Aula de campo como prática pedagógica para o Dia da Consciência Negra

Monique Pelais de Oliveira

Especialista em Metodologia do Ensino de Geografia (FACI), licenciada em Geografia (Uniube), professora da rede municipal de ensino de Cachoeiro de Itapemirim/ES

Atualmente, a educação brasileira passa por um momento de transição, tendo em vista a necessidade da implementação, na prática de ensino-aprendizagem, de novas tendências pedagógicas e metodologias ativas que considerem o aluno como o centro desse processo, de forma que o estudante se torne protagonista da sua formação.

No decorrer das práticas educativas, veem-se as dificuldades enfrentadas pelos estudantes ao relacionar conceitos sobre a história e cultura afro-brasileira com a sua própria história de vida. A Lei nº 10.639/03, que institui o estudo da história e cultura afro-brasileira, inclui no currículo oficial das redes de ensino e no calendário escolar o dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra, como afirma Lira (2016, p. 2): “a abordagem da diversidade étnico-cultural na escola é importante porque dessa maneira será possível desmascarar visões preconcebidas e discriminatórias, transformando valores e contribuindo com o respeito à diversidade”.

Tratar da cultura de matriz africana no Brasil ainda é um tema polêmico, principalmente quando a temática é abordada em uma escola conservadora. Há ainda preconceito com a diversidade de culturas afrodescendentes, a falta de informação e de conhecimento por parte dos adultos (responsáveis pelos alunos) gera situações difíceis de contornar somente com explicações e projetos dentro da escola. Candau (2010, p. 159) menciona em seus estudos a dificuldade de envolver projetos sobre culturas afrodescendentes no âmbito escolar; segundo a autora,

algumas contribuições dos movimentos negros têm tido uma atuação significativa na esfera pública de seus respectivos países. Um primeiro aspecto refere-se à denúncia das diferentes manifestações da discriminação racial presentes nas sociedades latino-americanas. Nessas realidades, em geral predomina uma ideologia que privilegia os euro-descendentes e a branquidade, inferiorizando e subalternizando os grupos que não podem ser incorporados nesta categoria e suas contribuições para a construção das respectivas sociedades (Candau, 2010, v. 10, p. 159).

A Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017, p. 357) estabelece como primeira competência específica de ciências humanas que os alunos precisam “compreender a si e ao outro como identidades diferentes, de forma a exercitar o respeito à diferença em uma sociedade plural e promover os direitos humanos”. Com base nisso, o presente relato tem como objetivo central evidenciar que a atividade de campo pode possibilitar a quebra de preconceitos e estimular o conhecimento com base na interação do aluno com o meio – nesse caso, a comunidade quilombola de Monte Alegre –, tratando de temas transversais e da interdisciplinaridade, pois toda a escola se mobilizou pela atividade de campo e foi dada a todos os alunos a oportunidade de conhecer uma cultura diferente daquela em que eles estão inseridos. A aula de campo possibilitou aos educandos uma visão prática e teórica sobre como vivem os descendentes de escravos africanos na comunidade quilombola por meio da observação e da interação com o local.

Em meio a esse contexto, o presente relato mostra-se relevante, pois traz a contribuição na perspectiva de uma metodologia de ensino contemporânea, que visa despertar interesse em conhecer e respeitar a diversidade mediante a aula de campo, unindo teorias com práticas de vivência.

Metodologia

Trata-se de uma atividade de campo interdisciplinar realizada com os alunos do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal de Ensino Fundamental Ercy Arruda Bonfim, localizada no Distrito de Camará, município de Muqui, sul do Estado do Espírito Santo. A atividade desenvolveu-se na comunidade quilombola de Monte Alegre, localizada na Zona Rural do município de Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Estado do Espírito Santo, com o objetivo de abranger a temática da educação étnico-racial a partir da Lei nº 10.639/03.

A atividade de campo desenvolveu-se em três momentos: o pré-campo, a atividade de campo e o pós-campo. Esses três momentos foram de grande importância para a melhor compreensão, por parte dos alunos, do tema abordado. A atividade de campo concilia teoria e prática; nesse caso, a visualização da comunidade quilombola por parte dos alunos trouxe grande enriquecimento para a proposta do Dia da Consciência Negra.

