento se dá principalmente pela troca que há entre a literatura e seu caráter humanizador e a literatura como instrumento de análise de aspectos gramaticais e pedagógicos.

Para muitos, essa problemática tem início na formação inicial dos professores. Nos cursos voltados para a formação do professor da Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, os currículos não apresentam disciplinas de formação em literatura. De maneira muito escassa, em algumas instituições disciplinas como Literatura Infantojuvenil são apenas optativas. Nos cursos específicos de Letras, que formam os professores para atuar nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, os currículos muitas vezes apresentam alto grau de teorias da literatura, priorizando os conceitos. Muitas vezes as instituições não formam os profissionais da área da Educação para ser mediadores no trabalho com a literatura em sala de aula e concentram esforços em formar cientistas, pesquisadores da área, críticos e intelectuais, entre outros. Os assuntos ligados à sala de aula, educação, didática, causam em muitos profissionais a impressão de algo menor, que está muito longe daquilo que se considera formação literária. O problema é que os professores que saem desse tipo de formação não conseguem lidar com esses conteúdos em sua prática profissional e fracassam no processo de mediação da leitura literária. Esses conhecimentos deveriam tornar-se ferramentas para os professores, porém não acontece dessa forma e o que vemos na maioria das vezes é uma repetição daquilo que foi aprendido no Ensino Superior:

Como aconteceu de o ensino de literatura na escola ter-se tornado o que é atualmente? Pode-se, inicialmente, dar a essa questão uma resposta simples: trata-se do reflexo de uma mutação ocorrida no Ensino Superior. Se os professores de Literatura, em sua grande maioria, adotaram essa nova ótica na escola, é porque os estudos literários evoluíram da mesma maneira na universidade: antes de serem professores, eles foram estudantes (Todorov, 2014, p. 35).

A inclusão da literatura literária como prática fundamental ao desenvolvimento humano dos alunos, estimulados pelo contato frequente com os textos em todas as etapas da educação, deve fazer parte do cotidiano da escola. A organização do trabalho e o acesso da criança ao acervo são imprescindíveis à formação do leitor literário e à ação dessa leitura na formação da criança. Além disso, é preciso uma orientação menos fechada e a liberdade, por exemplo, das salas de leitura, cantinhos da leitura e tantos outros espaços de experimentação aos quais o jovem leitor recorre quando bem estimulado. Dentro desse espaço, é preciso entender a concepção de literatura como resultante das mais variadas experiências – sejam sociais, cultuais, históricas, e existenciais, entre outras.

Lembramos aqui mais uma vez Antônio Candido, que sempre defendeu que a literatura deve ser considerada um bem indispensável para o ser humano. Para Candido, “assim como alimentação, saúde e moradia, a literatura deve ser um direito humano, visto que torna o sujeito consciente de sua condição social”. No atual momento político, social e econômico em que vivemos, a manutenção do esvaziamento da função humanizadora da literatura torna-se algo altamente prejudicial à formação de uma sociedade mais justa, em que o respeito ao outro, a convivência com o diferente, a igualdade de direitos sejam de fato estabelecidos. Nesse contexto, a literatura tem a capacidade de incitar as insatisfações do ser humano com sua condição no mundo e produzir uma reflexão acerca de tais insatisfações. A prática mediadora da literatura respeitando seu caráter humanizador pode ser uma alternativa ao condicionamento do ser humano em ações e pensamentos que têm expressado de maneira tão degradante as situações de conflitos e guerras, atitudes extremas de preconceito e desrespeito ao próximo quando tratamos de temas como religião, gênero e raça, entre outros.

Todorov alerta que, mesmo reconhecendo tais virtudes da literatura, não podemos achar que tudo converta a ela em nossa vida. Porém é preciso destacar que ela pode muitas coisas:

A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. A literatura tem um papel vital a cumprir; mas por isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é marginalizado, quando triunfa uma concepção absurdamente reduzida do literário (Todorov, 2014, p. 76-77).

Assim, superar toda a fragmentação e subutilização que a literatura tem sofrido, principalmente na escola, é tarefa urgente e necessária para a preservação do caráter humanizador, tão necessário em nossos tempos. Sabendo que muitas vezes o nosso sistema escolar está enraizado em um modo autoritário em que normas e comportamentos são impostos e que o currículo proposto não dialoga com as práticas de diversidade cultural, é preciso questionar como a educação literária tem sido tratada e quais as consequências do seu quase desaparecimento dos documentos oficiais que norteiam a educação brasileira. Uma educação literária que amplie a visão do mundo em que vivemos e, como bem salienta Todorov, que não torne o sujeito um especialista em análise literária e sim um conhecedor do ser humano, pois essa é a melhor preparação para uma vida melhor: “Hoje me pergunto por que amo a literatura; a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é porque ela me ajuda a viver” (Todorov, 2014, p. 23).

Referências

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TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. 5ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 2014.

Publicado em 28 de janeiro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

MOLINI, Tatiane Sperandio Fernandes. O esvaziamento do caráter humanizador da literatura no ambiente escolar. Revista Educação Pública, v. 20, nº 4, 28 de janeiro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/4/o-esvaziamento-do-carater-humanizador-da-literatura-no-ambiente-escolar

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