Contação de história: alternativa para o letramento literário
José Rogério da Silva
Licenciado em Pedagogia (UFPB), especialista em Gestão da Educação Municipal (UFPB) e em Gestão, Supervisão e Orientação Educacional (UCAM), coordenador de ensino da Prefeitura Municipal de Bayeux/PB
Estamos inseridos em uma estrutura social e pedagógica que admite a contribuição da leitura na formação crítica dos sujeitos; encontramo-nos, porém, com um sistema educacional ineficaz no que concerne à promoção de habilidades leitoras, tão necessárias na sociedade contemporânea. Somos um país de poucos leitores e com baixa proficiência em leitura, basta analisar os dados e indicadores de avaliações externas que compreendemos a ausência de um trabalho voltado para essa formação.
O artigo é pautado pela premissa de que o letramento literário é singular no processo educativo por ir além da simples leitura por prazer, pois “fornece instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito linguagem” (Cosson, 2012, p. 30), desenvolve uma inteligência mais crítica e explora a experiência humana, ao conferir-lhe sentidos. Visualiza-se aí a necessidade de fomentar a leitura literária na escola, pois “não se educa apenas intelectualmente uma criança, existe também uma educação da sensibilidade, que será responsável pelo refinamento das relações humanas” (Queirós, 2012, p. 87).
Acreditando no grande valor da leitura de textos literários para a formação humana, para o desenvolvimento do hábito de leitura de modo a despertar a fruição estética e a proposição de sentido para os textos lidos, este artigo analisa o espaço destinado na Base Nacional Comum Curricular ao texto literário para a etapa do Ensino Fundamental. Para essa discussão, elegemos uma abordagem teórico-crítica que discute o valor da literatura como objeto de apreciação na formação escolar com vistas ao letramento literário.
Abordamos a contação de histórias como estratégia pedagógica que pode enriquecer as atividades escolares, uma vez que as narrativas estimulam a criatividade, a imaginação e a oralidade. As histórias aguçam o prazer pela leitura, promovendo o senso crítico, acentuando os valores e conceitos, colaboram na formação da personalidade da criança, propiciam o envolvimento social e afetivo e exploram a cultura e a diversidade.
Letramento e letramento literário: do que estamos falando?
Principiamos nossa reflexão à base dos estudos de Zilberman (2009), em que se rememora que, a partir do século XVIII, com a materialização de um público leitor ativo, a escola entende o valor de a leitura “ocupar o primeiro plano, em detrimento de outras modalidades de percepção e representação da realidade, vindo a funcionar como a porta de entrada do jovem ao universo do conhecimento” (Zilberman, 2009, p. 22). Assim, segundo a autora, leitura e a escrita foram proeminentes como meio necessário para a vida em sociedade. Ela enfatiza que, apesar disso, até os nossos dias há muitas lacunas de leitura nas escolas do Brasil associadas a diversas questões sociais, principiando pelo sistema educacional. Zilberman (2009) explica que a alfabetização e, sequencialmente,
o letramento associam-se ao ato de ler e, sendo esse resultado o produto mais importante da ação da escola nos primeiros anos de formação de uma pessoa, pode representar também a condição de rompimento não apenas do sujeito, mas também da instituição que propicia a aquisição dessa prática (Zilberman, 2009, p. 28).
A autora sugere a leitura da literatura como uma alternativa possível para esse caso, pois “os suportes da literatura são flexíveis e mutáveis, adaptando-se às novas condições” (Zilberman, 2009, p. 29). Nessa mesma direção, vemos que os estudos sobre letramento aceitam uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. A expressão letramento ainda não foi dicionarizada e deriva do termo em inglês literacy, que significa alfabetização, a competência de ler e escrever, ou melhor, a condição daquele que domina a tecnologia da escrita (Soares, 1998). Segundo Magda Soares (1998), o termo letramento vem do latim, com origem no prefixo littera, que significa letra, escrita; o sufixo mento dá a ideia de ação ou condição; assim, portanto, letramento alude à ação ou à condição de ser letrado, de se tornar letrado.
