Aula de Artes: experimentando possibilidades com uma turma de pré-escola

Cristiano Ferreira Silveira

Mestre em Educação (IFRGS - câmpus Pelotas/RS), graduado em Educação Artística (Urcamp - câmpus Bagé/RS), licenciado em Letras (Unipampa - câmpus Bagé/RS), professor de Arte no município de Gramado/RS

O presente relato é construído a partir de uma proposta de prática de sala de aula sobre o processo de experiência com a arte por alunos da pré-escola, mais precisamente com educandos do pré-II com faixa etária entre 5 e 6 anos de idade.  Além disso, o professor também se coloca na experiência junto com educandos e, a partir desta implicação, relata uma proposta de trabalho na aula de arte desenvolvida em uma pré-escola, além de refletir sobre as sensações que ocorrem ao longo dessa prática pedagógica. O objetivo da atividade em sala de aula foi experimentar uma proposta de arte por ela mesma e tirar proveito de uma experiência estética que movimentou os sentidos dos educandos e do professor.

Entendo que estar na docência talvez seja um desafio, pois sempre penso esta prática como algo que me traz liberdade. Segundo Larrosa (2004, p. 208), “a liberdade é algo que se tem forma na autonomia. A liberdade é a autonomia da vontade da razão prática, isso é, a capacidade do homem, individual ou coletivamente, de dar de si mesmo sua própria lei e de obedecê-la”. O professor apresenta uma ideia que promove um pensar visando a uma liberdade maior do que as vividas até o momento.

Uma aula de Arte para alunos do pré-II, no contexto que apresento aqui, é algo que acontece como um intervalo, uma pausa com a professora que acompanha a turma diariamente. Segundo Modinger (2012, p. 44), “a disciplina de Artes (...) aqui entendida como um ato ou pensamento que tira do fazer automatizado, rotineiro, faz sair do lugar-comum”. A aula de Artes nesta etapa da infância é uma possibilidade de construir novos pensamentos, adquirir novos olhares e principalmente fabular um mundo só seu através desta linguagem. É nessa perspectiva que a atividade está alicerçada.

Os educandos são, em sua maioria, curiosos destemidos de convenções da ordem dicotômica do bonito e do feio. Eles se jogam na experimentação da proposta, da técnica sem o medo do julgamento como presente em alunos maiores. Trabalhar com a incerteza faz parte da labuta do professor e, quando isso acontece com crianças menores, percebo uma possibilidade maior de encontro com o inesperado com caminhos múltiplos em que precisamos estar atentos às oportunidades de encarar o acaso.

A proposta desenvolvida se configura em uma sequência de situações que podem mobilizar sensações e tornar a experiência algo significativo para os envolvidos, pois resolvemos mergulhar sem expectativas de ineditismo ou outras. Sendo assim, o que interessa é o momento, a experiência de uma aula de arte para todos os envolvidos, alunos e professor, que algo os mobilize, para o bem ou não, porque tudo faz parte da experiência da vida.

Quatro movimentos da proposta

A proposta foi dividida em quatro movimentos. Escolho a expressão movimento, pois sinto que os estudantes se deslocam para outros lugares quando são provocados pelas palavras que falo enquanto vai ocorrendo a atividade. Lembro-me que a atividade não ocorreu de forma a privilegiar a fala do professor, mas sim todas as vozes, silêncios e balbucios que a atividade suscitava.

O primeiro movimento foi verificar quais materiais estavam disponíveis naquele dia para serem utilizados (tintas e papéis), pois foi preciso pensar no que era mais favorável utilizar em sala de aula, pelo fato de não haver a certeza sobre o material disponível para aquela turma de quinze alunos e se o papel escolhido era resistente para a proposta. Então, verificamos que havia tinta guache em potes grandes, umas seis ou sete cores. Esses alunos já haviam utilizado tintas inúmeras vezes, uma vez que se tratava de um material básico na escola. Então por que a escolha desse material? Pelo fato de que sobre a tinta é mais difícil ter-se o controle; em razão de sua densidade mais líquida, poder tomar caminhos inesperados, dependendo da forma como a colocamos sobre o papel.

Além disso, as tintas interagem umas com as outras, formando novas cores que, às vezes, temos dificuldade de nomear. Outro material escolhido foi o papel pardo, que, apesar de ser frágil, possui uma resistência para o movimento e para umidade das tintas. O local a ser realizada a atividade também é importante; por isso, observamos um lugar possível para realizar a proposta, onde precisaríamos nos mexer, nos locomover, respirar, sentir os joelhos.

O segundo movimento consistiu na chegada em sala de aula, onde sempre ocorre um abraço coletivo, uma recepção calorosa, as boas-vindas, como se o encontro fosse algo raro e não semanal como de fato é. A agitação faz parte desta fase da criança, e eles se agitam mais ainda pelos estímulos da aula de arte – afinal, estes encontros lidam bem com estas situações, pois já foram feitas atividades anteriores que partiram destas imprevisibilidades e a usamos como um desencadeador de possibilidades criativas.

Para tanto, decidimos utilizar o espaço da sala de aula da própria turma para realizarmos nossa proposta. Na sequência, o professor distribui um pedaço de papel e giz de cera para os educandos e pede para que eles toquem o papel, sintam o papel, sua textura, e também façam o que quiser com ele, seja desenhar ou recortar.

Figura 1: Alunos desenhando com giz

Essas situações geraram uma espécie de liberdade, para que todos naquele papel colocassem seus traços. Nesta perspectiva, a turma fez as tintas dançarem naquele papel, livre de impedimentos, bem como deixaram suas próprias vontades movimentarem o seu corpo e, consequentemente, o papel.

