A importância do saber na construção do ser humano, abordada em “Vidas secas”, de Graciliano Ramos

Elisabeth Cristina Alves Marques

Licencianda em Letras (UFRJ)

A biografia do autor

O livro Vidas secas é o quarto romance de Graciliano Ramos de Oliveira. Nascido em Quebrangulo/AL no dia 27 de outubro de 1892, o autor migrou para diversas cidades do nordeste do Brasil com sua família de classe média no decorrer dos primeiros anos da infância. Após terminar o segundo grau da educação, seguiu para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como jornalista para O Malho e Correio da Manhã. No entanto, devido a uma tragédia em que perdeu três de seus quinze irmãos e um sobrinho por causa da epidemia de peste bubônica, em 1915, ele regressou à região de origem.

Permanecendo na cidade de Palmeira dos Índios, o escritor se casou com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos. Sete anos depois, foi eleito prefeito do município, cargo que assumiu durante dois anos, até quando renunciou. Escritos por Graciliano, os relatórios da prefeitura chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o fez publicar seu primeiro romance, Caetés, em 1933. Trabalhando como diretor da Imprensa Oficial e como professor-diretor da Instrução Pública, o autor divulgou São Bernardo.

Entretanto, em março de 1936, ele foi preso devido a uma acusação de ser militante de esquerda, originada em razão do pânico insuflado por Getúlio Vargas após a Intentona Comunista. Em seu período de detenção, refletiu sobre questões político-sociais e conseguiu publicar a obra Angústia, com inspiração nelas. No ano seguinte, o escritor é liberado e, com o texto-base Baleia, desenvolve e divulga Vidas secas logo depois. De volta ao Rio de Janeiro, na década de 1940, ingressa no Partido Comunista do Brasil, de orientação soviética e sob o comando do militar e político Luís Carlos Prestes.

Com Heloísa Medeiros Ramos, sua segunda esposa, Graciliano realiza algumas viagens a países europeus. Após a publicação de outros livros, adoece gravemente no começo de 1953, sendo internado devido a um câncer de pulmão. Por causa disso, o autor falece, aos 60 anos, em 20 de março do mesmo ano, no Rio de Janeiro. Tendo exercido várias funções, redigido vinte obras literárias, recebido diversos prêmios e traduzido escritos do inglês e do francês, sua vida e seu trabalho recebem atenção da crítica literária e do mundo acadêmico regularmente.

A definição da palavra saber

Ao ler e analisar a obra Vidas secas, nota-se que o saber desempenha papel imprescindível na construção evolutiva do ser humano e de suas capacidades. Para que seja possível a produção deste trabalho, devemos recorrer ao glossário de nossa língua e da língua latina que a originou, conhecida também como língua indo-europeia do ramo itálico. De acordo com a 20ª edição do Minidicionário Soares Amora da Língua Portuguesa, publicada em 2014 pela Editora Saraiva, a palavra saber é definida do seguinte modo:

sa.ber vtd e vi 1. Ter conhecimento ou informação; vtd 2. ter habilidade para fazer algo; 3. compreender; 4. guardar na memória; lembrar; 5. prever; 6. estar seguro sobre como proceder; vtd 7. ter conhecimento erudito de; ser especialista em; sm 8. sabedoria (acep 2 e 3); 9. experiência prática (Amora, 2014, p. 788).

Segundo a 3ª edição do Dicionário Escolar Latino-Português, organizado por Ernesto Faria e publicado em 1962 pelo Ministério da Educação e Cultura, a definição do termo latino “sapĭō, -is, -ĕre, -ĭī (ou -īvī)”, responsável por originar a palavra portuguesa saber, é a seguinte:

sapĭō, -is, -ĕre, -ĭī (ou -īvī, v. intr. e tr. A) Intr. I – Sent. próprio: 1) Saber, ter gosto, ter sabor de (Plín. H. Nat. 11, 18). 2) Rescender, exalar um perfume (Cíc. De Or. 3, 99). II – Sent. Figurado: 3) Ter bom gosto, ter discernimento (Cíc. Phil. 2, 8); (Cés. B. Gal. 5, 30, 2); (Ter. Eun. 76). B) Tr.: 4) Saber, conhecer, compreender (Plaut. Ps. 496) (Faria, 2014, p. 891).