Conceitua-se ainda contemporaneamente letramento como “como um conjunto de práticas sociais (que usam a escrita), cujos modos específicos de funcionamento têm implicações importantes para as formas pelas quais os sujeitos envolvidos nessas práticas constroem relações de identidade e poder” (Kleiman, 2008, p. 11). O conceito que Kleiman menciona aponta letramento como um conjunto de práticas sociais, ou seja, uma ação que é atingida em sociedade, em grupo, mas não qualquer ação, apenas as que envolvem a escrita, como ler um livro, escrever uma carta, assistir a um filme legendado, navegar na internet e tantas outras atividades que hoje fazem a escrita ser essencial para a interação com o outro. Assim, participar de um acontecimento de letramento é interagir socialmente usando a escrita.
Segundo Zappone (2008, p. 7), o letramento literário, foco da nossa abordagem, “pode ser compreendido como o conjunto de práticas sociais que usam a escrita literária, compreendida como aquela cuja especificidade maior seria seu traço de ficcionalidade”. Salientamos que o conceito de letramento literário abarca não somente os textos/obras contemplados pela cultura letrada. As práticas de letramento literário implicam todas aquelas que envolvem também a escrita literária, sempre caracterizadas pela ficcionalidade. Tendo isso em vista, podemos vislumbrar que os alunos/leitores estarão inseridos em contextos de letramento literário.
Engajando-se nessa perspectiva, a escola é colocada diante de um grande desafio, o incentivo à leitura e o gosto pelo texto literário, culminando consequentemente na formação do hábito de leitura nas crianças. Para tanto, Zilberman (2009) afirma que a escola deve mudar sua abordagem de ensino, entendendo o significado da leitura “como um procedimento de apropriação da realidade, bem como o sentido do objeto por meio do qual ela se concretiza: a obra literária” (p. 30).
Por essa via, compreende-se a literatura como uma alternativa de letramento que, além de alfabetizar o sujeito, incentiva-o ao hábito da leitura, pois é bem conveniente e atrativo aprender palavras e significações a partir de determinado contexto, no lugar de letras e sílabas soltas no quadro. Entende-se então, atualmente, conforme definição de Paulino e Cosson (2009, p. 67), o letramento literário “como o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos”.
Esses autores defendem ainda que, em princípio, o letramento literário será sempre um processo constante de transformação, isto é, uma ação contínua. E, em seguida, que ele será um aprendizado para toda a vida, não finda na sala de aula, se reconstrói e ressignifica a cada leitura, ou seja, revelando o caráter conversacional da leitura, isto é, a cada leitura há uma nova assimilação de conhecimentos e vivências, pois compreendemos a leitura como nossos conhecimentos de mundo e sociedade.
Paulino e Cosson (2009) enfatizam que essas vivências e aquisição de conhecimento do mundo ao seu redor se passam
tanto no plano individual quanto no social, pois o (re)conhecimento do outro e o movimento de desconstrução/construção do mundo contribuem para compor, convalidar, negociar, desafiar e transformar padrões culturais, comportamentos e identidades à medida que nos levam a viver muitas possibilidades de experiência que só a liberdade de um mundo de palavras pode oferecer (Paulino; Casson, 2009, p. 70).
E assim está posta uma provocação à escola, que mais do que nunca é desafiada a propiciar às crianças uma forma de dar significado ao mundo e a elas mesmas. É por isso que os autores consideram o contato com a literatura como fundamental para o desenvolvimento humano e concebem o letramento literário “como o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos” (Paulino; Cosson, 2009, p. 70).
Sob esse prisma, cremos que nas escolas ainda há uso insuficiente desse letramento literário, que elas não consideram de fato a leitura literária, a escrita literária, e que os poucos espaços do currículo escolar que abordam a leitura têm a finalidade de responder apenas a questões de interpretação, as quais não consideram a leitura de cada sujeito. Para consolidar o letramento literário no cotidiano escolar, é indispensável o contato direto e costumaz com o texto literário.
Letramento literário e BNCC: algumas constatações e tantas inquietações
A Base Nacional Comum Curricular é o documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE) (Brasil, 2017, p. 7). Em seu prefácio, o então ministro da Educação, Mendonça Filho, aponta que se “inicia uma nova era na Educação brasileira e se alinha aos melhores e mais qualificados sistemas educacionais do mundo” (2017, p. 2) – uma afirmação que precisa ser analisada, uma vez que não estão explicitadas as referências em Educação no mundo e em que sentido o Brasil pode se inserir nesse conjunto exemplar, tendo em vista sua história, as características locais e as condições de promoção de uma educação de fato qualificada.
