Análise de uma proposta curricular de Educação Física: pontos e contrapontos

Arlindo Fernando Paiva de Carvalho Junior

Doutorando em Educação (UNIRIO), professor e pesquisador no Instituto Benjamin Constant, coordenador do grupo de pesquisa Cotidianos Escolares e Educação Especial: corpo, currículo e inclusão (GPCECI)

Carlos Eduardo Vaz Lopes

Mestre em Ciências da Atividade Física (Universo), professor da Univeritas e da rede pública municipal no Rio de Janeiro, membro do grupo de pesquisa Cotidianos Escolares e Educação Especial: corpo, currículo e inclusão (GPCECI)

Fabiano Lange Salles

Doutor em Educação (UFRJ), professor do Colégio Pedro II

O currículo escolar é um dos componentes mais complexos e polissêmicos da educação. Ele representa um intricado processo de construção social que abrange diversos aspectos como o projeto educativo da instituição, os conteúdos sequenciados, a organização dos conhecimentos através de matérias ou disciplinas, baseadas em determinações políticas e pelas próprias relações humanas (Sacristán, 2000). Defini-lo é uma tarefa dificílima, mas essencial e necessária para que possamos compreender suas inúmeras dimensões e implicações. No entanto, concordamos com a premissa de que não é possível definir currículo focando em algo que lhe é essencialmente característico, mas para convenções sobre os sentidos do que se define como currículo, sempre de forma limitada, parcial e localizada historicamente (Lopes; Macedo, 2011).

Nessa mesma linha de pensamento, Silva (2011) salienta que não há uma única significação de currículo, pois conceituá-lo depende exatamente da forma como ele é concebido pelos diferentes autores e teorias. Para o autor, “uma definição de currículo não nos revela o que é, essencialmente, o currículo: uma definição nos revela o que uma determinada teoria pensa o que o currículo é” (p. 14). Mas, numa análise atenta à história das teorizações curriculares, Lopes e Macedo (2011) identificaram um terreno comum de concepções que define o currículo como um “plano formal das atividades/experiências de ensino e de aprendizagem, a preocupação com administração, em algum nível centralizada, do dia a dia da sala de aula” (Lopes; Macedo, 2011, p. 21).

Todo plano formal e experiências de ensino e aprendizagem implicam uma seleção daquilo que se entende como mais relevante. De um universo mais amplo de saberes e conhecimentos escolhe-se aquela parte que vai constituir o currículo (Silva, 2011). Essas escolhas se dão a partir dos critérios de seleção estabelecidos pelos grupos que estão em melhores condições de poder de dar sentido e significado ao currículo. Nenhum currículo é um conjunto neutro de saberes que de algum modo aparece nos textos e nas salas de aula de uma nação, mas parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção de pessoas e da visão de grupos sobre o que se considera conhecimento legítimo. Enfim, todo currículo “é produto das tensões, conflitos e concessões cultural, políticas e econômicas que organizam e desorganizam um povo” (Apple, 2011, p. 71).

Nesse sentido, nos questionamos em que medida um currículo comum, ao instituir parâmetros com objetivos e conteúdos previamente definidos, desconsidera as reais necessidades e possibilidades de aprendizados dos alunos de cada comunidade escolar?

Para Apple (2011), ainda que os proponentes de currículos comuns visem à coesão social e possibilitem a melhora das escolas, avaliando-as por parâmetros pretensamente objetivos, o resultado será posto, dada à diversidade de classe social e recursos de cada escola.  

A questão não está em sugerir parâmetros, mas em engessá-los e impor conteúdos de uma proposta curricular que não foi construída pelos membros de cada comunidade escolar, e desconsiderar a singularidade, a realidade local, as reais necessidades de aprendizado dos alunos, assim como suas características sociais, culturais, econômicas, étnicas, pessoais, motoras e sociocognoscitivas. Uma proposta pouco flexível, estranha ao professor e à comunidade escolar, que minimiza a autonomia pedagógica do educador, ao torná-lo mero reprodutor de conteúdos pré-definidos, desestimula a construção social do currículo pelos principais autores do processo de ensino-aprendizagem: os professores e os alunos de cada escola.

