Práticas de aventura: relato de experiência em uma escola da Zona Leste de São Paulo

Dimitri Wuo Pereira

Doutor em Educação, Mestre em Educação Física. professor do SESI-SP

Ivan Candido de Souza

Mestre em Educação Física, professor da EMEF CEU Lajeado

O presente relato de experiência teve início em 2009, quando os autores se cruzaram no curso de mestrado em Educação Física na Universidade São Judas Tadeu, em São Paulo. Após a conclusão do curso restaram as sementes, plantadas em nosso imaginário e a necessidade de efetivação das práticas pedagógicas.

Em 2019, um dos autores desenvolveu suas práticas profissionais em duas frentes: na primeira, atua como diretor de escola na rede estadual paulista; na segunda, como professor de Educação Física na rede municipal paulista. O outro desenvolve projetos na área de Educação Física, em sua maioria com as práticas corporais de aventura como mote central. Dos diálogos empreendidos surge a ideia de uma intervenção relacionada à aventura na unidade da EMEF CEU (Centro Educacional Unificado) Lajeado, escola pertencente à rede municipal de ensino, localizada em Guaianazes, extremo leste da cidade de São Paulo.

Educação Física Escolar

Os jogos, as lutas, as danças, as modalidades esportivas e as ginásticas foram alavancados ao posto de temas da Educação Física Escolar por diversos documentos oficiais publicados no Brasil nas esferas nacional, estaduais e municipais. A Base Nacional Comum Curricular por sua vez consolidou o tema da aventura como obrigatório para o Ensino Fundamental II, oficializando esse tópico nas escolas brasileiras (Brasil, 2017).

Antes disso, Pereira e Armbrust (2010) propunham que a aventura poderia contribuir renovando as práticas corporais, principalmente por seu viés do conceito de vertigem (ilinx), criado por Roger Callois e que atribuía um sentido diferente da vertente competitiva à cultura corporal, sugerindo que brincar com o risco e o perigo pudesse proporcionar novas experiências de movimento e aprendizagem. Pedagogizar uma manifestação da cultura equivale a uma espécie de tradução; quanto melhor a tradução, mais o aluno perceberá a essência da manifestação em questão sem que os princípios da Educação Física Escolar sejam escanteados.

As dificuldades encontradas no esforço de transformar uma manifestação da cultura em conteúdo pedagógico remontam à necessidade de implementar sabores aos saberes ora desenvolvidos nas aulas. Mauro Betti (1995), ao resenhar criticamente a obra Da Cultura do Corpo, de Jocimar Daolio (1994), deu pistas sobre o caminho a ser trilhado por pesquisadores da área de Educação Física que se dedicam à sua nuance escolar ao afirmar que os avanços apresentados pela obra indicam que é fundamental levar em consideração as representações sociais dos professores acerca de sua visão de corpo, área de conhecimento e finalidades da Educação.

Para além do apontamento, ele registra os seguintes questionamentos:

Enquanto profissionais da Educação Física, concordamos com os valores que ele (sic) dissemina? Como vamos nos comportar frente a isto? Se existe uma cultura que permanece, e as mudanças são possíveis somente a longo prazo, qual é a responsabilidade dos indivíduos, ou de cada um de nós, hoje? (Betti, 1995, p. 140).

A questão lançada por Betti em 1995 pode ser traduzida como um gatilho para a realização da intervenção pedagógica que será relatada a seguir. Nela, os valores da Educação Física foram revisitados e apropriados ao cenário imagético produzido por dois professores de Educação Física que dedicam suas energias, entre outras coisas, a fazer uma Educação formal propriamente emancipatória. Betti (1995, p. 141) trouxe à tona uma questão que jamais será extemporânea: “qual é a responsabilidade dos indivíduos, ou de cada um de nós, hoje?” A adoção do advérbio de tempo “hoje” carrega a inquietude característica aos professores e professoras que buscam ser mais.

Desenvolver e registrar o desenvolvimento dessas intervenções pedagógicas e divulgá-las, transformando-as em sementes que poderão germinar novas formas de fazer Educação Física na escola, é uma atribuição deste texto.

Relato de experiência

A EMEF CEU Lajeado é uma escola que possui 19 salas por período; é valido esclarecer que na rede municipal de São Paulo os ciclos de ensino são organizados do seguinte modo: Ciclo Alfabetizador (do primeiro ao terceiro ano do Ensino Fundamental); Ciclo Interdisciplinar (do quarto ao sexto ano do Ensino Fundamental); e, por fim, o Ciclo Autoral (do sétimo ao nono ano do Ensino Fundamental) (São Paulo, 2019). Usualmente, as aulas de 45 minutos têm um tempo que se faz interessante para o desenvolvimento de uma ação; no entanto, para que houvesse a possibilidade de atender o maior número de alunos, as oficinas foram organizadas com o tempo máximo de trinta minutos.

