Flanar é conhecer a alma da cidade

Rosangela Guerra

Mestranda em Educação e Formação Humana (FaE/UEMG), jornalista (Faculdade Cásper Líbero)

Tudo começou com um trabalho do curso de mestrado em Educação que tinha como proposta viver a experiência de flanar pela região central de Belo Horizonte/MG. A ideia era apurar os sentidos para perceber a diversidade das pessoas, os sons, os cheiros, as cores, os movimentos das ruas e também os vazios e os silêncios que marcam aquilo que já não existe mais nessa cidade que tem apenas 123 anos. A nossa turma, por sugestão da professora doutora Lana Mara de Castro Siman, buscava ver aquilo que se torna quase imperceptível no dia a dia, como a flor que rompe o asfalto descrita por Drummond no poema A flor e a náusea: “Sua cor não se percebe, suas pétalas não se abrem, seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor.” Para fazer o trabalho, seguimos em grupo pela avenida Afonso Pena com uma calma que irritou quem vinha atrás de nós: “Ah! esse povo que não anda e que não deixa a gente andar”, reclamou uma mulher.

Flanar (do verbo francês flâner) é passear, perambular com os passos desacelerados. Voltaire, Flaubert e Baudelaire eram adeptos dessas caminhadas que iluminam o espírito. Mas não se pode falar em flanar sem ouvir João do Rio, pseudônimo do escritor e jornalista Paulo Barreto. No início do século XX, ele vagava pelo Rio de Janeiro para conhecer “a alma das ruas” e escrever suas reportagens. Dizia que flanar  “é ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem”.

E não é que fui contaminada? Não faz tanto tempo, mas já posso sentir os efeitos disso e dizer que o meu cotidiano ganhou novos hábitos. Como flanar pede leveza para bater pernas e asas por aí, logo descobri que minha carga era pesada demais. Então, tirei os excessos que eu punha na mochila para ter movimentos livres. Já que uso o carro cada vez menos, a rua me espera. E assim, sempre que possível,  invento trajetos para explorar a paisagem e aproveitar a cidade onde vivo desde a infância. É um tempo para coisas inúteis, sem nenhum objetivo a cumprir, como fazer exercício físico, consumir ou qualquer outra coisa.

Inspirada por Tom Jobim, gosto de ver a chuva caindo nas roseiras da Praça da Liberdade e de sentir a “perna do vento” roçando meus cabelos. Às vezes,  subo  com os olhos, andar por andar, até chegar ao topo dos prédios antigos. Outras, tento acompanhar com os pés os desenhos nas calçadas portuguesas. Já reconheço alguns personagens dos lugares por onde ando. Escuto trechos de conversa aqui e ali que me seguem como ecos distantes. Irreverentes e andando em bandos, os jovens fazem nascer em mim um sorriso de pura simpatia. Impossível passar impune ao lado dos moradores de rua, cada um com seu cobertor e sua história. Como não se indignar com a invisibilidade de toda essa gente perante o governo?

Flanar é também se indagar, é refletir sobre o que observamos e sentimos. Penso nas perdas e nos ganhos do progresso e da modernidade e isso me faz questionar: como seria uma cidade boa para todos? Entre uma divagação e outra, sento-me num banco da Praça da Savassi. As nuvens me dizem que a chuva vai demorar um pouco mais. Enquanto isso, meus olhos acompanham o vai e vem das pessoas. Por um instante me vem à cabeça uma frase de Paulo Freire: “A cidade somos nós e nós somos a cidade”.

Publicado em 24 de novembro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

GUERRA, Rosangela. Flanar é conhecer a alma da cidade. Revista Educação Pública, v. 20, nº 45, 24 de novembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/45/flanar-e-conhecer-a-alma-da-cidade

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