A partir dessas reflexões, focalizamos inúmeros sistemas de ensino, públicos e privados que, estimulados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), se lançam na tarefa de elaborar e executar políticas e planos educacionais, Brasil (1996), incluindo nesse contexto de elaboração, propostas curriculares para a Educação Física escolar. Segundo estudo de Tenório e colaboradores (2012), que investigou as propostas curriculares estaduais, nos últimos anos, doze estados e o Distrito Federal criaram propostas curriculares para a disciplina Educação Física, e a tendência é que esta construção de propostas se amplie pelos diferentes sistemas de educação municipal, estadual e federal em todo o Brasil.

No caso específico da rede estadual de educação do Rio de Janeiro, em 2012, foi proposto um documento denominado Currículo Mínimo da Educação Física (CMEF) que apresenta um conjunto de habilidades e competências por anos de ensino que devem estar presentes nos planos de cursos e nas aulas com vistas a orientar os itens indispensáveis ao processo de ensino e aprendizagem da disciplina Educação Física em cada ano de escolaridade e bimestre (Rio de Janeiro, 2012).

A análise dessa proposta curricular possibilitará identificar quais conteúdos foram selecionados e definidos, assim como sua organização e sistematização. O objetivo do estudo foi identificar qual ideologia ou ideologias estão contidas na proposta a partir da análise dos conteúdos da Educação Física, os princípios norteadores, os objetivos, as habilidades e competências a serem desenvolvidas, entre outras questões presentes no documento curricular construído em um momento histórico e contextos únicos. Independente do tempo e período de criação, implementação e vigência do documento analisado, o estudo contribui para suscitar discussões que devem permear as propostas curriculares das diferentes escolas e sistemas de ensino.

Concepção metodológica

O presente estudo, de perspectiva qualitativa, teve como base a análise documental Alves-Mazzotti (2002), realizada em diferentes documentos oficiais que integram e influenciam a implementação da proposta curricular de Educação Física do Estado, e em avisos divulgados no site da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc/RJ).

Desde sua implementação, em 2012, nas escolas da rede estadual de educação, o CMEF tem sido repetida pelos professores da rede, sem nenhuma nova reformulação ou avaliação. Tal iniciativa de reformulação do CMEF ganha força com a promulgação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em 2017, em que os sistemas de ensino devem adaptar suas propostas às diretrizes da BNCC. Nesse sentido, o atual estudo ganha ainda mais relevância, pois pode auxiliar nas reformulações do CMEF pela Seeduc/RJ e pelas diferentes escolas do sistema de ensino estadual.

Este estudo analisou o documento oficial CMEF, que sistematiza, organiza e define os conteúdos da Educação Física nas escolas do sistema estadual de educação do Rio de Janeiro. A análise documental é utilizada como técnica exploratória (Alves- Mazzotti, 2002).

O CMEF foi consultado no site da Seeduc/RJ em 25 de outubro de 2013; ele serviu como orientação curricular aos professores de Educação Física até final do ano de 2019.

A proposta de CMEF, objeto deste estudo, é composta de 16 páginas que incluem apresentação, introdução, eixos temáticos, habilidades e competências de cada ano escolar do Ensino Fundamental II e Ensino Médio, e agradecimentos. É composto por três páginas textuais divididas em apresentação e introdução; e sete páginas que dividem os eixos temáticos, habilidades e competências em sete anos de escolaridade. Cada ano de escolaridade ocupa uma página do documento, sendo dividido em quatro bimestres apresentados em formato de quadros. Após a apresentação dos eixos temáticos, habilidades e competências de cada ano de escolaridade, são apresentados, em uma página, os agradecimentos e os professores que compuseram a equipe de Educação Física, que construiu o CMEF, formada por uma coordenadora, uma articuladora e seis professores colaboradores da rede estadual de educação. Os dados foram analisados e discutidos em duas categorias de análise: Teorias e Conceitos da Proposta; Bimestralização e Eixos Temáticos, que serão analisadas nas seções a seguir.

Teorias e conceitos da proposta

Na apresentação, o documento descreve que o CMEF foi construído em 2012, por equipes de docentes da rede estadual de diferentes disciplinas, coordenadas por professores doutores de universidades do Rio de janeiro.

O documento parece ter sido construído de forma democrática e com possibilidades de adaptação e flexibilidade a cada unidade escolar, de acordo com a condição e necessidade do professor. São apresentados contatos eletrônicos para sugestões, críticas, esclarecimentos e comentários sobre o documento. Na apresentação o documento expõe sua finalidade de

orientar, de forma clara e objetiva, os itens que não podem faltar no processo de ensino e aprendizagem, em cada disciplina, ano de escolaridade e bimestre (...) que esteja alinhada com as atuais necessidades de ensino, identificadas não apenas nas legislações vigentes, Diretrizes e Parâmetros Curriculares Nacionais, mas também nas matrizes de referência dos principais exames nacionais e estaduais. (...) E, principalmente, as condições e necessidades reais encontradas pelos professores no exercício diário de suas funções (Rio de Janeiro, 2012, p. 2, grifos nossos).