O exercício realizado era apenas um aquecimento para a proposta principal da aula; logo, os educandos começaram a comentar o que haviam feito com aquele papel, e alguns contaram que desenharam bichos, sua casa, seus brinquedos favoritos etc.

No terceiro momento, o professor mostra um novo papel, maior, de aproximadamente um metro, diferente das medidas a que estão acostumados a utilizar, pois eles utilizam folhas de papel A4. Os educandos logo perguntam se vão desenhar novamente, alguns com tom de reclamação. O professor explica que não. Orienta que há uma nova proposta, na qual todos irão participar e vão ter uma importante função. Em seguida, todos são convidados a pegar um pedaço do papel, e o professor explica como vai ser a proposta.

Figura 2: Explicando a atividade

A proposta consistia em derramar um pote de tinta, por vez, sobre aquele grande pedaço de papel, observando as cores que eram jogadas uma a uma e observando o que estava acontecendo com aquelas cores. Além disso, os estudantes executariam alguns comandos de movimento, como, por exemplo, segurem com uma mão, levantem as mãos, virem de costas ou até mesmo brincar de vivo ou morto. A atividade também possibilitava a experimentação de seus próprios movimentos, principalmente quando era colocada uma nova cor. O professor solicitou que tivessem cuidado para não deixarem as tintas caírem no chão.

Figura 3: Misturando as cores com movimentos

No quarto movimento, todos se colocaram ao redor do papel e estavam ansiosos para o que iria acontecer. Eles resolveram se arriscar, pois eles tinham medo de deixar as tintas caírem no chão, outros temiam sujar suas roupas, mas logo isso se dissipou em descontração, pois tudo se transformou em algo maior. A cada novo estímulo, uma nova reação; o professor também segurou o papel, todos (professor e estudantes) são peças importantes para o funcionamento da atividade, porque cada um modifica aquele papel a cada novo movimento, a cada nova intenção, e um acaba interferindo no pedaço do outro; todos se complementam.

Colocar a primeira cor foi tranquilo, pois ela seguia cursos motivados pelo movimento que todos faziam, e surgia algo no papel. Alguns estudantes tentavam nominar o que surgia. Alguém dizia: “parece um gato”, “parece uma casa”, “parece um caminhão”, e perguntavam ao professor se aquilo era o que eles diziam como uma confirmação do que já tinham dito. O professor afirmava que tudo que eles tinham comentado poderia ser sim, pois ali o trabalho era de todos e eles poderiam encontrar a figura que quisessem naquela tinta.

Figura 4: Professor inserido no movimento

Quando começaram a utilizar a segunda cor, uma nova preocupação surgiu: como ia ficar a cor que já estava no papel? Mas logo isso desapareceu, pois, os movimentos iam ficando mais rápidos, alguns sujavam as mãos e perguntavam se tinha problema. O professor mostrava que também já estava com as mãos cheias de tinta. Logo, depois de mais umas duas cores colocadas no papel, volta-se à preocupação de com o que se parecia aquela figura que surgia; o professor diz que não precisavam se preocupar e questionava o que eles viam ali. Na sequência, alguns estudantes disseram que havia uma borboleta, um campo de futebol, entre outras possibilidades.

Considerações finais

Ao nos debruçarmos na experiência de transformar um ato comum e corriqueiro em uma produção estética da qual não temos o controle, alguns olham e dizem que aquilo não é bonito, outros comentam que necessitam colocar na parede, orgulhosos pela sua arte. Neste momento, faço minhas as palavras de Yonezawa e Cardoso (2016), o aprender permite a transformação do não saber ao saber. Esse processo envolve o corpo de modo específico, pois o aprender depende de uma memória sensorial que se inscreve sobre o corpo, como se os problemas que desencadeiam a aprendizagem fossem signos encarnados ou, no mínimo, inscritos na matéria de um corpo.

O educador tem uma sensação de aprendizado, pois aquilo traz o aspecto da novidade e, assim, educadores e educandos se deixam atravessar pelo enlevo da experimentação de criar, e isso nos toca e também modifica, pois sempre algo acontece.

Uma atividade que talvez seja comum para muitos mobilizou sensações entre estudantes e educador. A proposta mexeu com todos os sentidos dos envolvidos: com o tato, ao sentir o papel; com olfato, ao sentir o cheiro de cada tinta que era colocada sobre o papel que, apesar de ser da mesma marca, cada uma possuía um cheiro diferente; a visão, ao enxergar as cores e possibilidades que o movimento trazia; a audição, para ouvir cada comando que era percebido; o paladar, para degustar as sensações que atravessavam aqueles que participaram da atividade.

Referências

LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Trad. Cynthia Farina. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MONDINGER, C.R. et al. Artes visuais, dança, música e teatro: práticas pedagógicas e colaborações docentes. Ilustrações de Eloar Guazzelli. Erechim: Edelbra, 2012.

YONEZAWA, F.; CARDOSO Jr., H. R. Deleuze e Spinoza e a vigência do corpo-aprendiz: sensibilidade e educação. In: BRITO, M. R. de; GALLO, S. (Orgs.). Filosofias da diferença e educação. São Paulo: Livraria da Física, 2016. p. 167-195.

Publicado em 20 de outubro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

FERREIRA, Cristiano Ferreira. Aula de Artes: experimentando possibilidades com uma turma de pré-escola. Revista Educação Pública, v. 20, nº 40, 20 de outubro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/40/aula-de-artes-experimentando-possibilidades-com-uma-turma-de-pre-escola

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