Pluralidade cultural na sala de aula: da formação do Brasil à valorização das múltiplas culturas no contexto educacional

Eduardo Beltrão de Lucena Córdula

Doutor em Desenvolvimento e Meio Ambiente, licenciado em Biologia, graduando de Pedagogia, presidente da ONG MAR

O multiculturalismo no Brasil começou a se configurar no período pós-colonização, ainda no século XV, devido à gama de etnias com suas representações culturais que foram se miscigenando gradativamente ao longo dos séculos (Vainfas, 1999). Marcadamente, tivemos forte presença de portugueses, holandeses e franceses nesse processo, junto às etnias indígenas e durante as invasões e alianças, deixando suas representações e raízes culturais que passaram a ser incorporadas (ibidem). Por volta de 1535, somam-se no Brasil os africanos, infelizmente escravizados, que serviam à monocultura inicialmente canavieira, indo o tráfico até aproximadamente a década de 1850 (Patarra; Fernandes, 2011; Gomes, 2019).

Desse processo de múltiplas etnias e seus costumes nasce a cultura brasileira, com aspectos marcadamente registrados em cada região do país, mas com outros que são generalistas a toda a sua população (Holanda, 1995). Portanto, em virtude dessa construção histórico-étnica, o Brasil tornou-se singular, por incorporar nas comunidades expressões linguísticas, religiosidade, vestimentas, alimentação, artesanato, música, folclores, comportamentos e muito mais (Sodré, 1962; Santana; Santos; Silva, 2015).

No início do século XIX, tem-se na política do Brasil um programa de imigração dirigida e livre para expansão do território agrícola, que atraiu alemães, italianos e japoneses, passando a somar com sua cultura, folclore, modo de vida e idioma (Patarra; Fernandes, 2011). Os japoneses e sua cultura chegaram no ano de 1908, representando 4% de todos os imigrantes que chegaram ao país desde o início do século XIX (Suzuki, 1995).

Cada grupo étnico trouxe para somar à cultura em desenvolvimento do Brasil seus aspectos étnicos próprios quanto a três componentes que constituem uma comunidade com expressão étnico-cultural própria: o corpus, a praxis e o kosmos teorizado pelos pesquisadores em etnociência Toledo e Barrera-Bassols (2008).

O corpus significa todos os conhecimentos adquiridos e transmitidos em uma comunidade, representados pelo contato e pelas vivências com a natureza ao longo das gerações, com o desenvolvimento de uma linguagem própria e da formação de sua estrutura de  social; o kosmos são todas as crenças, mitos, lendas e a misticidade espiritual que pertence à comunidade; por fim, a praxis, que representa todas as práticas desenvolvidas pela comunidade expressas no artesanato, nas construções de edificações e instrumentos para uso cotidiano e nos comportamentos marcadamente representativos das pessoas que a constituem (Toledo; Barrera-Bassols, 2008; Cypriano; Teixeira, 2017).

Assim floresce a cultura do Brasil, com sua diversidade étnica; em meio a essa diversidade, a legislação brasileira tenta evoluir na garantia de direitos e deveres, expressa desde o final do século passado como “pluralidade cultural” (Brasil, 1997).

Pluralidade cultural no âmbito legal

A pluralidade cultural é definida, segundo o MEC (Brasil, 1997, p. 121), como o “conhecimento e a valorização de características étnicas e culturais dos diferentes grupos sociais que convivem no território nacional”, sendo as comunidades indígenas – os nativos – sua expressão maior na nossa cultura.

Como a base da sociedade brasileira, apesar de origem europeia, se deu pelo contato direto com as comunidades indígenas e que já habitavam estas terras há séculos, só tiveram garantidos seus direitos culturais e étnicos a partir de 1973, com a promulgação do Estatuto do Índio, pela Lei nº 6.001 (Brasil, 1973).

Em 1988, a Constituição Nacional trouxe, em seu Art. 216:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (Brasil, 1988, p. 94).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) trouxe em seu Art. 26: “Os currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos”; no seu §4º está: “O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia” (Brasil, 1996, p. 09-10).

Em 2003, tem-se a criação da Lei nº 10.639, que “estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’” (Brasil, 2003, p. 1). Com ela, a cultura de matriz africana e sua história no país passam a ser valorizadas e lembradas, pois foram esses povos trazidos à força do continente africano que alicerçaram o Brasil, mas que foram massacrados e explorados ao extremo na forma de escravidão, pela sua força de trabalho (Gomes, 2019). E, apesar de tudo que passaram e vêm passando, tornaram-se corpo desta nação e promoveram e promovem todo o desenvolvimento econômico, social e cultural do país (Graham, 1983; Holanda, 1995).

Com o Decreto nº 5.753/06, foi promulgada a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, o que impulsiona a valorização, o registro e a preservação da cultura nacional em suas diversas expressões em todo o território (Brasil, 2006).

Em 2007, foi instituído o Decreto nº 6.040, sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, que em seu Art. 3, Inciso I, define povos e comunidades tradicionais como

grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (Brasil, 2007, p. 1).

Em 2008, a Lei nº 11.645 fez incorporar na Lei nº 10.639/03, a cultura indígena, como conteúdo curricular a ser ministrados em todas as disciplinas do currículo escolar (Brasil, 2008).