O documento demonstra considerar as necessidades identificadas nas leis e diretrizes vigentes, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), exames nacionais e estaduais. Esse alinhamento da proposta curricular às avaliações externas em larga escala, que só contemplam algumas áreas do conhecimento, podem promover certa pressão para que os professores desenvolvam apenas os conhecimentos contemplados nesses exames, o que promove uma hierarquização dos conhecimentos do currículo e acaba fazendo como explica Perrenoud (2003), que as avaliações externas determinem o currículo escolar. Por outra perspectiva, Apple (2011) afirma que a associação do currículo comum às avaliações de larga escala confere às escolas uma espécie de “selo de qualidade” que serve às “forças do livre mercado”, oferecendo ao consumidor um leque de “opções” e ao Estado uma “comissão de vigilância” para controlar os “excessos” do mercado.

Há que se considerar o alinhamento do documento ao que denominaram “condições e necessidades reais encontradas pelos professores” em seus cotidianos escolares que foi constatado por Cupolillo e Copolillo (2013) ao afirmarem que a elaboração do documento contou com a participação de sete professores da rede estadual provindos de diferentes regiões do Estado. Para as autoras, “a diversidade de procedências dos professores da equipe permitiu uma visão mais abrangente das realidades sociais, culturais, econômicas e políticas do Estado” (p. 2). Apesar desse esforço, é necessário nos perguntarmos se e como um currículo que orienta parâmetros comuns para todo o Estado pode dialogar com as diferenças regionais, de classe social, etnia e de recursos estruturais e pedagógicos?

Os princípios da matriz curricular da proposta de Educação Física estão fundamentados no desenvolvimento de competências e habilidades, conforme a proposta, entendidas para além da lógica tecnicista, pois, segundo o documento, as competências representam as “capacidades de trabalhar coletivamente e construir reflexões críticas, despertando o gosto por aprender a aprender ao longo da vida, agindo e reagindo numa multiplicidade de sentidos e significados” (Rio de Janeiro, 2012, p. 3) e as habilidades são conceituadas como “procedimentos e atitudes que complexificam as aprendizagens de conhecimentos escolarizados, religando-os à vida cotidiana” (Rio de Janeiro, 2012, p. 3). 

Apesar de haver uma ressignificação dos termos competências e habilidades para além de concepções eficientistas, como apontado acima, quando o CMEF dá centralidade a exames nacionais e estaduais para inferir a qualidade da educação,

recuperam, assim, o cerne da racionalidade tyleriana – a vinculação estreita entre qualidade do currículo e avaliação dos alunos. Para tanto, reeditam a necessidade de mecanismos que permitam avaliar os alunos e o têm feito com base na definição prévia de competências a serem atingidas, ainda que definam competência de formas diversas. (Lopes; Macedo, 2011, p. 54).

Para Ralph Tyler, a educação deveria estar focada em técnicas eficientistas baseadas na definição dos objetivos de ensino; seleção e criação de experiências de aprendizagens que devem ser organizadas para garantir maior eficiência ao processo de ensino e, por último a avaliação do currículo. Nesse sentido, Tyler estabelece uma relação estreita entre currículo e avaliação ao propor que a eficiência da implementação do currículo deve ser interpretada pela avaliação do rendimento dos estudantes (Lopes; Macedo, 2011).

Entendemos que os termos habilidades e competências têm relação direta com os modelos neoliberais de educação, comandados por instituições como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que como alerta Santomé (2013), exames como o Programme for International Student Assessment (Pisa) condicionam as reformas educacionais de seus países signatários. O autor ainda alerta que muitas reformas de ensino são usadas para mascarar intenções mais ocultas que os governos não querem reconhecer. Nesse sentido, a OCDE acaba por influenciar o entendimento de educação de qualidade o que pressiona as reformas educacionais em diferentes países, como o Brasil.

A proposta curricular estadual coloca-se como um documento, que visa garantir um mínimo de conhecimentos básicos comuns a serem desenvolvidos em toda rede estadual de ensino, sendo “um ponto de partida mínimo – que precisa ainda ser elaborado e preenchido em cada escola, por cada professor, com aquilo que lhe é específico, peculiar, ou lhe for apropriado” (Rio de Janeiro, 2012, p. 2).

