Nossa Senhora dos Homens Pretos
Yvisson Gomes dos Santos
Psicólogo (Fejal), filósofo (UFAL), especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira (Unicid) e em Filosofia e Educação (UFAL), mestre e doutorando em Educação (UFAL)
Talvez não se saiba que existe uma denominação mariana para os homens negros e que esse título habita entre os alagoanos de Maceió. Falo da igreja com o nome citado no título deste escrito e que se localiza na Rua do Sol, no Centro do Comércio.
Possivelmente, as mãos que elevaram tal igreja tenham sido de escravos ou alforriados numa cidade portuária de alguns séculos. Essa liberdade de pensar o não e o sim da construção de blocos, argamassas, ícones religiosos e festim de exortação ao Santíssimo me faz lembrar aqueles que lá passam e nada sabem sobre a Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos.
Sempre que posso, ando nas imediações de tal lugar. Ora, a cidade nasce de seu centro, de suas feiras ao ar livre, do cheiro de esgoto com frutas ácidas e vermelhas que se faz presentes naquele panteão de cores, sabores e cheiros – sim, temos essa mistura de quase tudo, ainda.
Trafegam várias, centenas, milhares de pessoas por semana no entorno da igreja, e elas não sabem o nome daquele templo. Talvez nem São Benedito saiba (o santo negro), pois estamos numa cidade longe de ser vista como ponto e entreponto de fé social. Quando eu falo de fé social me refiro aos atos hodiernos de governantes que olham com desdém para os que transitam nas ruas do Centro do Comércio.
Certo dia, numa manhã de segunda-feira, os ambulantes com seus produtos à venda foram retirados de seu locus de trabalho. Não se passou muito para voltarem na semana seguinte. Alegavam desinteresse do poder público em colocá-los num habitat aprazível e necessário para suas vendas de hortaliças & cia.
Eles voltaram com suas mãos grossas e suadas para o batente, próximo à Rua do Sol. Aqueles sóis dos verões de Alagoas não são como os de antes: fervem o cocuruto, machucam a alma e Nossa Senhora dos Homens Pretos – de braços abertos aos transeuntes do Centro do Comércio – silencia-se.
Observo quantas vidas passam por esse lugar, essa territoriedade central, bascular, humana, sofrida, negra, branca, amarela, parda. A mistura étnica é imensa. A mística religiosa também. Púlpitos a céu aberto na Praça Deodoro. Lojas comerciais e restaurantes ao calor das tardes afogueadas do Centro.
Todos lá trabalham com intenção: ganhar dinheiro, sobreviver, cuidar dos filhos, festejar, amar e ter uma casa. Os que têm o que foi citado esquecem que lá se localiza a Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos.
Não serei iconoclasta, porque este texto não pretende ser: entretanto, a santa em barro e dourados cinzéis está escondida, amealhada. Sim. Não se abre a igreja para pedir suas bênçãos (o bispo não permite). A santa fica triste. Seus negros homens e mulheres não são abençoados pelas suas mãos benfazejas e encaliçadas.
A Theotokos não percebe que na Rua das Árvores, transversal da Rua do Sol, os escravos trabalham e estudam. Uma miscelânea deveras inquieta e quente toma assento nas ruelas e vielas desse local maceioense. Estudantes saem, outros voltam – todos úmidos com seus cadernos e pensamentos cansados.
Os ambulantes sem local e com local se destoam das prioridades dos que “governam polidamente” esse lugar central. Talvez Dante Alighieri tenha razão em disparar seu inferno aos que devam sofrer. Ele era um medieval. Na nossa época moderna, agora o “inferno são os outros”, como diria Sartre.
Entretanto, me abstenho de levar o texto adiante: já falei de ícone cristão, já falei de filósofo ateu – no paradoxo inerente ao povo brasileiro, antitética construção psíquica. O que quero dizer? Que Nossa Senhora dos Homens Pretos, em sua igreja, não vê de dentro de seu altar os negros e negras sofridos que passam diuturnamente em sua rua, em sua cidade, em seu estado, em seu país. Talvez nessa mistura de tudo – religiosa, de raça, de gostos, de sexos – devam abrir, com urgência, as portas da Igreja e deixá-la, a Mãe de Deus Negra, ao olhar das pessoas que incidem no espeque sagrado.
Lembro que os negros somos nós, confinantes. Viemos da África na Pangeia, e nossa Mãe nada sabe sobre nós, porque não vamos a ela. As portas fechadas, a argamassa escura, o mundo cruel, as insígnias de dores da labuta de tantas pessoas que lá se cruzam e se vão – um tumulto humano.
Nossa vida existe naquele locus sagrado e profano. Às sextas-feiras, todos se voltam a um boteco e lá bebem aguardente para testar se eles existem de fato. Se são entes alforriados ou construtores da Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos, no Centro do Comércio de Maceió – como escravos de seu tempo.
Publicado em 27 de outubro de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
SANTOS, Yvisson Gones dos. Nossa Senhora dos Homens Pretos. Revista Educação Pública, v. 20, nº 41, 27 de outubro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/41/nossa-senhora-dos-homens-pretos
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