Ao familiarizar-se com o texto da BNCC, é possível verificar que a proposta dá continuidade ao que já há nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996; logo, não se inicia uma “nova era” na educação do país. Pelo oposto, a BNCC ratifica algumas perspectivas educacionais já conhecidas e cujos resultados, como sabemos, são insuficientes e muito distantes de uma educação “qualificada”. Dessa forma, o novo texto apenas reforça antigas perspectivas de sistematização da Educação Básica, abandona uma proposição inovadora e que de fato poderia espelhar-se em modelos exitosos de países desenvolvidos.
Nessa perspectiva, a BNCC dá sequência ao projeto educacional dos PCN em diversos aspectos: segmenta o conhecimento em áreas, definindo competências e habilidades a serem desenvolvidas em cada uma delas e indicando, de forma mais indireta, quais conteúdos são imperativos à formação básica. Os PCN para o Ensino Fundamental alistam como áreas de conhecimento: Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais, História, Geografia, Arte e Educação Física. As áreas do conhecimento previstas pela BNCC são: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas.
O documento insiste na ideia de que é preciso haver um currículo comum para “todos”, apresentando um “projeto de uma base unificadora e homogeneizadora, sob o argumento de que a qualidade da educação depende desse projeto” (Lopes, 2018, p. 26).
Especificamente na área de Linguagens, um primeiro aspecto que chama a atenção no texto da BNCC é a divisão da área em apenas quatro componentes curriculares obrigatórios (Língua Portuguesa, Arte, Educação Física e Língua Inglesa). Com a presença da língua estrangeira apenas a partir do sexto ano, ignora-se que, quanto mais precoce for o contato com a língua estrangeira, maiores são as oportunidades de aprendizado adequado de uma segunda língua. Todavia, ainda há a regra de que é obrigatório ensinar inglês nas escolas, expectativa que não se observa no que se refere à Literatura, ausente na qualidade de componente curricular obrigatório.
A inexistência de Literatura como disciplina obrigatória no Ensino Fundamental também não é uma novidade. Na LDBEN, em meados dos anos 1990, ela sequer foi mencionada e, portanto, é ignota como componente do currículo oficial. Depois de duas décadas de LDBEN, nenhum progresso nesse sentido: persiste o desprestígio à formação de leitores de literatura. E essa desvalorização está relacionada à lacuna da Literatura como componente curricular, reforçada ainda pelo desprestígio histórico (e ainda crescente no país) da leitura literária como algo essencial à formação humana e cidadã.
Isso fica evidente na indicação das seis competências específicas da área de Linguagens: em nenhuma delas surge a palavra literatura, o que reforça a tese de que a literatura tem valor menor na proposição de documentos como a BNCC.
1. Compreender as linguagens como construção humana, histórica, social e cultural, de natureza dinâmica, reconhecendo-as e valorizando-as como formas de significação da realidade e expressão de subjetividades e identidades sociais e culturais.
2. Conhecer e explorar diversas práticas de linguagem (artísticas, corporais e linguísticas) em diferentes campos da atividade humana para continuar aprendendo, ampliar suas possibilidades de participação na vida social e colaborar para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva.
3. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao diálogo, à resolução de conflitos e à cooperação.
4. Utilizar diferentes linguagens para defender pontos de vista que respeitem o outro e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, atuando criticamente frente a questões do mundo contemporâneo.
5. Desenvolver o senso estético para reconhecer, fruir e respeitar as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, inclusive aquelas pertencentes ao patrimônio cultural da humanidade, bem como participar de práticas diversificadas, individuais e coletivas, da produção artístico-cultural, com respeito à diversidade de saberes, identidades e culturas.
6. Compreender e utilizar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares), para se comunicar por meio das diferentes linguagens e mídias, produzir conhecimentos, resolver problemas e desenvolver projetos autorais e coletivos (Brasil, 2017, p. 63).
