Problematizações acerca da letra a ser usada para alfabetizar: um convite à reflexão do professor alfabetizador

Luciana Castro Oliveira Machado

Doutora em Educação (UFJF), professora da rede municipal de Juiz de Fora/MG

A aprendizagem da leitura e da escrita denota ao professor, principal medidor pedagógico, papel relevante. Fundamentalmente cabe a ele o papel de planejar estratégias de ensino para que o processo ocorra de forma produtiva. Nesse sentido, cabe esclarecer que a defesa feita neste artigo tem como premissa a aprendizagem como resultado da ação do aprendiz, sendo a lógica construída pelo aluno que define o ponto de partida para as situações de ensino planejadas pelo professor. Para tanto, em consonância com Weisz (2009), muitos são os conhecimentos necessários para interpretar adequadamente o que está acontecendo com a aprendizagem do aluno e, a partir daí, organizar situações propulsoras de novas construções. Com efeito, “o professor precisa de conhecimento que é produzido no território da ciência” (Weisz, 2009, p. 24) para fundamentar uma prática consciente e compromissada com a aprendizagem, o que denota lugar central à formação docente.

Sobre isso, é relevante destacar que uma amostra nacional apresentada na pesquisa realizada por Gatti e Barreto (2009) evidenciou sérias lacunas na formação docente, em especial na formação do alfabetizador. De acordo com as pesquisadoras, a maioria dos cursos destinados à formação inicial dos professores da Educação Básica tem poucas disciplinas voltadas para a alfabetização e, quando oferecidas, são ministradas por professores que, pela distância do cotidiano escolar, não abordam a discussão de como alfabetizar as crianças, tratando a disciplina de forma reduzida ao discurso teórico.

Os estudos de Menezes et al. (2014) trazem dados que confirmam essa preocupante situação. As pesquisadoras recordam-se de que, ao acompanharem a política de alfabetização no município de Sobral/CE, no início dos anos 2000, constataram que não havia proposta estruturada de formação inicial que contemplasse a alfabetização. Na realidade hodierna, embora exista na formação inicial disciplina com foco na alfabetização, é optativa aos futuros professores.

A vivência de Magda Soares, que desde 2007 realiza um trabalho voluntário de desenvolvimento profissional de professores e de busca de melhoria da qualidade da educação na rede pública de ensino de um município mineiro, converge com os dados evidenciados por Gatti e Barreto (2009) e com a problemática sinalizada por Menezes et al. (2014).

Em Lagoa Santa, frequentemente eu me surpreendia com quanto de essencial as professoras não sabiam a respeito do processo de alfabetização e letramento, a verdadeira revelação que era para elas compreender os processos cognitivos e linguísticos que seus alunos experimentavam tentando aprender a ler e a escrever, e como as dificuldades que crianças enfrentavam eram muitas vezes geradas por ausência de uma orientação adequada e pertinente que elas não tinham fundamentos para dar (Soares, 2014, p. 171).

A situação retratada por Soares (2014) e apresentada por pesquisadores como Gatti e Barreto (2009) e Menezes et al. (2014) desvelam que há uma lacuna na formação inicial. Em decorrência, a formação continuada docente assume caráter compensatório. Nesse cenário, percebe-se a urgência no redirecionamento da formação docente, em especial do professor alfabetizador.

Com base nessa consideração, em propostas de ensino que favoreçam a aprendizagem de todas as crianças, a proposta deste artigo é revisitar alguns preceitos em torno da aprendizagem da língua escrita, em especial tecer apontamentos sobre o tipo de letra a ser usado no processo inicial dessa aprendizagem. A expectativa que nutre esta discussão é a de contribuir com o debate de modo a auxiliar e sustentar decisões tomadas pelo alfabetizador que, infelizmente, inclusive por falhas em seu processo formativo, pode não ter tido a oportunidade de refletir sobre as implicações de suas escolhas pedagógicas. Assim, espera-se que as discussões que este texto fomenta possam alimentar reflexões capazes de subsidiar práticas exitosas quanto aos procedimentos didático-pedagógicos do fazer alfabetizador e, portanto, favorecer condições para a aprendizagem.

Notas sobre a aprendizagem inicial da língua escrita

A partir da ótica de quem faz uso frequente do material escrito, pode parecer que tecnicamente a alfabetização seja algo natural ao ser humano. No entanto, essa percepção equivocada traz muitos prejuízos ao ideal de garantia do direito à aprendizagem e, portanto, à inserção plena do indivíduo na sociedade.