Pluralidade cultural e ensino

Com o amparo legal, a diversidade cultural – pluralidade cultural – ganha corpo e forma material e imaterial, mantendo-se vívida em todo o território nacional graças ao sistema nacional de ensino. Para tanto, é garantida constitucionalmente, pelo Art. 210, que traz em seu texto que “serão fixados conteúdos mínimos para o Ensino Fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (Brasil, 1988, p. 92, grifo nosso).

Com os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental, retoma-se novo arcabouço pedagógico para tratar da temática, explicitando em suas orientações transversais que

a temática da pluralidade cultural diz respeito ao conhecimento e à valorização de características étnicas e culturais dos diferentes grupos sociais que convivem no território nacional, às desigualdades socioeconômicas e à crítica às relações sociais discriminatórias e excludentes que permeiam a sociedade brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um país complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal (Brasil, 1997, p. 121).

Segundo Capellini e Macena (2018, p. 162), a cultura se estratifica e se manifesta em diversas formas na sociedade, em que

a cultura, portanto, é parte constituinte das práticas sociais e precisa ser observada a partir de seus significados e das relações que estabelece no ambiente. Se essa relação é hierárquica, observamos uma sociedade em que a presença do preconceito é inevitável.

Para reverter esse paradigma dos preconceitos está a escola como formadora de cidadãos críticos, reflexivos e atuantes na reestruturação social (Freire, 1996; Silva, 2003; Capellini; Macena, 2018).

O tema pluralidade cultural possibilita aos estudantes se reconhecerem como grupo social, como compreender suas origens étnicas e a estruturação de sua cultura, dentro dos aspectos geográficos e históricos (Santana; Santos; Silva, 2015). Assim, compreendendo suas ancestralidades e a comunidade onde estão inseridos, fortalecerão seus laços de cooperação, de união, pertencimento e valorizarão as diferenças que constituem a população brasileira (Santana; Santos; Silva, 2015).

As autoras Santana, Santos e Silva (2015, p. 100), afirmam que,

através da escola, é possível adquirir conhecimentos e vivências que ajudam a conscientizar os alunos quanto a injustiças e manifestações de preconceito e discriminação. As diferenças culturais devem ser reconhecidas estabelecendo o respeito, a ética e a garantia dos direitos sociais.

Como tema transversal, a pluralidade cultural promove o meio pelo qual os estudantes possam desenvolver a ética, o entendimento e o conhecimento necessários para expressarem-se cultural e etnicamente (Brasil, 1997; Silva, 2003). Com base nas representações culturais, os sujeitos passam a construir sua identidade cultural e a valorizá-la, perpetuando-a  ao longo do tempo pelas próximas gerações (Kreutz, 1997; Capellini; Macena, 2018).

Vários itens devem estar inseridos nos componentes curriculares quanto aos aspectos multiculturais brasileiros, dentre eles aqueles com relação às matrizes africanas e indígenas que marcadamente compõem a nossa cultura (Santos, 2017). Eles permitem a ruptura de preconceitos que ainda reverberam em nossa sociedade e que muitas vezes são culturalmente inseridos na educação doméstica das novas gerações, que acabam replicando algo que aprendem no seio familiar (Nolt; Harris, 2009). É na escola que tabus são quebrados, preconceitos são desmistificados e novos conceitos são construídos de forma cidadã, com respeito, responsabilidade, ética e compromisso com uma sociedade igualitária e justa (Kreutz, 1997).

Considerações finais

O Brasil historicamente é uma nação pluricultural, formada pela miscigenação de etnias europeias e africanas desde o período colonial com as populações indígenas que habitavam há séculos este território. Porém, a estratificação étnica implantada pelos colonizadores gerou preconceitos que perduram até os dias atuais, cabendo à sociedade contemporânea reverter esse paradigma e transformar a nação em um país de respeito à diversidade étnica e ao pluriculturalismo.

Portanto, conclui-se que, para atuar nesse processo, a escola é formadora de cidadãos e opiniões para, junto com a sociedade, a comunidade e as famílias, sensibilizar as novas gerações e romper definitivamente os grilhões dos preconceitos arraigados por gerações passadas e que ainda reverberam na atualidade.

Referências

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______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Casa Civil da Presidência, 1996.

______. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1997.

______. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" e dá outras providências. Brasília: Casa Civil da Presidência, 2003.

______. Decreto nº 5.753, de 12 de abril de 2006. Promulga a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada em Paris, em 17 de outubro de 2003, e assinada em 3 de novembro de 2003. Brasília: Casa Civil da Presidência, 2006.

______. Decreto nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília: Casa Civil da Presidência, 2007.

______. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília: Casa Civil da Presidência, 2008.

CAPELLINI, Vera Lúcia Messias Fialho; MACENA  Janaina de Oliveira. A diversidade cultural na formação e atuação de professores. Revista Educação e Fronteiras On-Line, Dourados, v. 8, nº 22, p. 160-176, jan./abr. 2018.

CYPRIANO, Raphael Jonas; TEIXEIRA, Reinaldo Duque Brasil Landulfo. Etnociência da ciência: a busca por simetria na pesquisa científica. R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v. 14, nº 3, p. 1-13, set./dez. 2017.

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Publicado em 10 de novembro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

CÓRDULA, Eduardo Beltrão de Lucena. Pluralidade cultural na sala de aula: da formação do Brasil à valorização das múltiplas culturas no contexto educacional. Revista Educação Pública, v. 20, nº 43, 10 de novembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/43/pluralidade-cultural-na-sala-de-aula-da-formacao-do-brasil-a-valorizacao-das-multiplas-culturas-no-contexto-educacional

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