A princípio, o projeto referente ao Dia da Consciência Negra aconteceria dentro da escola, como ocorre todos os anos, porém desenvolver aulas fora do ambiente escolar pode contribuir para o desenvolvimento integral do estudante, no que tange ao desenvolvimento escolar, pessoal e social, dentre outros. As professoras da área de Ciências Humanas (História e Geografia) reuniram-se para propor a ideia de levar os alunos para conhecer o Quilombo Monte Alegre, tendo apoio da pedagoga e da gestora, que muito contribuíram para o desenvolvimento e a conclusão do projeto.

Atividade de campo como proposta de intervenção pedagógica

De acordo com Neto (1972, p. 62), “atividade de campo refere-se a um conjunto de ações composto por aula de campo, visita técnica, excursão escolar, viagem de estudo”.

A atividade de campo para o Dia da Consciência Negra surgiu da ideia de ultrapassar as fronteiras do muro da escola, tendo em vista que vários projetos sobre esse assunto já foram desenvolvidos nos anos anteriores; portanto, a aula no quilombo seria algo diferente e novo para nossos alunos, que já tinham conhecimento da importância de relembrar a luta negra no Brasil. A relação de interesse e visualização dos conteúdos com a realidade traz uma condição de aprendizagem social na construção do saber por parte do aluno. A partir do momento em que os alunos visualizam o quilombo e entendem a complexidade da vivência das pessoas daquela comunidade, a forma como trabalham, a história de vida e de luta de seus familiares, eles criam condições de aprender dialogando com a prática; o professor, nesse momento, passa a ser o mediador e o aluno tem a oportunidade de estar em contato direto com a cultura da comunidade, desenvolvendo sua criticidade e, de certa forma, estabelecer relações de afetividade que geram memórias a respeito do assunto.

Momento pré-campo – introduzindo a temática da aula de campo na escola

O momento pré-campo é o preparo dos alunos para o que eles verão fora dos muros da escola. Para que o objetivo central não se perca, é preciso que haja uma abordagem do que será tratado na visita.

Esse momento foi um dos mais importantes dessa aula de campo. Antes de apresentar a proposta para os alunos, a atividade extraescolar foi apresentada aos seus responsáveis em uma reunião de pais; a gestora cedeu a palavra aos organizadores do projeto para que houvesse uma conversa e uma abordagem inicial a respeito do assunto e assim apresentar-lhes o que seria feito fora da escola. Observei que, quando mencionamos a palavra quilombo, muitas pessoas presentes não tinham conhecimento do que se tratava, por isso considero esse momento tão importante, pois os responsáveis por nossos alunos tiraram suas dúvidas e se entusiasmaram com a oportunidade que seus filhos teriam em conhecer um quilombo.

Após a abordagem inicial com os responsáveis, foi a vez de conversar e apresentar a proposta para os alunos. No início, percebemos muitas dúvidas em relação ao que era o quilombo e as pessoas que lá viviam, mas, com o decorrer da conversa, vários questionamentos foram surgindo, como: a) Como é a vida das pessoas do quilombo?; b) Como surgiram os quilombos?; c) Qual a importância da preservação das comunidades quilombolas? Assim, percebemos que os estudantes estavam empolgados, interessados e curiosos para realizar a atividade de campo. Então estabelecemos o que deveria ser observado na aula e montamos um roteiro.

Os alunos ficaram cientes de que essa era uma aula de campo; após esse primeiro momento, que configura momentos de aprendizagem diferentes daqueles vivenciados em sala de aula, propusemos que observassem: a) o local e fizessem suas anotações; b) a forma de interação dos moradores do quilombo; c) a organização do quilombo; d) a diversidade cultural do local, bem como o respeito às pessoas e à diversidade local.

Os pontos mais importantes a serem estabelecidos nesse momento pré-campo foram a observação da comunidade, de como as pessoas viviam e o que elas faziam para manter viva a sua cultura, tendo atenção às danças apresentadas, culinária e a história do quilombo Monte Alegre, contada pelo próprio guia e representante do quilombo.

Atividade de campo - conhecendo o Quilombo Monte Alegre

A aula de campo seguiu o roteiro estabelecido previamente em acordo da escola com o guia do quilombo Monte Alegre; ocorreu da seguinte forma:

Início da aula de campo: assim que chegamos ao quilombo Monte Alegre, fomos direcionados a assistir a uma apresentação de Caxambu, uma dança de origem africana, retratando a forma de vida dos escravos no Brasil. Essa apresentação foi realizada por crianças pertencentes ao quilombo Monte Alegre que se vestiam com roupas coloridas e alegres que remetem às suas origens.