Análise de passagens da obra

Vidas secas, escrita entre 1937 e 1938, é a única experiência de Graciliano Ramos com foco narrativo na terceira pessoa. Esse romance regionalista é inspirado em muitas histórias sobre a vida dos retirantes que ele acompanhou ao longo de sua infância. Após a finalização da leitura, é possível concluir que o livro expõe denúncias sociais e apresenta um enredo cíclico, iniciando com a seca e encerrando com os prenúncios da aproximação de outra. Em cada capítulo, um personagem-membro da família de retirantes é tratado em particular. No entanto, o foco narrativo sempre segue uma ordem: começa com Fabiano (o pai), desloca-se para Sinhá Vitória (a mãe) e os dois meninos (os filhos do casal) e termina com Baleia (a cadela de estimação).

A estrutura da obra é fragmentada, pois o leitor, dessa forma, tem uma visão desconexa da realidade apresentada. Isso se relaciona com a percepção distorcida, devida à pouca educação formal, dos personagens sobre o mundo ao seu redor. Durante os capítulos, a família de nordestinos é impulsionada pela seca a se retirar do local onde mora em busca de meios de sobrevivência e de um futuro melhor. Ainda que encontrem estabilidade, ela é passageira porque, quando as chuvas param, os personagens são obrigados a se retirar novamente. O autor, ao escrever, destacou essa condição subumana de existência da família, que os nivela tanto no plano narrativo quanto na situação vivida.

Para que sejam possíveis a análise e a discussão de como a importância do saber na construção do ser humano é abordada no romance regionalista, é necessário que partes do livro sejam selecionadas e examinadas com atenção. Nesse caso, partindo do princípio de que saber significa ter conhecimento ou informação, conforme a primeira definição do Minidicionário Soares Amora, é viável o debate da relação entre isso e a manipulação de dados e de pessoas no decorrer dos anos. Os capítulos Cadeia e Contas (3º e 10º, respectivamente), tratam a temática do trabalho acadêmico nesse ponto.

Na terceira parte da obra, Fabiano tenta comprar produtos para Sinhá Vitória na feira da cidade. Procurando pechinchar no preço, ele passa por várias lojas, desconfiado de que todos lhe enganavam por ter vocabulário insuficiente para questionar as quantidades e os valores. Até que decide parar para beber. Assim que ingere a cachaça, conclui que tanto ela quanto o querosene que devia comprar estavam batizados com água. Então questiona Seu Inácio, o dono da bodega, mas não ouve resposta. Logo, chega um soldado amarelo que o chama para jogar. Sem saber como se esquivar do convite, ele aceita o risco de deixar sua esposa furiosa por perder o dinheiro dos mantimentos.

Em pouco tempo, perde tudo. O personagem sai exaltado da sala, sem se comunicar com os demais participantes do carteado. Recolhendo o que tinha pedido para Seu Inácio guardar, se desloca até a rua. Enquanto a noite chegava, pensava no que dizer em casa como justificativa, mas mal conseguia inventar mentiras. Atrapalhado pela imaginação fraca ao forjar uma explicação difícil, decide dizer apenas que algo natural aconteceu: perdeu o dinheiro na bodega. No entanto, a partir da passagem mostrada a seguir, a situação se complica e Fabiano vê o seu destino mudar quando o soldado amarelo vem atrás dele, o empurra e começa a questionar por que ele saiu do bar sem se despedir.

Repetia que era natural quando alguém lhe deu um empurrão, atirou-o contra o jatobá. (...)

Fabiano estremeceu. (...) Aprumou-se, disposto a viajar. Outro empurrão desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o soldado amarelo, que o desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa. Mexeu-se para sacudir o chapéu de couro nas ventas do agressor. Com uma pancada certa do chapéu de couro, aquele tico de gente ia ao barro. Olhou as coisas e as pessoas em roda e moderou a indignação. Na catinga ele às vezes cantava de galo, mas na rua encolhia-se.

