O jogo Ímã Orgânico como ferramenta didática no ensino de Química
Felipe Vitório
Doutor em Química (UFRRJ), especialista em Docência na Educação Básica (CPII), professor da Seeduc/RJ
Ana Paula de Oliveira Amorim
Doutora em Ciências, professora da Seeduc/RJ
Carlos da Silva Lopes
Doutor em Química, Professor (CPII – Tijuca II)
Desde a Antiguidade a humanidade se interessa por desafios lançados através dos jogos, pois entre suas finalidades temos prazer, divertimento, liberdade, voluntariedade, motivação, aprendizagem e socialização. O jogo faz parte do contexto histórico das civilizações desde tempos remotos; Platão e Aristóteles propuseram a utilização dos jogos como forma de aprender brincando, bem como os romanos, para formar cidadãos e soldados qualificados a partir de jogos de forma física (Cunha, 2012).
A utilização dos jogos a partir do século XVI foi objeto de incorporação à vida de jovens e adultos como elementos educativos, sendo usados também nos colégios da ordem jesuítica, passando pelos séculos XVII a XIX como fator importante e enriquecedor no modelo de educação da criança, sendo ainda destinados ao ensino de Ciências. No século XX, Piaget sugeriu que os jogos proporcionam contribuição intelectual nas crianças, e Vygotsky acrescentou que não deviam ser descartadas as suas experiências concretas (Gonzaga et al., 2017; Cunha, 2012).
Mesmo sendo proibido na Idade Média, o jogo foi uma constante em todas as civilizações, sendo uma forma de unir a cultura dos povos à sua história, ao sagrado, ao mágico, ao amor, à arte, à língua, à literatura, aos costumes e à guerra (Gonzaga et al., 2017).
Diante de inúmeras vantagens da utilização dos jogos no processo de ensino e aprendizagem, não se pode deixar de salientar as diferentes características que abrangem o jogo como didático, como as ações lúdicas, cognitivas, sociais e educativas, que permitem aos participantes desenvolver habilidades como concentração, organização, manipulação e cooperação, mas principalmente, trabalhar um conteúdo programático relacionado à disciplina em curso. Além disso, os jogos didáticos, de forma geral, melhoram a interação professor-aluno e aluno-aluno, devido ao trabalho em conjunto. Essa interação muitas vezes auxilia o desenvolvimento da aprendizagem de conteúdos e conceitos (Vygotsky, 1989).
Métodos de aprendizado ativo e interativo são destacados nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (Brasil, 1999, p. 52) e apontam como sugestão, dentre outras opções, o desenvolvimento de atividades lúdicas nas quais o aluno deve se sentir desafiado pelo jogo do conhecimento e não somente pelos outros participantes.
Os PCN+ da área de Ciências da Natureza, Matemática e suas tecnologias (Brasil, 1999, p. 56) destacam o papel dos professores e os benefícios da utilização dos jogos no processo de apropriação do conhecimento. O professor tem papel importante na aplicação dos jogos, pois é condutor e orientador da atividade, que tem como objetivo melhorar o aprendizado do aluno (Gonzaga et al., 2017; Lima et al., 2011; Cunha, 2012).
De acordo com relatos descritos por Eliana Moraes de Santana, a citação mais antiga de um jogo data de 1935, seguindo-se muitos outros trabalhos publicados (Santana, 2012; Suleiman, 2015). Os jogos abrangem uma gama vasta de assuntos, como ácidos e bases, tabela periódica e funções orgânicas, dentre outros temas; podemos citar alguns jogos de Química: Supertrunfo de Química, Ludo Químico, Memória Orgânica, Bingo Químico, Trilha Química, Clube de Química etc. (Lima et al., 2011; Vitório, 2017; Francoet al., 2018).
Objetivo
O objetivo desse trabalho foi desenvolver, aplicar e avaliar a contribuição do jogo didático Imã Orgânico na disciplina de Química, em uma turma de 3º ano do Ensino Médio Regular no Colégio Estadual José Maria de Brito, em Itaguaí/RJ.
Metodologia
Este jogo consiste em um painel de metal e peças imantadas compostas de átomos e tipos de ligação covalente que permitem a construção de grupos funcionais presentes em diversas funções orgânicas. Na atividade, os alunos se dividiram em grupos com até cinco componentes O professor sorteava uma função orgânica e um aluno de cada grupo, por vez, tinha tempo para montar, no painel, utilizando as peças imantadas, o grupo funcional correto. O grupo que realizasse a tarefa corretamente em menor tempo ganhava o jogo.
Figura 1: Aluno jogando o Ímã Orgânico durante a aplicação da atividade
Ao término da atividade, um questionário, em escala Likert, foi aplicado. As perguntas foram colocadas na lousa e as respostas dos alunos computadas em planilha. Esse modelo foi desenvolvido por Rensis Likert (1932), sendo muito utilizado para mensurar atitudes no contexto das ciências comportamentais. A escala de verificação de Likert consiste em tomar um construto e desenvolver um conjunto de afirmações relacionadas à sua definição, para as quais os respondentes emitem seu grau de concordância.