Na esfera das competências do componente Língua Portuguesa, ficam evidentes as orientações para o fazer docente com gêneros textuais, norma padrão, leitura, produção e tratamento das linguagens etc. Entre as linguagens e gêneros, são mencionados os relativos a práticas sociais associadas a textos multissemióticos e multimidiáticos. Sublinha-se a orientação para, a partir de uma abordagem crítica, “produzir e publicar fotos, vídeos diversos, podcasts, infográficos, enciclopédias colaborativas, revistas e livros digitais” (Brasil, 2017, p. 66), argumentando que o contexto contemporâneo não está dissociado dessas práticas digitais que também devem ser inseridas na sala de aula.
O documento não dedica uma atenção distinta, como a que é oferecida ao letramento digital, a práticas de leitura e de apreciação literária como elemento essencial à formação na área de Linguagens. A menção à leitura literária aparece apenas no trecho alusivo à leitura quando a literatura passa a ser agregada a outras atividades. Ou seja, não há realce à formação de leitores de literatura como algo essencial na formação cidadã:
O Eixo Leitura compreende as práticas de linguagem que decorrem da interação ativa do leitor/ouvinte/espectador com os textos escritos, orais e multissemióticos e de sua interpretação, sendo exemplos as leituras para: fruição estética de textos e obras literárias; pesquisa e embasamento de trabalhos escolares e acadêmicos; realização de procedimentos; conhecimento, discussão e debate sobre temas sociais relevantes; sustentar a reivindicação de algo no contexto de atuação da vida pública; ter mais conhecimento que permita o desenvolvimento de projetos pessoais, dentre outras possibilidades (Brasil, 2017, p. 69).
A BNCC não faz referências claras à abordagem da literatura e de seus diferentes gêneros; todavia, quanto aos textos digitais, ela traz em diversos trechos do documento exemplos do que é recomendado trabalhar nas aulas de Língua Portuguesa, como no fragmento que observa a abordagem de reflexão sobre produção e recepção de textos e elenca alguns gêneros textuais: “comentário, carta de leitor, post em rede social, gif, meme, fanfic, vlogs variados, political remix, charge digital, paródias de diferentes tipos, vídeos-minuto, e-zine, fanzine, fanvídeo, vidding, gameplay, walkthroug, detonado, machinima, trailer honesto, playlists” (Brasil, 2017, p. 71).
Outro aspecto que se faz necessário ressaltar na BNCC é a falta de fomento à formação de leitores de literatura aptos a reconhecer processos de produção e recepção de textos literários (como se enfatiza para os textos digitais). Quando a temática é abordada, na segunda menção, se faz de maneira muito tímida; veja-se a referência à literatura na parte de Língua Portuguesa no item Adesão a Práticas de Leitura: “Mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura, textos de divulgação científica e/ou textos jornalísticos que circulam em várias mídias” (Brasil, 2017, p. 72). “Mostrar-se interessado” não corresponde a compreensão, análise, avaliação de textos literários e estabelecimento de relações de textos literários com outros objetos. Não sugere reconhecimento da peculiaridade da linguagem literária, da estética do texto e da proposição de significado para o que é lido, tampouco para a sentido da leitura para o aluno e para sua compreensão do mundo, ações que recomendariam zelo à educação literária.
Pelo que se vislumbra na BNCC, portanto, meramente basta “despertar o interesse pela literatura”, contudo, sem desenvolver a habilidade de leitura crítica de textos literários. Melhor dizendo, não é necessário formar leitores literários, dando à leitura literária um espaço secundário se contraposto ao espaço dedicado aos gêneros textuais digitais, apenas para exemplificar. A BNCC ignora a potencialidade do texto literário como objeto capaz de promover pensamento crítico e interesse pela leitura, indo na oposição do que já se concebe há tempos como funções da literatura na formação básica do aluno.
No documento, a terceira menção à literatura surge em uma abordagem rasa dela na Educação Básica quando destaca a necessidade de articulação da diversidade de objetos, nos quais são citados os textos literários infantis e juvenis em meio a uma proposta de trabalho relativo a culturas, quanto à
consideração da diversidade cultural, de maneira a abranger produções e formas de expressão diversas, a literatura infantil e juvenil, o cânone, o culto, o popular, a cultura de massa, a cultura das mídias, as culturas juvenis etc., de forma a garantir ampliação de repertório, além de interação e trato com o diferente (Brasil, 2017, p. 73, grifos meus).