– Vossemecê não tem direito de provocar os que estão quietos.

– Desafasta, bradou o polícia.

E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir.

– Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemecê esbagaçar os seus possuídos no jogo?

Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questão. Não achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiuna em cima da alpercata do vaqueiro.

– Isso não se faz, moço, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que mole e quente é pé de gente.

O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá.

– Toca pra frente, berrou o cabo.

Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu.

– Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano.

Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o arremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu-se atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando.

– Hum! hum!

Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo. Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça (Ramos, 2015, p. 30-31).

Com esse fragmento do terceiro capítulo, é possível analisar como é tão importante ter conhecimento ou informação sobre o mundo ao ser redor. Em Cadeia, o soldado amarelo usa o poder que lhe é conferido para manipular Fabiano e prendê-lo injustamente. Ainda que se comporte de maneira errada (empurrando, insultando e pisoteando), o oficial não sofre punição enquanto o pai da família é preso após ter sido manipulado para responder às agressões contra ele. Por mais que não tenha educação formal, Fabiano entende que não deve ofender o soldado, como previsto na lei sobre o desacato à autoridade, e acredita que as atitudes do oficial estão incorretas, como na lei sobre o abuso de autoridade.

Todavia, por não saber como se expressar, se defender e lutar pelos seus direitos, Fabiano é levado para a prisão e ainda sofre mais ataques. Tudo aquilo era tão inacreditável que, mesmo depois de machucado, ele duvida que um caso tão estranho, sem razão nenhuma, tenha acontecido. Na cela, seus pensamentos variam entre tentar entender o que se passou, por que maltrataram um pai de família e, então, pensar na mulher, nos filhos e na cadela. Logo após, como observado no trecho abaixo, questiona – embora, com dificuldades – por que estava naquele local: se foi preso por não saber falar, por ter sido confundido ou por outro motivo. Além disso, reflete sobre as experiências passadas e o papel do governo.

Quem não ficaria azuretado com semelhante despropósito? Não queria capacitar-se de que a malvadez tivesse sido para ele. Havia engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Não era senão isso.

Então por que um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e aguentavam cipó de boi oferecia consolações: – Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita.

Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo?

– An!

E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo não devia consentir tão grande safadeza (Ramos, 2015, p. 32-33).

Baseado nesse fragmento também do terceiro capítulo, é possível realizar uma associação entre ele e uma experiência na vida do escritor. Como dito antes, o autor foi preso em março de 1936 devido a uma acusação de ser militante de esquerda, originada em razão do pânico insuflado por Getúlio Vargas após a Intentona Comunista. Realizado a partir do dia 23 de novembro de 1935, esse movimento foi uma tentativa de golpe dos militares contra o mandato do então presidente e em nome da Aliança Nacional Libertadora com apoio do denominado, naquela época, Partido Comunista do Brasil e da Internacional Comunista (do inglês Communist International ou Comintern).

De natureza político-militar em virtude das reivindicações imediatas contra um governo, esses requerimentos foram articulados sob influência comunista e eram contrários ao autoritarismo, às oligarquias e ao imperialismo. Entre as exigências menos urgentes, estavam a abolição da dívida externa, o estabelecimento de uma gestão de base popular e a reforma agrária. Em seu período de detenção, Graciliano começou a escrever Vidas secas com inspiração em questões político-sociais. Observamos a interferência dos onze meses em que ele esteve preso principalmente nessa passagem.

Quando Fabiano reflete sobre a possibilidade de ter ocorrido um engano, assim como quando questiona se merecia tal punição e se o governo consentia com tal erro, podemos relacionar aos sentimentos do escritor, visto que só se filiou ao PCdoB e seus ideais em 1945; não havia razões para que tivesse sido detido. Dessa forma, sofreu com injustiças. Pouco mais de um ano após ter deixado a cadeia, em carta escrita, mas nunca enviada a Getúlio, Graciliano comenta o tempo em que esteve preso. No documento datado de agosto de 1938 e publicado pelo jornal Folha de S. Paulo em setembro de 2010, Graciliano utiliza bastante ironia para tratar o episódio de sua detenção, como registrado no trecho a seguir.