Desse modo, longe do engano “adultocêntrico”, a aprendizagem da língua escrita envolve a apropriação individual de uma invenção cultural acerca dos sons da fala que implica um ensino sistemático, porque a apropriação do sistema de representação exige a construção de relações abstratas, pautadas fundamentalmente em dois aspectos bastante complexos. Um deles diz respeito à arbitrariedade do processo de tornar os sons visíveis aos olhos sob forma de traços culturalmente denominados letras. Sobre isso, Soares (2016, p. 38) esclarece que se refere à

fixação da fala em representação gráfica, transformando a língua sonora – do falar e do ouvir – em língua visível – do escrever e do ler. Esse processo de representação da cadeia sonora da fala na forma gráfica de escrita constituiu uma tecnologia que envolve a aprendizagem do sistema alfabético-ortográfico e das convenções que governam o usos desse sistema.

Com base nessa consideração, o alfabetizador precisa ter conhecimentos específicos a fim de conduzir procedimentos que sejam capazes de favorecer a aprendizagem dos alfabetizandos na construção da conversão da cadeia sonora em letras.

O outro aspecto refere-se à compreensão de que essa representação não se relaciona ao conteúdo semântico das palavras. Emília Ferreiro evidenciou, ao estudar a psicogênese da língua escrita, que uma das lógicas das crianças é pautada no estabelecimento da ideia de que o registro da forma gráfica tem relação direta com o seu significado. Dessa forma, em geral, o aprendiz acredita que palavras grandes designam coisas grandes e palavras pequenas designam coisas pequenas. Essa lógica foi denominada “Realismo Nominal”. Especificamente sobre isso, vale a pena consultar as obras de Emília Ferreiro, em especial Reflexões sobre Alfabetização (1994), e de Magda Soares (2016). Deslocar-se dessa percepção é um dos desafios iniciais que se coloca ao aluno; portanto, deve ser um dos centros de preocupação do alfabetizador.

Importante considerar que o ensino inicial da língua escrita deve ter como condição estruturante os usos sociais do material escrito. Com efeito, espera-se que ele seja sistematizado a partir do trabalho com diferentes gêneros textuais em diferentes contextos comunicativos. Ademais, é relevante considerar ainda que o caminho percorrido pelo aprendiz envolve saber usar o lápis, apropriar-se da convenção do alinhamento da escrita no papel e do desenho correto das letras.

Em linhas gerais, os preceitos apresentados desvelam o quanto a alfabetização encobre diversas operações complexas. Nesse contexto, se para o alfabetizador a tarefa de ensino dessa especificidade é grandiosa, essa aprendizagem não é um desafio menor para o educando. Não dimensionar esse fator pode ser um dos motivos que vêm ocasionando a dificuldade da escola em alfabetizar seus alunos.

Com base nessa compreensão, é possível afirmar que a necessidade do ensino sistematizado dos aspectos técnicos voltados para a alfabetização implica dilemas pedagógicos a serem enfrentados pelo professor. Dentre eles destaca-se a escolha da letra a ser usada para alfabetizar. Ainda que para essa questão não exista uma resposta definitiva, alguns apontamentos podem conduzir a uma escolha mais assertiva de modo a favorecer o processo de aprendizagem inicial da língua escrita.

Com que letra devo alfabetizar?

A escolha da letra que marcará o início da sistematização da alfabetização é de fundamental importância, pois pode ser um instrumento capaz de facilitar ou inibir o processo de aprendizagem. Pensando nisso, adotar no momento inicial da alfabetização o uso da caixa alta pode ser uma tentativa de respeitar o desenvolvimento do aprendiz. Não que eles devam ser isolados das outras formas de traçado, até porque isso seria uma proposta no mínimo utópica em uma sociedade grafocêntrica como a nossa. O que se espera é que, embora se conviva com diferentes tipos, a letra em caixa alta seja a de referência do trabalho do alfabetizador, porque a letra em caixa alta, por questões viso-motoras, exige menos empenho se comparada a outras letras, como a cursiva por exemplo. De acordo com as ideias de estudiosos da área, como Ferreiro (1994), começar a alfabetização com a letra em caixa alta é uma tentativa de respeitar a sequência do desenvolvimento visual e motor da criança. É que, devido ao seu traçado mais grosseiro, essa letra favorece que as crianças se concentrem nos aspectos funcionais da língua escrita, o que não é pouca coisa.

Nessa discussão, é preciso considerar que ter a letra em caixa alta como referência para o trabalho pode favorecer no alfabetizando a percepção da letra como uma unidade, o que pode implicar a compreensão de que cada letra representa um som. Além disso, pode ser uma ação capaz de poupar as crianças da energia gasta devido à preocupação com os movimentos e possíveis complicações motoras que o desenho de outras letras possa gerar. Os estudos de Ferreiro (1994) e Soares (2016) sugerem que as crianças tenham inúmeras oportunidades de focar no “o que escrever” e “com quais letras escrever”. Portanto, por não exigir sofisticação motora, por se apresentar de forma uniforme no tamanho – o que desloca, inclusive, a preocupação dos aprendizes da posição correta das hastes superiores e inferiores – a letra em caixa alta apresenta-se como um recurso da alfabetização que precisa ser considerado.