Participaram da atividade 35 alunos, de um total de 45 da turma. Os participantes deram sua opinião em relação ao jogo e ao conteúdo trabalhado na forma de atividade lúdica. Quando a avaliação não era satisfatória, foi solicitado ao aluno que fizesse um breve comentário. Na aula seguinte todos os alunos da turma, participantes e não participantes do jogo, foram submetidos a uma avaliação formal no sentido de identificar se houve alguma melhora no aprendizado dos alunos. A avaliação foi aplicada como um teste com 10 questões objetivas.
Resultados e discussão
Desde o começo das atividades, os alunos demonstraram grande entusiasmo e interesse, pois se tratava de uma atividade nova, diferente da proposta tradicional, o que despertou maior predisposição ao aprendizado; também foi possível observar muita competitividade e interação entre os componentes dos grupos.
Durante a aplicação do jogo, os alunos foram capazes de relacionar os conceitos básicos de Química Orgânica e ligação química com base nos átomos e nas ligações disponíveis para montar as funções orgânicas. Para Moreira (2006), a aprendizagem ocorre quando conceitos novos se associam a conceitos que o indivíduo já possui. Os conceitos abordados pelo jogo já tinham sido trabalhados na série ou módulo, o que facilitou o desenvolvimento da atividade e dinamizou a aplicação do jogo (Castro; Frasson Costa, 2011).
A Tabela 1 apresenta as médias ponderadas das respostas ao questionário dos alunos em relação ao jogo.
Tabela 1: Análise dos resultados das respostas ao questionário, em escala Likert, quanto ao jogo
Quanto ao jogo |
1 |
2 |
3 |
4 |
5 |
Média |
---|---|---|---|---|---|---|
Concentração Desafio Habilidade Objetivo |
-- -- -- -- |
-- -- -- -- |
02 11 04 01 |
28 13 -- 01 |
05 11 31 33 |
4,08 4,00 4,77 4,91 |
Regras |
-- |
-- |
-- |
02 |
33 |
4,94 |
Apresentação |
-- |
-- |
02 |
04 |
29 |
4,77 |
Sociabilidade |
-- |
-- |
02 |
32 |
01 |
3,97 |
Valores: 1 = Discordo totalmente; 2 = Discordo parcialmente; 3 = Não concordo nem discordo;
4 = Concordo parcialmente; 5 = Concordo totalmente.
A análise do questionário realizado em escala Likert mostrou que a maioria dos alunos considerou o jogo como desafiador, que exige habilidade, tem objetivos e regras claras, bem apresentado e promove socialização. O jogo estimulou a participação dos alunos durante a aula, o que pôde levar a uma melhora do conhecimento dos discentes em relação ao conteúdo trabalhado, além de se mostrar uma alternativa para atuar como um elemento facilitador no processo ensino-aprendizagem.
Alguns alunos avaliaram que o jogo não precisa de tanta habilidade para sua execução, o que é totalmente aceitável e normal para todo jogo, pois a característica habilidade no jogo didático está relacionada ao conhecimento do aluno sobre o conteúdo trabalhado, o que justifica esse resultado. Mesmo assim, a análise dos dados mostra uma avaliação positiva para o jogo com valores entre 3,97 e 4,94, em que uma avaliação totalmente positiva seria 5,0. Esses resultados são importantes, pois fortalecem a utilização de jogos didáticos como importante ferramenta no processo ensino-aprendizagem, tendo o professor como moderador do processo, propondo melhorias para que todos os alunos tenham o melhor aproveitamento possível. Um dos comentários entre os alunos foi sobre habilidade; muitos consideraram que era preciso ficar mais atento às aulas já ministradas para conseguir jogar o jogo com mais habilidade, destacando assim a importância e a atratividade de atividades lúdicas educativas durante todo ano letivo.
A Tabela 2 apresenta as médias ponderadas das respostas ao questionário dos alunos em relação ao conteúdo trabalhado. Dois alunos tiveram dificuldade de se adaptar ao jogo, para executar as atividades propostas, além de entenderem que o jogo não poderia ser adaptado a outro tema na área de Química. Diante de um grupo de 35 alunos, esse resultado é excelente, pois os jogos didáticos não são a solução para todos os problemas do processo ensino-aprendizagem, tendo que se buscar outras ferramentas didáticas para sanar as deficiências desses alunos, mas se destacam como tal, assim como atividades experimentais entre outras (Pinto et al., 2020).
Tabela 2: Análise dos resultados das respostas ao questionário em escala Likert quanto ao conteúdo trabalhado
Quanto ao conteúdo |
1 |
2 |
3 |
4 |
5 |
Média |
---|---|---|---|---|---|---|
Abordagem Objetivo Motivação Aplicação |
-- -- -- -- |
-- -- -- 02 |
02 01 -- -- |
03 03 02 03 |
30 31 33 30 |
4,80 4,85 4,94 4,74 |
Adaptação |
-- |
02 |
-- |
01 |
32 |
4,80 |
Valores: 1 = Discordo totalmente; 2 = Discordo parcialmente; 3 = Não concordo nem discordo;
4 = Concordo parcialmente; 5 = Concordo totalmente.