A partir do momento em que o documento propõe um ponto de partida, mínimo que seja, e, portanto, homogêneo, contribui para invisibilizar as diferenças construídas nas diversas culturas das diversas regiões do Estado do Rio de Janeiro. Questionamos ainda em que medida esse ponto de partida mínimo e homogeneizador diante do tempo de trabalho docente pode se tornar o único rol de conteúdos possíveis; como afirma Costa (2015, p. 6), “tal proposta para uma disciplina com dois tempos semanais (cem minutos) é relativamente extensa para que se consiga cumpri-lo, já que o mesmo é obrigatório dentro da política de metas da Seeduc/RJ”.

Com isso, é possível inferir que as orientações do currículo prescrito, quando se deparam com a realidade do cotidiano docente, contribui para hegemonizar sentidos comuns, deixando de fora diversas outras manifestações da cultura corporal produzidas em cada região do estado.      

Em seguida, o CMEF expõe seu entendimento de Educação Física Escolar como

um campo de conhecimento que lida com a cultura corporal, como forma de linguagem e expressão, tendo como orientação teórico–prática reconhecer e compreender os jogos, os esportes, as ginásticas, as lutas, as danças e as atividades rítmicas e expressivas como manifestações das dinâmicas de contextos socioculturais diversos (Rio de Janeiro, 2012, p. 3).

O documento afirma também que a Educação Física tem a responsabilidade de problematizar o binômio trabalho e lazer, ao se analisar criticamente as exigências e contradições do mundo do trabalho tensionadas com a noção de lazer como uso produtivo do tempo livre (Rio de Janeiro, 2012) e na interlocução com o campo da saúde, prega que a disciplina amplie sua abordagem “articulando as dimensões biológica, antropológica, sociológica, política e econômica” (p. 3).

Diante das dimensões descritas acima, corroboramos com Tenório et al. (2012) quando afirma que o CMEF não adota claramente uma abordagem pedagógica da Educação Física Escolar, mas ficam claros os indícios, a partir do entendimento de Educação Física Escolar apresentado, que a abordagem crítico-superadora e os PCN influenciam a construção da proposta curricular estadual, na medida em que ambas conceituam a Educação Física como cultura corporal e privilegiam os conteúdos supracitados (Soares et al., 1992; Brasil, 1998), assim como a concepção de saúde abordando-a num âmbito pluridimensional, associada a noções de trabalho e lazer problematizadoras, permitem-nos inferir que tais abordagens se aproximam de perspectivas críticas do currículo. Para Silva (2011), toda teoria pedagógica é uma teoria curricular, logo, inferimos que quando o CMEF sistematiza os conhecimentos da Educação Física de forma padronizada, como a bimestralização de conteúdos, em caráter obrigatório para todo o sistema de ensino do Estado do Rio de Janeiro (Costa, 2015), vai de encontro ao Art. 206 da Constituição Federal, que garante que o ensino seja ministrado com base em vários princípios, dentre eles, no “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”.

Após a análise do documento, percebemos a falta de referências bibliográficas, de textos, obras e autores consultados, que claramente fundamentam os conceitos empregados na proposta. O documento utiliza-se de competências e habilidades e não utiliza a palavra conteúdos. Algumas ideias e autores, mesmo não explícitos na proposta, conseguem ser identificados, como, por exemplo, a abordagem pedagógica crítico-superadora da Educação Física, que defende o conceito de cultura corporal utilizado na proposta. Segundo Soares e colaboradores (1992, p. 50), em um dos principais clássicos sobre a concepção,

a Educação Física é uma prática pedagógica que, no âmbito escolar, tematiza formas de atividades expressivas corporais como: jogo, esporte, dança, ginástica, formas estas que configuram uma área de conhecimento que podemos chamar de cultura corporal.

No entanto, consideramos que se a definição de princípios e ideias norteadoras da proposta fossem colocadas de forma explícita e justificada no documento, facilitaria o reconhecimento do referencial teórico utilizado. No documento, também não encontramos fundamentação nem as referências bibliográficas.

Bimestralização e eixos temáticos

Na sua Introdução, o documento deixa clara a complexidade de uma única proposta atender a diversidade existente nas diferentes unidades escolares por todo o Estado, e propõe um permanente diálogo com o professor, na intenção de dar continuidade à construção da proposta do CMEF.