Assim, a escola se depara com a probabilidade de perda da oportunidade de o aluno conhecer a literatura e identificá-la como indispensável à sua formação não somente como leitor, mas sobretudo como sujeito e cidadão. A gradual diminuição do espaço dedicado à leitura literária nos documentos oficiais que referenciam a Educação brasileira, a exemplo da recente BNCC, é um prejuízo à formação humana da criança brasileira, à sua preparação e à aquisição de competências imprescindíveis para a vida em comunidade, como as conexas à habilidade de ler, analisar e interpretar textos, relacionando-os com o mundo interior e exterior.
A contação de história: estratégia para o letramento literário
Logo, vemos a necessidade da abordagem da literatura no processo de formação da criança brasileira, ou seja, o letramento literário, que Paulino e Cosson (2009) definiram “como processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos” (p. 67). Cosson (2014) explica que o letramento literário é um fenômeno dinâmico, que não se encerra em um saber ou prática delimitada a um momento específico, mas a apropriação significaria um modo singular de construir sentidos através do literário em uma comunidade de leitores, e é esse exercício que nos torna humanos.
Nessa perspectiva, Abramovich (1997, p. 16) destaca o quão importante é para a “formação de qualquer criança ouvir muitas, muitas histórias. Escutá-las é o início de aprendizagem para ser um leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente infinito de descoberta e de compreensão do mundo”. Assim, cabe ao professor criar estratégias pedagógicas e metodologias para uma práxis significativa do letramento literário.
Assim, vislumbramos na contação de histórias uma importante contribuição para o processo de ensino-aprendizagem, pois ao utilizar diferentes recursos didáticos, como ler as histórias juntos, de formas diversas e representá-las por meio da oralidade, fazer leitura e escrita de textos, desenhos, ilustrações, dramatização com fantoches, histórias em sequências e músicas, o aluno aproxima-se da leitura de forma prazerosa, visto que
sensibilizar consiste em impressionar, envolver, gerar interesses e promover estímulos positivos. É na interação entre o contador de histórias e os leitores iniciantes que no primeiro momento haverá a disposição dos alunos para que estes estejam receptivos à contação de histórias, promovendo-se a empatia entre as partes envolvidas na atividade (Gomes, 2003, p. 79).
Desde os tempos remotos e ainda hoje, a necessidade de dar sentido à vida, buscar explicações para nossas inquietações, transmitir valores de geração para geração tem sido a motivação do ato de contar, ouvir e recontar histórias.
A contação de histórias é atividade própria de incentivo à imaginação e ao trânsito entre o fictício e o real. Ao preparar uma história para ser contada, tomamos a experiência do narrador e de cada personagem como nossa e ampliamos nossa experiência vivencial por meio da narrativa do autor. Os fatos, as cenas e os contextos são do plano do imaginário, mas os sentimentos e as emoções transcendem a ficção e se materializam na vida real (Rodrigues, 2005, p. 4).
Por isso a importância do ato de contar histórias para crianças no espaço escolar; para elas, na maioria das vezes as histórias podem possibilitar a compreensão do mundo no qual vivemos. De acordo com Garcia (2003, p. 10),
“Era uma vez...” tem sido a senha para se entrar no maravilhoso mundo dos contos, mitos, lendas e fábulas. Basta que alguém diga essas três palavrinhas mágicas que o encanto acontece, e nós, adultos e crianças, como que hipnotizados, esperamos que o contador prossiga sua narrativa. Por que isso acontece? Porque, ao ouvirmos uma história, temos a possibilidade de refletir sobre a vida, sobre a morte, sobre nossas atitudes e escolhas.