A melhora no aprendizado dos alunos foi avaliada em um teste com 10 questões objetivas sobre o conteúdo trabalhado, comparando alunos que participaram e que não participaram do jogo, pois sete alunos faltaram e três não quiseram participar no dia da aplicação do jogo. Vale ressaltar, neste momento, que o conteúdo de funções orgânicas já havia sido trabalhado a partir de aulas formais antes da aplicação do jogo didático. O resultado está apresentado na forma de gráfico, como mostra a Figura 2.
Figura 2: Comparativo das notas de participantes e não participantes do jogo
O aproveitamento dos alunos que participaram do jogo foi bastante significativo no teste sobre os conteúdos trabalhados de Química Orgânica, pois 80% dos alunos tiveram notas entre 7-10, 14% com notas entre 5-6,9, e apenas 6% com notas entre 0-4,9, ou seja, 94% dos participantes do jogo ficaram acima da média 5,0. Entre os alunos não participantes, 47% tiveram notas abaixo da média, 33% com notas entre 5-6,9, e 20% com notas entre 7-10. Vários fatores podem justificar esse resultado, como a dificuldade de aprendizagem, a falta de interesse e problema extraescolar; porém, de certa forma, pode-se concluir que, olhando sob a ótica dos alunos participantes, o jogo apresentou influência positiva sobre a aprendizagem do conteúdo, o que refletiu num melhor resultado na avaliação.
Considerações finais
Neste trabalho, percebeu-se que a utilização de jogos didáticos promoveu melhor participação e socialização dos alunos, o entendimento dos conteúdos e a relação aluno-professor, o que culminou em um melhor resultado na avaliação formal aplicada. Os resultados sugerem, além das aulas tradicionais, que pode ser positivo promover ambientes de aprendizagem, como a aplicação de jogos didáticos, em que a participação ativa do aluno seja ampliada, a fim de estimular a motivação e a sociabilidade, melhorando o processo ensino-aprendizagem.
O jogo desenvolvido se mostrou uma ferramenta de ensino eficiente para a fixação do conteúdo funções orgânicas, o que se pode perceber pelo excelente resultado na avaliação formal.
O uso da avaliação em escala Likert foi bastante significativo, pois, além de ser de fácil aplicação, conseguiu medir com clareza o pensamento dos alunos sobre o jogo aplicado e o conteúdo abordado.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. Brasília, 1999.
COSTA, J. F. da. Mensuração e desenvolvimento de escalas: aplicações em administração. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2011.
CUNHA, M, B. Jogos no ensino de Química: considerações teóricas para sua utilização em sala de aula. Química Nova na Escola, v. 34, p. 92-98, 2012.
CASTRO, B. J. de; FRASSON COSTA, P. C. Contribuições de um jogo didático para o processo de ensino-aprendizagem de Química no Ensino Fundamental segundo o contexto da aprendizagem significativa. Revista Electrónica de Investigación en Educación en Ciencias, v. 6, nº 2, p. 25-37, 2011.
FRANCO, D. F. P.; COSTA, R. G.; VITÓRIO, F. A química das drogas: uma abordagem didática para o ensino de funções orgânicas. Educação Pública, v. 18, 2018.
GONZAGA, G. R.; MIRANDA, J. C.; FERREIRA, M. L.; COSTA, R. C.; FREITAS, C. C. C.; FARIA, A. C. O. Jogos didáticos para o ensino de Ciências. Educação Pública, v. 17, nº 7, 2017.
LIKERT, R. A technique for the measurement of attitudes. Archives in Psychology, v. 140, p. 1- 55, 1932.
LIMA, E. C.; MARIANO, D. G.; PAVAN, F. M.; LIMA, A. A.; ARÇARI, D. P. Uso de jogos lúdicos como auxílio para o ensino de Química. Educação em Foco, v. 3, p. 1-15, 2011.
MOREIRA, M. A. A Teoria da Aprendizagem Significativa e sua implementação em sala de aula. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2006.
PINTO, M. C. F.; AMORIM, A. P. O.; CARNEIRO, E. S.; VITORIO, F. Uso do aplicativo Google Maps como recurso tecnológico no lançamento de foguetes da MOBFOG 2019. Educação Pública, v. 20, nº 42, 2020.
SANTANA, E. M. de. O uso do jogo Autódromo Alquímico como mediador da aprendizagem no ensino de Química. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
SULEIMAN, A. R. As concepções de alunas de Pedagogia sobre a teoria e a prática do uso de jogos matemáticos. Revista de Educação, Ciências e Matemática, v. 5, nº 3, 2015.
VITÓRIO, F. DNA no ensino de Biologia e Química. Educação Pública, v. 17, 2017.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
Publicado em 01 de dezembro de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
VITÓRIO, Felipe; AMORIM, Ana Paula de Oliveira; LOPES, Carlos da Silva. O jogo Ímã Orgânico como ferramenta didática no ensino de Química. Revista Educação Pública, v. 20, nº 46, 1 de dezembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/46/o-jogo-ima-organico-como-ferramenta-didatica-no-ensino-de-quimica
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.