Cinema e culturas infantis: as contribuições de Jojo Rabbit para pensar a infância

Flávia Martinelli Ferreira

Doutora em Educação (UnB), mestre e licenciada em Educação Física (Unicamp), professora da Faculdade Anhanguera de Campinas/SP

Diversos temas são contemporaneamente abordados por meio da linguagem cinematográfica, que trata, a partir de um olhar artístico, tanto de assuntos cotidianos como daqueles incomuns. O presente texto tem como objetivo analisar o filme Jojo Rabbit (2019) e, com base nessa obra, contribuir para a valorização das culturas infantis nas narrativas cinematográficas para pensar a educação das crianças, especialmente admitindo o olhar delas como elemento central para o entendimento do objeto apresentado.

Passados 80 anos desde a exibição de O grande ditador, em que Charlie Chaplin oferece uma sátira sobre o fanatismo e os regimes ditatoriais, Jojo Rabbit reutiliza a ferramenta para suscitar novas reflexões em seus espectadores. O longa-metragem retrata a Segunda Guerra Mundial por meio do olhar de um menino alemão (interpretado por Roman Griffin Davis) obcecado pela juventude nazista.

É interessante notar que o cinema vem retratando as percepções das crianças como ponto de partida para o entendimento de momentos de efervescência política. Nas últimas décadas, encontramos exemplos de narrativas infantis sobre como as crianças experimentam o luto, o abandono, as adversidades, alegrias ou a riqueza. Destacamos ainda que as crianças protagonizaram outras produções, como A culpa é do Fidel, da diretora Julie Gravas; Pelos olhos de Maisie, dos diretores Scott McGehee e David Siegel; o filme argentino Infância clandestina, de Benjamín Ávila; além do longa O menino do pijama listrado, que retrata o mesmo período e é dirigido por Mark Herman.

Na obra resenhada, somos instigados a conhecer uma representação da Segunda Guerra Mundial a partir das experiências de vida do protagonista, Johannes Betzler. O filme do neozelandês Taika Waititi é baseado no romance Caging Skies (O céu que nos oprime, originalmente de 2019, lançado somente em 2020 no Brasil), de Christine Leunens. No livro, o jovem não consegue receber a simpatia de seus leitores, sendo retratado como uma pessoa cruel que faz escolhas cada vez mais perturbadoras. O leitor pode acompanhar a infância de Jojo Rabbit até o terceiro capítulo do livro – que tem 28 no total. Ou seja, no decorrer do livro, Jojo é reconhecido na maior parte da obra como um jovem. No momento em que a ideologia nazista ocupa sua cidade, seu antigo professor da escola é substituído. Também na escola Jojo aprende uma nova história narrada por sua professora, que insere cotidianamente na vida das crianças a ideologia nazista, como quando sugere quais livros podem ou não ser lidos pelas crianças.

Por outro lado, ao contrário do retratado no livro, Taika Waititi optou por uma sátira sobre a indigência dos afetos sobretudo na infância, a partir de uma situação inusitada: um menino que tem Adolf Hitler como seu amigo imaginário. Logo nas primeiras cenas do filme, Jojo vive a grande aventura de participar de um acampamento para crianças da Juventude Hitlerista. O menino, que permanece com dez anos no longa-metragem, é apaixonado por suásticas, quer entrar para o clube e adequar-se aos preceitos do grupo nacionalista pró-nazista que tem como intuito formar e integrar as crianças.

O final de semana no acampamento acaba para Jojo Rabbit ainda nos primeiros minutos do filme, quando ele explode uma granada ao seu lado, atestando sua falta de jeito para as tarefas que lhe são designadas. Depois desse episódio, o menino auxilia o grupo pró-nazista em tarefas mais simples, como colagens de cartazes e a busca de metal para a produção de novas armas. A partir desse momento, Jojo passa a narrar de modo peculiar suas interpretações sobre o período vivido.