Decorrer da aula de campo: após assistir à apresentação de Caxambu, fomos levados a conhecer a culinária local e usufruir de um café da tarde. Nesse momento, o guia apresentou a culinária local, com produtos como queijo, frutas e hortaliças produzidos por pessoas da própria comunidade, gerando renda para as famílias locais. O guia também contou a história do Quilombo Monte Alegre e a origem da população que forma a comunidade.

Monte Alegre é uma comunidade quilombola localizada na zona rural do município de Cachoeiro de Itapemirim/ES. Suas raízes culturais foram formadas por negros supostamente originários de Angola e escravizados nas fazendas (Boa Esperança, Barra do Mutum e Monte Alegre) do seu entorno durante a segunda metade do século XIX.

Em meados do século XIX, surgiram diversas e importantes fazendas no interior do município de Cachoeiro de Itapemirim/ES, dentre elas a Fazenda Monte Alegre. Historicamente, os seus grandes proprietários foram o senhor Emiliano Pires de Amorim (1850-1915) e posteriormente o seu filho Décio Bello de Amorim (1940-1976).

O senhor Emiliano foi proprietário de muitos escravos. Assim que foram libertos, alguns desses negros compraram pequenas glebas da própria fazenda onde haviam sido escravizados e formaram o que atualmente é denominado de Comunidade Quilombola de Monte Alegre.

Ainda no século XIX, as primeiras famílias quilombolas a adquirir terra em Monte Alegre foram: Verediano, Ventura e Oliveira. Com o passar dos tempos, muitas outras famílias afrodescendentes se mudaram para Monte Alegre, porém os sobrenomes que ainda prevalecem são: Verediano, Ventura e Adão.

Tradicionalmente, a principal renda dos quilombolas de Monte Alegre é extraída de serviços prestados a produtores rurais (não quilombolas) ligados à agricultura (cultivo de café) e à pecuária de gado leiteiro e de corte.

Atualmente, a população local é composta por cerca de 550 quilombolas e busca o seu desenvolvimento através do ecoturismo, do turismo étnico e da participação em projetos de inclusão social e geração de renda. (COMUNIDADE QUILOMBOLA DE MONTE ALEGRE, s/d).

Só para esclarecer, de acordo com Barbosa e Pimenta (2010, p. 2), gleba, “para fins urbanísticos, é um terreno que ainda não foi objeto de nenhuma operação que o caracterize como urbano, como, por exemplo, o arruamento. O parcelamento da gleba provoca alterações em suas dimensões e confrontações, fazendo surgir diversos imóveis menores”.

Após ouvirmos a história, fomos deslocados para a trilha das árvores centenárias, localizada no interior da Floresta Nacional de Pacotuba (Flona de Pacotuba), no limite da comunidade de Monte Alegre, onde observamos a diversidade de espécies de árvores nativas, que possuem sua existência estimada em cerca de 500 anos. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade define assim a Flona de Pacotuba:

A Floresta Nacional de Pacotuba (Flona de Pacotuba), criada pelo Decreto s/nº de 13 de dezembro de 2002, localiza-se no município de Cachoeiro de Itapemirim, sul do Estado do Espírito Santo. Tem como objetivo básico de criação promover o manejo de uso múltiplo dos recursos naturais, a manutenção e a proteção dos recursos hídricos e da biodiversidade, a recuperação de áreas degradadas, a educação ambiental, bem como o apoio ao desenvolvimento de métodos de exploração sustentável dos recursos naturais das áreas limítrofes (Instituto Chico Mendes, 2011, p. 1).

Além de aprender sobre a cultura local, os alunos puderam observar de perto a fauna e a flora que compõem parte do Estado do Espírito Santo; nesse momento, envolvemos as disciplinas de Ciências e Geografia, culminando na proposta do trabalho interdisciplinar do projeto.

Momento pós-campo – reflexões sobre a aula no Quilombo Monte Alegre

Retornando à escola, é o momento de refletir e debater a trajetória da aula de campo. Em sala de aula, os alunos e os professores comentaram os aprendizados adquiridos na aula no Quilombo Monte Alegre. Além do debate e das reflexões, eles também foram instruídos a produzir um relatório destacando suas considerações sobre a visita. Muitas questões foram elencadas pelos alunos:

Marcela, aluna do 8º ano, pontuou a culinária local, que atraiu a sua atenção pelo seu sabor e pelo fato de os produtos serem produzidos pela própria comunidade;

Anderson, aluno do 6º ano, destacou, em seus relatos sobre a dança Caxambu apresentada pelas crianças da comunidade, que ele observou e compreendeu que essa dança é importante para a comunidade quilombola por guardar a sua história e a trajetória de vida de seus antepassados.