Apresenta um conjunto de competências gerais e os cinco eixos temáticos do CMEF (esportes, jogos, ginásticas, lutas e atividades rítmicas e expressivas), transversalizados pelas temáticas saúde e lazer. Apesar de a proposta ser idealizada para sete anos de escolaridade diferentes no ensino básico, a proposta conta apenas com cinco eixos temáticos, que se repetem ao longo dos anos de escolaridade, o que, de certa forma, limita a construção de conhecimentos sobre a imensa possibilidade de aprendizados do universo da Educação Física escolar. Por outro lado, a definição de eixos temáticos para além do esporte pode ampliar a prática pedagógica de professores que resumem suas aulas às modalidades esportivas mais comuns e populares entre os alunos (voleibol, futebol, handebol e basquetebol), chamadas pelos professores de “quadrado fantástico”.

Na parte textual, o documento parece se preocupar com as diferenças regionais do sistema estadual de educação, e em propor um conjunto de boas práticas educacionais, porém, ao definir a bimestralização dos anos de escolaridade, o estabelecimento dos eixos temáticos, competências e habilidades que devem ser desenvolvidas com os alunos em cada bimestre, impossibilita a adequação do CMEF ao calendário escolar das diferentes regiões e culturas de um Estado composto por área indígena, quilombola, rural e metropolitana. A definição do que deve ser desenvolvido em cada bimestre tornam inflexíveis as ações pedagógicas em conjunto, como a interdisciplinaridade, por exemplo, ao não permitir a flexibilidade necessária para que professores de diversas disciplinas dialoguem e conjuguem parcerias interdisciplinares a partir de interseções temáticas entre suas disciplinas. Por isso, entendemos que tal organização dos anos de escolaridade em bimestres com as definições do que deve ser desenvolvido pode engessar e limitar a prática pedagógica dos professores e aprendizado dos alunos.

A distribuição dos eixos temáticos nos bimestres, no decorrer dos anos de escolaridade, é algo que chama a atenção, como pode ser verificado no Quadro 1 abaixo, que apresenta os eixos temáticos conforme os anos de escolaridade definidos no CMEF.

Quadro 1: Organização dos eixos temáticos por bimestre no CMEF

Bimestres

1° Bimestre

2º Bimestre

3º Bimestre

4º Bimestre

6º Ens. Fund.

Jogo

ARE

Esporte

Ginástica

7º Ens. Fund.

Jogo

ARE

Esporte

Lutas

8º Ens. Fund.

Jogo

Ginástica

Esporte

Lutas

9º Ens. Fund.

Jogo

Ginástica

Esporte

Lutas

1º Ens. Médio

Esporte

ARE

Jogo

Ginástica

2º Ens. Médio

Esporte

ARE

Jogo

Ginástica

3º Ens. Médio

Esporte

Jogo

Esporte

Ginástica

Em sete anos de escolaridade, o jogo e o esporte são dois eixos temáticos contemplados em todos os anos de escolaridade. As lutas são contempladas apenas nos 7°, 8° e 9° anos de escolaridade. As Atividades Rítmicas e Expressivas (ARE) são contempladas nos 6º e 7º anos do Ensino Fundamental e nos 1ºe 2º anos do Ensino Médio (EM), aparecendo em apenas 4 bimestres no decorrer de 7 anos de escolarização. O esporte no 3º ano do EM chega a ser contemplado em dois bimestres. Tal organização evidencia a predominância do esporte e dos jogos em detrimento dos demais temas da Educação Física Escolar, tão importantes de serem desenvolvidos.

Percebemos na distribuição de eixos temáticos entre as séries e bimestres uma “hierarquização de conhecimentos”, os quais não podem faltar no currículo, e uma possível relação de submissão dos conteúdos com os exames externos à escola, em larga escala, aplicados buscando índices de uma possível qualidade e ranqueamento das escolas e sistemas de ensino. Esses exames, Enem, Prova Brasil, Saeb e Saerj, também são citados em anúncios no site da Seeduc, ao falar sobre a concepção do CMEF. O estabelecimento de habilidades e competências vinculadas a um possível exame, que não garante o real aprendizado dos alunos, pode engessar a complexa e diversa construção do conhecimento em prol de um ensino mecânico. Conforme Perrenoud (2003, p. 26), “o currículo deveria vir em primeiro lugar e a avaliação deveria se encarregar de discernir se ele está sendo assimilado de maneira inteligente e duradoura, para além das rotinas escolares sem se tornar estreitamente dependente de listas de classificação das escolas”. Seguindo o pensamento do autor, não podemos permitir que a avaliação externa à escola defina o currículo e os aprendizados dos alunos.