Por solicitação da direção da escola, as oficinas foram ofertadas aos alunos do 4º (cinco turmas) e do 6º anos (quatro turmas) do Ensino Fundamental – vale ressaltar que as turmas de 5º ano estudam no período da manhã e que as oficinas foram organizadas no período da tarde pela disponibilidade do autor que trabalha na escola.

Nesse sentido foram elencadas três práticas corporais de aventura: o skate, o slackline e o parkour. O CEU é um local com infraestrutura diferenciada, quando comparada às demais escolas públicas de Educação Básica, com destaque especial para a estrutura física. Graças a isso foi possível organizar as práticas de parkour e slackline em uma quadra coberta, e as práticas de skate em outra quadra sem cobertura. A sistematização da prática se baseou nas propostas de Pereira (2019) sobre as temáticas da cultura corporal.

Figuras 1, 2 e 3: Espaços das atividades de skate, parkour e slackline

O material pedagógico utilizado para a intervenção (skates e fitas de slackline) foi gentilmente cedido por um dos autores deste trabalho, além de materiais que a instituição de ensino já possuía, como bancos, colchonetes e cones.

As oficinas de skate e slackline utilizaram os mesmos instrumentos pedagógicos para sua realização; em um primeiro momento criou-se um ambiente no qual os alunos pudessem se familiarizar com os equipamentos utilizados na oficina; logo após foram apresentadas tarefas incipientes à especificidade de cada prática corporal; em seguida, uma tarefa específica para cada uma das modalidades vivenciadas. Na atividade de parkour, o instrumento metodológico escolhido para a aprendizagem foi um circuito. A seguir serão apresentados mais detalhes.

A começar pelo skate. O primeiro passo foi questionar quais alunos tiveram experiências anteriores com essa manifestação da cultura. De modo geral, poucos alunos se apresentavam como tal; aqueles que o faziam eram convidados a ajudar os colegas que estavam em sua primeira experiência. A seguir foi apresentada uma brincadeira com o objetivo de familiarizar alunos e alunas com o equipamento; a brincadeira foi chamada de Carrinho de Skate.

Figura 4: Atividade de skate

Nessa brincadeira os alunos foram organizados em duplas; um membro da dupla se acomodava sentado no skate e tinha como objetivo manter-se equilibrado, enquanto seu colega calmamente o empurrava até um ponto demarcado na quadra. Ao chegar nesse ponto, os colegas trocavam de posição e repetiam a ação com os papéis invertidos.

A segunda tarefa apresentou como desafio ficar em pé e equilibrado no skate parado. Para execução desse desafio, um dos alunos ficava parado em frente ao skate e oferecia suas mãos para o colega que iria subir no skate se apoiar. Após o aluno conseguir subir e se equilibrar, era adicionado ao desafio soltar as mãos do colega e se manter equilibrado. Após determinado tempo os alunos trocavam de lugar com seus pares.

Figura 5: Experimentando o equilíbrio no skate

Para finalizar a oficina, os alunos foram desafiados a movimentar-se pela quadra utilizando o skate. Como o tempo de oficina era exíguo, não foi possível oferecer desafios suficientes para que os alunos pudessem apreender algumas das técnicas para se locomover com o skate com certa independência. Nesse sentido, esta última tarefa propiciou aos alunos experiências de movimentação em cima do skate com o auxílio dos colegas e, quando possível, sem esse auxílio.

Figura 6: Deslocando-se no skate

Outra oficina realizada neste processo de intervenção foi o parkour. Os circuitos oferecidos propiciaram para a totalidade dos educandos os primeiros contatos com técnicas especificas de parkour. A atividade era cansativa, pois os estudantes seguiam para uma sequência de movimentos de saltar, rolar e deslocar-se em quadrupedia por cima de um banco de forma contínua.

Os alunos apresentaram grande interesse pela temática; no entanto, o pouco tempo para execução não permitiu avançar em novos movimentos e explorações pelos alunos.

Figura 7: Circuito de parkour

A última oficina a ser descrita neste relato de experiência é a que tematizou o slackline. Essa intervenção seguiu os moldes das oficinas de skate. Em um primeiro momento, os alunos foram convidados a subir no slackline e sentir seu corpo em cima da fita com o apoio dos colegas.