O interesse do menino pelo grupo nos leva a refletir sobre a relação das crianças com seus pares. Sarmento (2004) e Corsaro (2009) cunharam o termo “cultura de pares” para delinear essas relações sociais. Entendidas como “um conjunto de atividades ou rotinas, artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem e partilham na interação com seus pares” (Corsaro, 1997, p. 114), as culturas de pares sugerem apropriação, reinvenção e reprodução de culturas do mundo nos quais as crianças estão inseridas. Os grupos infantis são organizados, portanto, com base em valores e objetivos comunitários, partilhando tempos, ações, representações e diferentes emoções.

Corsaro (1997) auxilia ainda a pensar como as crianças são inseridas em nossa sociedade. Para ele, as crianças não apenas imitam ou reproduzem, mas participam de processos de criação e transformação culturais. Portanto, temos as crianças como capazes de se apropriar do mundo de forma ativa, produzindo culturas infantis e elaborando novas proposições. Com isso, os espaços e tempos de socialização na infância não consideram esse um período de dependência dos adultos, mas sim processos criativos de “reprodução interpretativa” (Corsaro, 1997).

Quando retornou do acampamento, Jojo descobriu que sua mãe está ajudando uma jovem judia escondida no sótão de sua casa. Esse encontro leva o menino a confrontar seus ideais, dividido entre sua amizade imaginária com Hitler e a nova, que será construída ao longo da trama com a menina. É justamente essa alternância de sentimentos que apresenta aos espectadores a construção social dos saberes da criança sobre alemães e judeus, narrados sob a ótica infantil.

Nesse sentido, a amizade com Hitler representa uma possibilidade de manter-se em seu mundo idealizado. Sempre que Jojo se aproxima da menina, é a figura de Hitler, seu amigo imaginário, que relembra os ideais nacionalistas que devem ser acatados e reproduzidos pelo menino.

A partir das contradições vividas pelo protagonista, o filme é capaz de retratar com maestria como as diferenças não estão previamente estabelecidas, mas são produzidas pelos adultos e pelas crianças. Significa dizer que a forma como lidamos com as diferenças, inclusive com justificativa da supremacia de um povo em detrimento do outro, é também uma construção social.

Compartilho o entendimento de Ortiz (2000), que anuncia que a diferença é entendida como uma categoria explicativa da diversidade cultural. Para o autor, toda diferença é produzida socialmente e é portadora de sentido simbólico e histórico. Se considerado somente seu sentido simbólico, corre-se o risco de isolar-se num relativismo pouco consequente. Afirmar o sentido histórico da diversidade cultural, por outro lado, significa submergi-la na materialidade dos interesses e dos conflitos.

Posto isso, as diferenças estabelecidas entre os seres humanos são relações sociais (Silva, 2009). Se é possível encontrarmos diferenciações, estas estão também presentes nas relações de poder. As marcas dessa presença são produzidas em nossa sociedade, segundo o autor, nos inúmeros processos de inclusão e exclusão, nos processos de classificação ou ainda em processos de dominação. A marcação da diferença gera inclusões e exclusões capazes de distinguir o que fica dentro ou fora; do mesmo modo, as classificações hierarquizam grupos e atribuem diferentes valores aos seus membros.

Considerar as diferenciações como produções sociais sugere argumentar a favor de suas possibilidades de alteração, discutindo suas elaborações e os mecanismos que estão envolvidos em sua criação e fixação. Para tanto, podemos adotar estratégias que expliquem estes processos, não admitindo explicações superficiais a respeito de temas (Silva, 2009), como bem retratado no longa-metragem.

Falar sobre a elaboração de significados que são atribuídos às diferenças pelas crianças implica considerarmos que os sujeitos que constituem grupos sociais possuem historicidade e são produtores e produtos de diferentes culturas. O filme, portanto, advoga sobre um tema sério, mas apresenta aos seus espectadores a leveza da interpretação das crianças sobre os acontecimentos históricos. Em que pese a perigosa estratégia de transformar Adolf Hitler em uma sátira que relativiza o mal, fruto da imaginação de Jojo Rabbit, as analogias e reflexões suscitadas pelo longa-metragem não nos permitem esquecer os perigos do nazismo.