Em princípio de 1936 eu ocupava um cargo na administração de Alagoas. Creio que não servi direito: por circunstâncias alheias à minha vontade fui remetido para o Rio de maneira bastante desagradável. (...) Percorri vários lugares estranhos e conheci de perto vagabundos, malandros, operários, soldados, jornalistas, médicos, engenheiros e professores da universidade. Só não conheci o delegado de polícia, porque se esqueceram de interrogar-me.

Nesse fragmento, ele discorre de forma crítica, por exemplo, sobre a ausência de motivos para sua prisão enquanto ocupava o cargo de secretário de Educação de seu estado e sobre os problemas graves em sua condenação, como a inexistência de interrogatório. Segundo o pesquisador Wander de Melo Miranda, ex-diretor da Editora UFMG, que possuía – até, pelo menos, o momento da publicação do texto jornalístico – uma das duas cópias existentes do rascunho, o escritor “nunca teve a intenção de enviar a carta. Foi um desabafo íntimo, uma necessidade de expressar sua revolta através da ironia”. No final desse mesmo capítulo, Fabiano inicia um processo de reflexão a respeito de sua vida e de sua identidade.

O fio da ideia cresceu, engrossou – e partiu-se. Difícil pensar. Vivia tão agarrado aos bichos... Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um cristão endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la. Impossível, só sabia lidar com bichos.

Enfim, contanto... Seu Tomás daria informações. Fossem perguntar a ele. Homem bom, seu Tomás da bolandeira, homem aprendido. Cada qual como Deus o fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, um bruto.

O que desejava... An! Esquecia-se. Agora se recordava da viagem que tinha feito pelo sertão a cair de fome. As pernas dos meninos eram finas como bilros, Sinhá Vitória tropicava debaixo do baú de trens. Na beira do rio haviam comido o papagaio, que não sabia falar. Necessidade.

Fabiano também não sabia falar. Às vezes largava nomes arrevesados, por embromação. (...)

Bateu na cabeça, apertou-a. (...) Sentiu vontade de gritar, de anunciar muito alto que eles não prestavam para nada. (...) Fabiano queria berrar para a cidade inteira, afirmar ao doutor juiz de direito, ao delegado, a seu vigário e aos cobradores da prefeitura que ali dentro ninguém prestava para nada. Ele, os homens acocorados, o bêbedo, a mulher das pulgas, tudo era uma lástima, só servia para aguentar facão. Era o que ele queria dizer.

E havia também aquele fogo-corredor que ia e vinha no espírito dele. Sim, havia aquilo. Como era? Precisava descansar. Estava com a testa doendo, provavelmente em consequência de uma pancada de cabo de facão. E doía-lhe a cabeça toda, parecia-lhe que tinha fogo por dentro, parecia-lhe que tinha nos miolos uma panela fervendo (Ramos, 2015, p. 35-36).

Contando sua origem simples, o personagem explica o que julga ser sua ignorância ou brutalidade devido à falta de ensino. Quando ele recorda a viagem que fez com a família e os animais de estimação, admite que, por necessidade, matou o papagaio e repartiu com os outros para comer, pois a ave não sabia falar. Logo em seguida, Fabiano diz que também não sabe. Ainda que o autor não tenha explicitado, fica subentendido que, assim como o bicho, o personagem é “devorado” por outras pessoas principalmente pela sua incapacidade de comunicação, que impossibilita sua defesa e outras tantas coisas. Continuando, Fabiano sente a urgência de explanar o modo de tratamento a que pessoas, como ele, encontravam-se submetidas.

O que lhe amolecia o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos. Sem aqueles cambões pesados, não envergaria o espinhaço não, sairia dali como onça e faria uma asneira. (...) Não ficaria um para semente. Era a ideia que lhe fervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha.

Fabiano gritou, assustando o bêbedo, os tipos que abanavam o fogo, o carcereiro e a mulher que se queixava das pulgas. Tinha aqueles cambões pendurados ao pescoço. Deveria continuar a arrastá-los? Sinhá Vitória dormia mal na cama de varas. Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo (Ramos, 2015, p. 37).