A Educação Física, tradicionalmente vista como disciplina prática, ainda não é contemplada em muitos dos exames de larga escala, tais como a Prova Brasil e o SAEB. A omissão dessa disciplina nos exames de larga escala, se, por um lado, desvaloriza os conhecimentos da disciplina, por outro lado, não aprisiona e relaciona o aprendizado da área às avaliações externas – o que facilita a diversificação do aprendizado pelos professores que não se sentirão pressionados a desenvolver conteúdos em função de uma avaliação externa e um possível ranqueamento. Interessante ressaltar a seletividade das avaliações externas que exclui a disciplina Educação Física acaba por reforçar o discurso de que disciplinas como Matemática, Língua Portuguesa e Ciências (presentes nas avaliações externas) são as mais importantes no currículo.

Considerações

No presente estudo, objetivamos identificar ideologias contidas na proposta curricular do CMEF a partir da análise dos conteúdos da Educação Física, os princípios e objetivos propostos.

A partir da análise realizada, foram identificados, no documento, elementos que se relacionam ao modelo de educação neoliberal, ao incorporar termos próprios de lógicas empresarias como “competências” e “habilidades”. Uma proposta que engessa os currículos escolares, relacionando-os aos modelos de avaliação externas que desconsideram a realidade de cada contexto escolar, que define o que deve ser ensinado, contribuindo para uma mera reprodução de conteúdos, contribuindo assim também para minimizar sua autonomia pedagógica.

A proposta buscou consolidar uma concepção de Educação Física, em outras palavras, significa defender uma ideia de Educação Física que, nesse caso, pode se tornar homogeneizante a todo um sistema de ensino, que tem características plurais. Mesmo defendendo uma concepção tida como crítica e plural, percebemos certa incoerência, na medida em que o documento incentiva a uniformização de práticas sob a justificativa de propor um ponto de partida mínimo. Essa prática, diante de uma rede de ensino com diferentes realidades, contraria os princípios da pluralidade defendida, que enriquece a prática pedagógica. Vislumbrar que todos os professores, com diferentes vivências e formações, em diversos e distintos cotidianos escolares, com discentes imersos em variadas culturas e com diferentes necessidades, desenvolvam a mesma concepção de Educação Física, parece utópico.

Apesar de o estudo ter-se limitado à análise documental da proposta curricular, foi possível identificar, a partir de outras ações da Seeduc/RJ, como as metas estipuladas às escolas e professores e o controle do desenvolvimento do CMEF através da Conexão Educação (plataforma virtual criada pela Seeduc, em que o professor faz o controle das faltas, de aulas dadas e previstas, notas bimestrais e das habilidades e competências do CMEF desenvolvidas com os alunos (Carvalho Junior, 2015)), uma perspectiva neoliberal que visa a competências mercadológicas, padronização, rendimento e ranqueamento das escolas e desconsidera a diversidade de corpos e culturas que a mesma contempla. A partir de Santomé (2007), aponta que cada vez mais se utilizam vocabulários economicistas na educação, como os termos currículo ou materiais profissionalizantes, produtos ou rendimentos, reestruturação, excelência, eficiência, competitividade, flexibilidade organizativa, entre outros.

A proposta dá margem à classificação das escolas e responsabilização dos professores, caso o entendimento de educação de qualidade baseado em avaliações externas de perspectiva neoliberal não seja alcançado. As competências e habilidades são apresentadas e sistematizadas, cabendo apenas aos professores o desenvolvimento junto aos alunos.

Consideramos os elementos analisados na proposta curricular de extrema importância para que professores e professoras construam suas aulas para além do CMEF, articulando e pensando a proposta de forma crítica e democrática em constante relação com a diversidade cultural presente em cada comunidade escolar, com vistas a uma Educação Física digna, justa, ética e de qualidade.

Referências

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Publicado em 17 de novembro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

CARVALHO JUNIOR, Arlindo Fernando Paiva de; LOPES, Carlos Eduardo Vaz; SALLES, Fabiano Lange. Análise de uma proposta curricular de Educação Física: pontos e contrapontos. Revista Educação Pública, v. 20, nº 44, 17 de novembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/44/analise-de-uma-proposta-curricular-de-educacao-fisica-pontos-e-contrapontos

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