Mateus, aluno do 9º ano, evidenciou também os conhecimentos adquiridos na trilha, onde pôde conhecer árvores centenárias de que nem sabia da existência.

Igor, aluno do 7º ano, considerou mais importante a visualização da comunidade quilombola e o modo de vida das pessoas que guardam consigo a sua cultura e toda a sua história.

Considerações finais

A atividade de campo aqui relatada atingiu o objetivo central, que se baseia na observação e aprendizagem dos alunos em ambientes extraescolares. Cabe ressaltar que me surpreendi com o comportamento dos sujeitos analisados no decorrer de toda a atividade de campo, destaco inclusive o interesse deles em aprender na prática o que havia sido trabalhado anteriormente em sala de aula.

Outro ponto importante observado foi a quebra do preconceito que a comunidade onde a escola está inserida teve em relação a comunidade quilombola. Antes da aula de campo, muitos responsáveis e alunos demonstraram aversão à atividade devido à falta de conhecimento a respeito da cultura de matrizes africanas, porém, após o desenvolvimento da aula de campo, os alunos aprenderam pela observação e pelo contato com as pessoas da comunidade quilombola a respeitar as diferenças culturais e religiosas que existem na sociedade.

Por fim, concluo que a atividade de campo é uma excelente metodologia a ser utilizada para desenvolver diversos tipos de conteúdo. Nossos alunos retornaram dessa atividade com entusiasmo e demonstraram gosto por sair dos muros da escola e desenvolver sua criticidade a partir da construção do seu próprio processo de ensino-aprendizagem.

Referências

BARBOSA, Denio Dutra; PIMENTA, Carlos Souza. Loteamento fechado. Revista do Curso de Direito da Unifor, v. 1, nº 1, 2010. Disponível em: https://periodicos.uniformg.edu.br:21011/periodicos/index.php/cursodireitouniformg/article/view/25. Acesso em: 08 jun. 2020.

BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" e dá outras providências. Brasília, 2003.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: competências específicas da área de Ciências Humanas. Brasília, 2017. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=79601-anexo-texto-bncc-reexportado-pdf-2&category_slug=dezembro-2017-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 29 abr. 2020.

CANDAU, Vera Maria Ferrão; RUSSO, Kelly. Interculturalidade e Educação na América Latina: uma construção plural, original e complexa.Diálogo Educacional, Curitiba, v. 10, nº 29, jan./abr. 2010. Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/view/3076/3004. Acesso em: 01 jun. 2020.

COMUNIDADE QUILOMBOLA DE MONTE ALEGRE. Quem somos. Sem data. Disponível em: http://comunidadequilombolademontealegre.blogspot.com/. Acesso em: 30 de abr. de 2020.

INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE.Plano de manejo da Floresta Nacional de Pacotuba, localizada no Estado do Espirito Santo. Vila Velha, 2011, p. 1. Disponível em: https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/imgs-unidades-coservacao/Volume_I_Pacotuba_Junho_2011.pdf. Acesso em: 9 jun. 2020.

LIRA, J. A. Educação para as relações étnico-raciais: desafios docentes para implantação no currículo da escola. In: II CONGRESSO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA – II CINTED. Campina Grande/PB, 2016. Disponível em: http://www.editorarealize.com.br/revistas/cintedi/trabalhos/TRABALHO_EV060_MD1_SA8_ID2252_08092016080958.pdf. Acesso em: 01 jun. 2020.

ZANETTI NETO, G. Práticas de ensino, estratégias de avaliação. Apostila digital. Vitória: IFES, 2019. Disponível em: epciencias.wordpress.com. Acesso em: 2 maio 2020.

Publicado em 17 de novembro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

OLIVEIRA, Monique Pelais de. Aula de campo como prática pedagógica para o dia da consciência negra. Revista Educação Pública, v. 20, nº 44, 17 de novembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/44/aula-de-campo-como-pratica-pedagogica-para-o-dia-da-consciencia-negra

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