No fragmento, que está na última página dessa parte, o personagem questiona se todo o seu esforço para não participar de conflitos é válido, pois desse modo aguentava tudo calado na intenção de proteger sua família, ainda que ideias de vingança surgissem em sua mente. Ele reflete, apesar de não perceber, sobre o ciclo de educação precária e suas consequências, do qual era elemento integrante. Fabiano pensa se todo o seu trabalho tem alguma utilidade na tentativa de reverter o fato de que, um dia, seus filhos, visto que eram brutos como ele, sofreriam os mesmos maus-tratos que tolerou e continuava tolerando. Ele se preocupa se os meninos teriam o mesmo destino: pessoas que, sem conhecimento, vivem reféns de soldados.

Pela primeira vez no livro, insinua-se a ideia de que Fabiano, Sinhá Vitoria e seus filhos são pessoas que sofrem o processo de animalização não apenas devido à seca, mas devido a outras razões também. Por ter sido preso sem qualquer motivo e sem esperanças de um futuro melhor, o personagem começa a analisar sua situação como a de um homem-bicho. Ao fim, além de tornar-se ciente e conformado de sua condição, admite que a vida de seus filhos não terá diferenças, se comparada à sua. Enquanto isso, no capítulo Contas, outro vínculo de manipulação é retratado: entre Fabiano e o patrão há aproveitamento dos serviços prestados. Em casa, Sinhá Vitória faz as contas do salário do esposo, mas elas nunca se igualavam às do patrão, que remunerava menos do que devia.

Na décima parte da obra, o pai da família obtém dinheiro para manter a situação de subsistência deles com a venda de bezerros e cabritos, recebendo a terça e a quarta parte de seus valores, respectivamente. Contudo, ele percebe que está sendo enganado por seu patrão, pois antes de ofertar os animais Sinhá Vitoria fez as contas do preço deles com sementes no chão da cozinha, a pedido do esposo. Todavia, depois de reclamar dos valores incorretos e ouvir a cobrança de juros como explicação para a diferença entre eles, fica inconformado. No entanto, vendo o patrão zangar-se e sofrendo ameaça de demissão, o personagem, ainda que contra a sua vontade, se desculpa rapidamente, como podemos observar no fragmento abaixo.

Pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano. E, quando não tinha mais nada para vender, o sertanejo endividava-se. Ao chegar à partilha, estava encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia.

Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim deixou a transação meio apalavrada e foi consultar a mulher. Sinhá Vitória mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu no chão sementes de várias espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de Sinhá Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.

Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!

O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda.

Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se havia dito palavra à toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica? (Ramos, 2015, p. 94).

Resmungando, Fabiano saiu do local. Depois de refletir sobre a sua impossibilidade de reclamar do que vivia com o seu patrão, questiona o porquê de ele lhe roubar e o que ganhava tirando de alguém que já recebia pouco. Se em Cadeia ele inicia um processo de conscientização de que há homens que podem machucá-lo, por possuírem uma posição social melhor que a dele, em Contas, analisando o histórico familiar e o estado de submissão à miséria (semelhante ao de escravidão) em que se via e via toda a sua família, conclui que pessoas com mais dinheiro também podem se aproveitar deles, como é possível observar nesta passagem:

Sentou-se numa calçada, tirou do bolso o dinheiro, examinou-o, procurando adivinhar quanto lhe tinham furtado. Não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda inventavam juro. Que juro! O que havia era safadeza.

– Ladroeira.

Nem lhe permitiam queixas. Porque reclamara, achara a coisa uma exorbitância, o branco se levantara furioso, com quatro pedras na mão. (...)

Olhou as cédulas arrumadas na palma, os níqueis e as pratas, suspirou, mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito de protestar. Baixava a crista. Se não baixasse, desocuparia a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequenos e os cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada!

Espalhou a vista pelos quatro cantos. Além dos telhados, que lhe reduziam o horizonte, a campina se estendia, seca e dura. Lembrou-se da marcha penosa que fizera através dela, com a família, todos esmolambados e famintos. Haviam escapado, e isto lhe parecia um milagre. Nem sabia como tinham escapado.

Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes se arreliava. Não havia paciência que suportasse tanta coisa.

(...) Era sina. O pai vivera assim, o avô também. E para trás não existia família. Cortar mandacaru, ensebar látegos – aquilo estava no sangue. Conformava-se, não pretendia mais nada. Se lhe dessem o que era dele, estava certo. Não davam. Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos. Por que seria que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia até nojo pessoas importantes se ocuparem com semelhantes porcarias.

Na palma da mão as notas estavam úmidas de suor. Desejava saber o tamanho da extorsão. Da última vez que fizera contas com o amo o prejuízo parecia menor. Alarmou-se. Ouvira falar em juros e em prazos. Isto lhe dera uma impressão bastante penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía logrado (Ramos, 2015, p. 95-97).

No primeiro momento, ao notar que fora roubado pelo patrão, a reação do personagem é de revolta. Depois, surge o sentimento de descrença e de resignação. Após ter sido machucado pela natureza (devido à exposição ao sol, à seca e ao frio) por não ter uma casa própria, depois ter sofrido agressão e julgamento incorreto pelo soldado amarelo e outras tantas infelicidades, Fabiano se depara com uma nova decepção: a impotência em reagir diante do poder econômico de algumas pessoas, visto que os mais ricos sabiam como se aproveitar de sua humildade. Logo, nesse capítulo, o patrão, ao notar a situação educacional precária do empregado, o manipula ao usar palavras complicadas que não são entendidas por ele.

Além disso, o empregador ainda manipula o conhecimento que tem de cobrança de juros a seu favor: para furtar o pai da família tanto no dinheiro como no gado. Sem saber como provar que era furtado, o personagem tinha que permanecer no trabalho, mesmo sendo tratado como escravo. Fabiano percebia tanto que estava sendo “usado” que, no final do capítulo, ele se compara à Sinhá Terta, que, diferente dele, pode se defender do que lhe ocorre, pois sabe como se comunicar: “Sinhá Terta é que se explicava como gente da rua. Muito bom uma criatura ser assim, ter recurso para se defender. Ele não tinha. Se tivesse, não viveria naquele estado” (Ramos, 2015, p. 99).

Então, é possível afirmar que quem sabe pouco pode ser facilmente manipulado, tanto pelos políticos de seu país com promessas de campanha como pelos meios de comunicação com informações distorcidas. Porém quem procura saber e manter-se informado está menos subordinado a esse controle, pois questiona e duvida do que é imposto como verdade única.

Baseado nesses fragmentos do décimo capítulo, é possível realizar uma associação entre eles e a importância do conhecimento no século XXI. Desde o surgimento dos smartphones e a sua popularização a partir dos anos 2000, observamos que as tecnologias digitais se tornaram uma ferramenta poderosa ao manter relação direta e instantânea entre as informações e os indivíduos-usuários. Ainda que os sistemas de comunicação já apresentassem papel significativo na construção dos acontecimentos e da opinião pública sobre eles, essas inovações permitiram um alcance maior dessas ocorrências, por meio do número de afetos dos utilizadores das mídias sociais, acompanhadas pelo rótulo de “verdade absoluta”. Casos de fake news sempre existiram. A narrativa com conteúdos infundados sobre a sexualidade dos membros da realeza, por exemplo, era um dos assuntos prediletos das pessoas nos tempos de predomínio de reinados.

Assim como o empregador de Fabiano manipula o conhecimento que tem a seu favor e contra o empregado, notamos que atualmente sofremos essa manipulação com facilidade. Segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia de 2016, desenvolvida pela Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República, 49% das pessoas entrevistadas buscam se esclarecer pela internet (celulares e computadores), ambiente em que cerca de duzentas informações falsas circulam por dia no Brasil. Mesmo que os objetivos dessas notícias falsas sejam inúmeros e diversos, eles, na maioria das ocorrências, são relacionados à política de algum país. Ao mesmo tempo que difamam a imagem de uma pessoa pública vinculada a um partido, essas informações incorretas, quando compartilhadas, promovem a difusão de ideias de um grupo contrário, impulsionando o retrato popular que se tem de seus integrantes.