A contação de histórias é uma atividade básica que transmite saberes e valores; sua prática é decisiva na formação e no desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem da criança. As crianças que têm contato com histórias desenvolvem a imaginação, a capacidade de discernimento, o senso crítico e a criatividade. Por meio das histórias, as crianças são impelidas a fantasiar, criar, imaginar; tudo isso a partir das ideias lançadas pelo “contador”. Segundo Silveira (2008, p. 30),
os benefícios de uma contação de histórias são apontados como um importante auxiliar na formação das crianças, na compreensão e assimilação dos significados, assim como no desenvolvimento das práticas leitoras. As crianças que escutam as histórias incorporam uma atitude analítica exemplificada pelo orador, por meio de seus comentários e problematizações durante a contação de histórias, permitindo o desenvolvimento do seu senso crítico. Admitimos, também, que a leitura de histórias em voz alta constitui uma oportunidade favorável ao desenvolvimento do vocabulário; o contexto verbal das histórias, assim como a entonação e o ritmo do leitor, constituem uma fonte rica para o desenvolvimento da leitura e da escrita.
Nesse conjunto, a contação de histórias pode ser entendida como uma maneira de alcançar o livro, a leitura literária. Quanto à atividade por si mesma, ela nunca é vista como satisfatória e, assim, não é valorizada pela escola, a não ser na Educação Infantil. Além disso, não são apreciadas outras formas de contar histórias que não seja a contação originada de obras de autores clássicos da literatura infantil, como os casos ou relatos de experiência vivida, os filmes, os raps etc. Trabalhar na ótica da contação de histórias a partir desses “letramentos vernaculares” pode ser um elo (ainda em construção) para o letramento literário.
Sendo a escola a mais expressiva fomentadora de letramento, o espaço escolar é o ambiente onde mais se manifesta a leitura de textos literários, o lugar onde se arranjam modos especiais de ler esses textos seguindo as pressuposições acadêmicas. Tais abordagens não têm alcançado o seu objetivo, já que os alunos do Ensino Fundamental apresentam grandes dificuldades de leitura e interpretação. Se ponderarmos que os alunos que concluem o 5º ano não são capazes de ler e compreender textos, sendo literários ou os mais diversos gêneros, em algumas situações eles podem ser considerados iletrados. Para dar um exemplo: segundo a última aferição do SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), dos 2.167.360 alunos do 5º ano do Ensino Fundamental que foram submetidos ao exame, apenas 21% (518.445 alunos) tinham um nível de leitura considerado avançado, ou seja, além da expectativa; 35% (836.803 alunos) eram proficientes ou tinham o aprendizado esperado. Quase a metade do alunado brasileiro não adquiriu a habilidade de ler e interpretar textos.
Considerações finais
No decorrer de nossa discussão, ficou evidente que a escola é um espaço privilegiado para a formação de leitores, porém o desafio com uma didática que contemple a leitura literária é imenso, em virtude da necessidade urgente de formar leitores críticos e autônomos capazes de apropriar-se dos textos literários e a eles inferir sentidos. Isso nos faz pensar em como estamos abordando a leitura literária na escola, qual nossa colaboração efetiva para o letramento literário dos nossos estudantes.
Por certo, o caminho a ser percorrido é árduo e deve ser construído coletivamente. A escola precisa promover práticas que coloquem o letramento literário em lugar privilegiado, uma vez que é diferente dos outros letramentos, pois direciona ao domínio da palavra a partir dela mesma. Logo, a leitura literária “passa a ser o processo de formação de um leitor capaz de dialogar no tempo e no espaço com sua cultura, identificando, adaptando ou construindo um lugar para si mesmo, um leitor que se reconhece como membro ativo de uma comunidade de leitores” (Cosson, 2012, p. 120).
Como estratégia pedagógica que objetive o letramento literário, buscamos a contação de histórias como atividade potencialmente fomentadora e multifacetada do ponto de vista das diversas aprendizagens que podem ser proporcionadas. Pudemos compreender que a contação de histórias está intimamente ligada ao incentivo à leitura, ao desenvolvimento, por parte da criança, do gosto pela leitura, de conhecer e se encantar por histórias e conhecimento. Nesse sentido, a prática da contação de histórias é uma forte aliada para o letramento literário e, consequentemente, para a formação dos sujeitos.
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Publicado em 17 de novembro de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
SILVA, José Rogério da. Contação de história: alternativa para o letramento literário. Revista Educação Pública, v. 20, nº 44, 17 de novembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/44/contacao-de-historia-alternativa-para-o-letramento-literario
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