No contexto atual, cabe problematizar a postura de muitas escolas em relação ao aligeiramento da alfabetização, que vem sendo tratada como um produto de prestação de contas aos responsáveis pelas crianças ou aos órgãos públicos sem a devida preocupação com a forma de condução desse processo. Em meio a esse cenário, a ideia de estar tecnicamente alfabetizado pressupõe a adoção da letra cursiva, ainda que os aprendizes não tenham sequer dado conta dos códigos da escrita.

Faz parte dessa linha pedagógica a defesa do uso da cursiva desde o início do processo porque diminui as chances de a criança ter dificuldade para depois usar outra letra. Soma-se a isso a ideia de que o uso da cursiva faz com que a escrita seja mais rápida, já que o traçado dessa letra não demanda tirar o lápis do papel a toda hora. Quanto a isso, é preciso ponderar: qual o sentido de levar a criança em processo inicial de construção da lógica do sistema de escrita a preocupar-se com os movimentos da cursiva? Escrever mais rápido é um ato mais importante que escrever com segurança e autonomia?

É preciso ressaltar, mais uma vez, que não se trata de negligenciar o uso da letra cursiva. Ao contrário. Justamente em nome da autonomia do alfabetizando, o uso do material escrito deve ser apresentado e usado nas mais diversas formas. Conjuga-se a isso a importância dessa letra como uma das formas de trabalhar a segmentação das palavras. No entanto, em respeito ao desenvolvimento do aluno, ela deve pautar o trabalho sistemático da alfabetização com as crianças alfabéticas, ou seja, com as que já têm a lógica do sistema de escrita organizado. As afirmações de Carvalho e Conboy (2013) acerca dos estudos de Piaget viabilizam o esclarecimento de que, quando os alfabetizandos acomodam o esquema central da alfabetização, terão como assimilar dados novos – por exemplo, o uso da letra cursiva. Do ponto de vista do desenvolvimento humano, uma aprendizagem precisa estar acomodada para a assimilação de novos elementos ao conhecimento.

Com base nessas considerações, fica o convite para o professor alfabetizador repensar os fundamentos de suas ações pedagógicas, rever suas estratégias e reconsiderar a alfabetização como um processo que requer tempo, portanto, paciência e muito conhecimento no direcionamento da escrita produzida pela criança à escrita convencional. O sucesso dessa tarefa implica escolhas seguras e ações simples; contudo, essas escolhas não são pouco importantes, já que podem propiciar condições propulsoras que assegurem o prosseguimento nos estudos e condições efetivas de participação social.

Referências

CARVALHO, Carolina; CONBOY, Joseph. Desenvolvimento cognitivo e da linguagem. In: VEIGA, Feliciano H. (Coord.). Psicologia da Educação: teoria, investigação e aplicação. Envolvimento dos alunos na escola. Forte da Casa: Climepsi, 2013. p. 67-119.

FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 1994.

GATTI, B. A.; BARRETO, Elba de Sá (Coords.). Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília: Unesco, 2009.

MENEZES, Lídia Azevedo de; FILHO, Nicolino Trompieri; BRAGA, Adriana Eufrásio. Avaliação dos orientadores de estudo do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), Polo Iguati, Ceará. II CONGRESSO NACIONAL DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES. XII CONGRESSO ESTADUAL PAULISTA SOBRE FORMAÇÃO DE EDUCADORES. 2014. Anais... Disponível em: http://unesp.br/anaiscongressoeducadores/ArtigoAnterior?id_artigo=3267&id_evento=31. Acesso em: 24 nov. 2017.

SOARES, Magda. Formação de rede: uma alternativa de desenvolvimento profissional de alfabetizadores/as. Cadernos Cenpec, São Paulo, v. 4, nº 2, p. 146-173, dez. 2014.

______. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2016.

WEISZ, Telma. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo: Ática, 2009.

Publicado em 17 de novembro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

MACHADO, Luciana Castro Oliveira. Problematizações acerca da letra a ser usada para alfabetizar: um convite à reflexão do professor alfabetizador. Revista Educação Pública, v. 20, nº 44, 17 de novembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/44/problematizacoes-acerca-da-letra-a-ser-usada-para-alfabetizar-um-convite-a-reflexao-do-professor-alfabetizador

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