Figura 8: Auxílio com bastão no slackline

Em seguida, eram convidados a se deslocar pelo slackline, primeiro com o apoio de dois colegas, um segurando de cada lado, e depois com o apoio de apenas um colega.

A utilização do cabo de vassoura presente na Figura 8 refere-se ao grau de dificuldade que pode ser atrelado à atividade proposta. A ideia é utilizá-lo como apoio para facilitar o equilíbrio daquele que vai se deslocar na fita. Outra opção seria dar a mão, porém dessa forma torna-se mais difícil que a pessoa se concentre no seu próprio corpo e ela acaba escorando-se mais no apoio.

Considerações finais

Após a realização das oficinas houve diferentes momentos de avaliação: o primeiro se deu com os professores que participaram diretamente da intervenção. Além dos autores deste relato, outras pessoas contribuíram para que a ministração da intervenção fosse possível: o professor de Educação Física que divide o período de aulas com um dos autores e dois estagiários que vieram a convite do outro autor. O segundo momento se deu na avaliação com os demais professores da escola, juntamente com a equipe gestora responsável pela unidade escolar. Por fim, uma avaliação junto aos alunos.

O diálogo entre os professores e estagiários que participaram da arquitetura e do desenvolvimento das oficinas girou em torno dos elogios à estrutura física do CEU Lajeado e do pouco tempo para a realização das oficinas. Sobre a estrutura da instituição, evidenciou-se que o CEU como política pública educacional permite o efetivo desenvolvimento integral dos estudantes e que sua localização na periferia de São Paulo ajusta-se à necessidade da população mais carente por espaços de qualidade para receber o melhor que a educação e a cultura podem oferecer ao cidadão. Encerramos a avaliação aventando a possibilidade de efetivar uma parceria com intervenções realizadas uma vez por semestre com temáticas específicas, buscando atender um número maior de alunos e possibilitar o aprofundamento do processo de aprendizagem das técnicas, solucionando assim o tempo curto desta ação educacional.

A avaliação junto aos professores polivalentes que trabalham no EMEF CEU Lajeado e a equipe gestora da escola foi elogiosa, ambos apontaram a dedicação dos alunos às oficinas e o respeito aos combinados relacionados às regras estipuladas para que as intervenções tivessem um bom desenrolar. A equipe gestora da escola salientou a possibilidade de aquisição de materiais e recursos para que novas intervenções sejam realizadas nas aulas regulares de Educação Física.

Por fim, as turmas foram unânimes em apontar o pouco tempo para a realização das oficinas; seus relatos apontavam para as aulas como momentos que deixaram os alunos mais curiosos e com mais vontade de aprender sobre essas práticas corporais. Nesse mesmo sentido, argumentaram que não há em Guaianazes espaços voltados à aprendizagem dessas manifestações da cultura de movimento.

Nas três esferas de avaliação foi possível constatar que a intervenção surtiu efeito positivo junto aos diferentes atores sociais que fazem parte da escola na qual as atividades foram realizadas. O ponto negativo ficou por conta do baixo tempo de realização das atividades; no entanto, como dito anteriormente, a intervenção teve como objetivo lançar sementes, dar novos tons de sabor aos saberes da Educação Física; fica o desafio de um retorno ao EMEF CEU Lajeado para regar as mudas e o compartilhamento desses saberes com a comunidade acadêmica da Educação Física.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Terceira versão revista. Brasília: MEC, 2017.

DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. São Paulo: Papirus, 1994.

PEREIRA, Dimitri Wuo; ARMBRUST, Igor. Pedagogia da aventura: os esportes radicais, de aventura e de ação na escola. Várzea Paulista: Fontoura, 2010.

PEREIRA, Dimitri Wuo (org.). Pedagogia da aventura na escola: proposições para a base nacional comum curricular. Jundiaí: Fontoura, 2019.

SÃO PAULO. Currículo da cidade: Ensino Fundamental – componente curricular Educação Física. 2ª ed. São Paulo: SME/Coped, 2019.

Publicado em 15 de dezembro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

PEREIRA, Dimitri Wuo; SOUZA, Ivan Candido de. Práticas de aventura: relato de experiência em uma escola da Zona Leste de São Paulo. Revista Educação Pública, v. 20, nº 48, 15 de dezembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/48/praticas-de-aventura-relato-de-experiencia-em-uma-escola-da-zona-leste-de-sao-paulo

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.