Por exemplo: na eleição presidencial de 2016 nos Estados Unidos da América, a Central Intelligence Agency encontrou indícios de que a Rússia interferiu durante a campanha. De acordo com o documentário The Facebook Dilemma, dirigido pelo jornalista James Jacoby e produzido pela PBS, emissora pública estadunidense, o Facebook foi a rede social que serviu como ferramenta da primeira ocorrência da ação de um país para influenciar eleitores de outro que, neste caso, eram dos EUA. Após a vitória de Donald Trump na disputa com Hillary Clinton, a CIA identificou que os russos utilizaram a mídia social, através de plataforma de anúncios e de perfis falsos, com o intuito de aumentar a polarização entre os votantes. Além de conseguir manipular o resultado eleitoral, as fake news podem servir para promoção pessoal, influenciando a opinião pública sobre alguém como ocorreu na eleição mencionada.

Obtidos nas redes sociais, os dados particulares dos usuários são usados pelas agências de marketing e pelos centros de inteligência. Tendo conhecimento sobre as preferências dos indivíduos com base em suas postagens, torna-se fácil a manipulação de suas atitudes. Em The Facebook Dilemma, Christopher Wylie, ex-funcionário da Cambridge Analytica que denunciou na imprensa o vazamento de informações dos usuários do Facebook para favorecer a campanha online de Donald Trump, afirma que a mídia social sabia que a consultoria britânica as coletava. Depois dessa descoberta, Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, foi ao Congresso dos Estados Unidos para assumir que, durante as eleições norte-americanas, demorou a identificar a ação da Rússia e para admitir a culpa pelo compartilhamento de fake news na rede social. Da mesma forma que Fabiano, ao se comparar com Sinhá Terta, admite que não tem como se defender do patrão porque não tem conhecimento, vemos que a única maneira de se defender das notícias falsas é por meio do saber e da capacidade de análise crítica.

Conclusão

Vidas secas é essencial, pois proporciona uma leitura envolvente e rica de conhecimento para aqueles que buscam conhecer seu país e o mundo ao seu redor. O livro de Graciliano Ramos e os assuntos abordados continuam atuais, ainda que tenham sido escritos em 1938. Durante grande parte do romance, o saber é relacionado ao ter poder – nos vínculos entre Fabiano e o soldado amarelo e entre Fabiano e seu patrão. Neles, o pai da família é facilmente manipulado, escravizado e ferido porque não tem informações suficientes de como se expressar e se defender das injustiças que lhe acontecem.

No decorrer do romance regionalista, o saber também é relacionado à formação das ideias, ao senso crítico, ao posicionamento escolhido e à expansão do conhecimento particular de cada ser humano. Outros temas, como a desonestidade e a opressão da classe dominante, a integração do homem com o meio físico e o mundo animal, também são tratados na obra. Em suma, o livro exprime a luta do homem contra as adversidades inevitáveis em uma atmosfera densa e destaca, como uma das inúmeras lições, que o saber e a educação são as melhores heranças que pais podem transmitir para o desenvolvimento de seus filhos.

Referências

AMORA, Antônio Soares. Minidicionário Soares Amora da língua portuguesa. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

BORTOLOTI, M. De Graciliano para Getúlio. Folha de S. Paulo, 2010. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1209201007.htm. Acesso em: 2 ago. 2019.

DIANA, D. Vida e obra de Graciliano Ramos. 2019. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/vida-e-obra-de-graciliano-ramos/. Acesso em: 9 ago. 2019.

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Publicado em 20 de outubro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

MARQUES, Elisabeth Cristina Alves. A importância do saber na construção do ser humano, abordada em “Vidas secas”, de Graciliano Ramos. Revista Educação Pública, v. 20, nº 40, 20 de outubro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/40/a-importancia-do-saber-na-construcao-do-ser-humano-abordada-em-rvidas-secasr-de-graciliano-ramos

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