No decorrer da obra, as expectativas do menino com relação aos judeus são confrontadas com as características apresentadas pela menina judia escondida em seu sótão. De modo geral, seus desenhos e o imaginário construídos sobre os judeus não são confirmados quando o menino conhece uma judia de verdade.

Como considerou Martins (1993, p. 67) “a alegria da brincadeira como exceção circunstancial é que define para as crianças desses lugares a infância como um intervalo no dia e não como um período peculiar da vida, de fantasia, jogo e brinquedo, de amadurecimento”. Considero, portanto, que tornar-se nazista na infância é também uma metáfora para subtrair – pouco a pouco – a própria infância das crianças, como ocorre de diferentes modos em determinadas sociedades e períodos.

Por não ser um elemento natural ou universal dos grupos humanos, a infância deve ser tomada como um componente tanto estrutural quanto cultural das sociedades (James; Prout, 1997). Nesse ínterim, Jojo Rabbit apresenta intervalos de infância em um período de pouca humanidade na história.

A guerra devastou sua cidade e sua família, restando a Jojo Rabbit as admirações das conversas nas tardes escondidas com a garota judia. Como tudo aconteceu, não houve outra saída a não ser repensar suas afirmações sobre os judeus e desconfiar de sua amizade com Hitler. O diretor e roteirista do filme, Taika Waititi, transformou o material original em uma história mais satírica do que dramática. O principal recurso utilizado foi manter Jojo Rabbit na figura de uma criança. Não retratá-lo como um jovem permitiu à sua obra um tom ameno, justificando com menos terror suas ações. De modo geral, isso faz com que o filme Jojo Rabbit retrate o período vivido, conferindo suavidade à narrativa, inclusive com porções de humor. Ainda assim, como consequência, o desenrolar do filme favorece a constituição de um senso crítico e cultural, ferramentas necessárias para o combate ao fanatismo e ao fascismo.

Por fim, aos interessados, o longa-metragem constitui-se como instrumento importante de análise das culturas infantis. Corrobora, portanto, o surgimento de novas obras que retratam as crianças e as culturas da infância como elementos centrais para o entendimento de temas contemporâneos.

Referências

CORSARO, W. The sociology of childhood. Califórnia: Pine Forge, 1997.

______. Reprodução interpretativa e cultura de pares. In: MÜLLER, F.; CARVALHO, A. M. A. (Orgs.). Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com Willian Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009. p. 31-50.

JAMES, A.; PROUT, A. A new paradigm for the sociology of childhood?: provenance, promise and problems. In: JAMES, A.; PROUT, A. Constructing and reconstructing childhood:contemporary issues in the sociological study of childhood. London: Routledge, 1997. p. 7-33.

JOJO RABBIT. Direção de Taika Waititi. Hollywood: Fox Searchlight Pictures, 2019. (108 min.).

LEUNES, C. Caging skies. United States: The Overlook Press, 2019.

MARTINS, J. S. Massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1993.

ORTIZ, R. Um outro território - Ensaios sobre a mundialização. 2ª ed. São Paulo, Olho d’Água, 2000.

SARMENTO, M. J. As culturas da infância nas encruzilhadas da 2ª modernidade. In: SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. (Orgs.). Crianças e miúdos: perspectivas sociológicas da infância e educação. Porto: Asa, 2004. p. 9-34.

SILVA, T. T. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T. T. (Org.). Identidade e diferença – a perspectiva dos Estudos Culturais. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 73-102.

Publicado em 15 de dezembro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

FERREIRA, Flávia Martinelli. Cinema e culturas infantis: as contribuições de Jojo Rabbit para pensar a infância. Revista Educação Pública, v. 20, nº 48, 15 de dezembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/48/cinema-e-culturas-infantis-as-contribuicoes-de-ijojo-rabbiti-para-pensar-a-infancia

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