Reflexões sobre a arte de contar histórias
Rita de Cássia Alves Lopes dos Santos
Professora de Ensino Fundamental II e Médio na rede municipal de ensino de São Paulo, graduada em Letras e Pedagogia; especialista em Ensino de Língua Portuguesa (PUC-SP)
Origem e definição
O ato de contar histórias acompanha a humanidade desde os primórdios. Os homens das cavernas já narravam os acontecimentos do seu cotidiano, como demonstram as inscrições rupestres. Por meio das narrativas, o homem preserva a memória; divulga o conhecimento; compartilha a cultura; exerce religiosidade e prestígio; promove entretenimento; expressa suas emoções e impressões. Muitas narrativas fundamentam-se em tradições populares de diversos povos, inclusive comunidades ágrafas. Contar uma história consiste em apresentar para um público específico uma narrativa que parte de certa leitura de mundo.
Ao longo do tempo, a arte de contar de histórias ganhou recursos para além da oralidade: palco, figurino, música e outros elementos enriquecem a narrativa, envolvendo narrador e espectador numa experiência sensorial. Com os avanços tecnológicos, aumentou o leque de possibilidades. A mesma história pode ser contada de diferentes maneiras, com diversos enfoques e recursos audiovisuais. Entretanto, o excesso de recursos pode distrair a plateia, tirando sua atenção da história. A esse respeito, Fanny Abramovich (1997, p. 18) afirma que “contar histórias é uma arte [...] que equilibra o que é ouvido e o que é sentido, e por isso não é nem remotamente declamação ou teatro [...], é o uso simples e harmônico da voz”.
É uma prática social que favorece a interação. Assim, contar e ouvir histórias são dois lados de uma experiência humana ímpar e essencial. O escritor peruano Mário Vargas Llosa afirma que contar histórias é
uma atividade primordial, uma necessidade da existência, uma maneira de suportar a vida. Para conhecer o que somos, como indivíduos e como povos, não temos outro recurso do que sair de nós mesmos e, ajudados pela memória e pela imaginação, projetar-nos nessas ficções; é refazer a experiência, retificar a história real na direção que nossos desejos frustrados, nossos sonhos esfarrapados, nossa alegria ou nossa cólera reclamem (apud Yunes, 1998, p. 12).
Nessa perspectiva, todo escritor é um contador de histórias. Pessoas que nunca escreveram livros também contam histórias o tempo todo, portanto, cada ser humano pode ser considerado, naturalmente, um contador de histórias. Todavia, este trabalho trata do contador consciente de seu ato, que tem algumas intenções e utiliza estratégias específicas para alcançá-las.
O contador de histórias
As histórias que cada pessoa escolhe para guardar na memória e recontar ajudam a construir sua identidade e a da coletividade. A esse respeito, Larrossa (1999, p. 52) afirma:
O sentido do que somos depende das histórias que contamos e das que contamos de nós mesmos [...], em particular das construções narrativas nas quais cada um de nós é ao mesmo tempo, o autor, o narrador e o personagem principal.
Muitas vezes, a atuação do contador de histórias ultrapassa o prazer de contar e ouvir, adquirindo função social importante. Pode personificar diversos atores sociais, desde líderes religiosos, como xamãs e pajés, que têm a missão de resguardar a memória e o conhecimento de seu povo, até anciãos anônimos, de todos os tempos e lugares, cujas histórias são transmitidas espontaneamente para as novas gerações.
No contexto escolar, o contador de histórias contribui para a formação de leitores, mediadores de leitura, escritores e novos contadores de histórias.
Habilidades necessárias ao contador de histórias
As referências bibliográficas e a prática docente revelam que algumas habilidades do contador de histórias podem contribuir para o êxito de sua atuação.
Apreciar, ouvir e observar
Antes de ser um contador, é necessário ser um apreciador de histórias. É importante atentar para a maneira como as histórias são contadas: a entonação da voz, as pausas, o olhar, a expressão facial, a expressão corporal, os recursos materiais utilizados.
Criar um repertório
É importante que o contador tenha repertório, baseado em diversas leituras e das histórias que traz na memória, com as quais se identifique e sinta o prazer de compartilhar.
Apropriar-se da história
Ao escolher uma história, o contador deve considerar que, além das narrativas da tradição oral, são boas opções os textos literários com narrativas atraentes que fluam com naturalidade, abordando temas relacionados aos interesses do espectador, despertando-lhe prazer e sentimentos que poderão levá-lo à reflexão e ao interesse por outras histórias. Após selecionar a história, o contador deve apropriar-se dela, colocando sua marca na narrativa. A esse respeito, Fanny Abramovich (1997, p. 21) afirma que o contador precisa “sentir o ritmo que cada narrativa pede e até exige”.
Ter clareza da intenção
É importante refletir sobre a história escolhida e a maneira como será contada, considerando maturidade, interesses e preferências literárias do espectador, bem como o contexto. Machado (2004) destaca que a intenção é o que move e dá sentido à experiência de contar histórias.
Uma vez um poeta persa chegou à corte de um rei na Turquia. Levado à presença do monarca, recitou um poema para saudá-lo. Acontece que esse rei não conhecia a língua persa, mas enquanto escutava o poema recitado nessa língua, parecia compreender as palavras do poeta, fazendo sinais com a cabeça e expressões que demonstravam sua compreensão. As pessoas da corte estranharam sua atitude e depois de algum tempo, num momento oportuno, um dos cortesãos perguntou ao rei:
— Majestade, nunca se teve notícia do seu conhecimento do idioma persa. Por que vossa majestade nunca nos revelou que conhecia essa língua?
— Não entendo persa — respondeu o rei.
— Mas como pode apreciar o poema recitado nesse idioma?
— Porque a intenção era clara — respondeu o rei (Machado, 2004, s/p).
Planejar
Estratégias e recursos que serão utilizados devem ser pensados e preparados antecipadamente. Merecem atenção os recursos internos: emoções, voz, olhar e expressão corporal, assim como os recursos externos: ambiente, objetos, efeitos sonoros e outros.
Interagir com o espectador
O ato de contar histórias é essencialmente interativo. Segundo Machado (2004, s/p),
o contador não pode ter a expectativa de 'silêncio absoluto' ou querer antes de mais nada 'contar a história até o fim', do modo como a preparou, 'custe o que custar'. Estar presente no instante da narração é dialogar com o que surgir, sem ter sido previsto, revertendo os acontecimentos a favor da história.
Praticar
Como tudo na vida, as habilidades para contar histórias aprimoram-se com a prática. A melhor técnica será aquela em que a maneira escolhida para contar a história selecionada harmoniza intenção, ritmo da narrativa e recursos (internos e externos), a fim de garantir a melhor interação com o espectador.
As narrativas
As histórias contadas mundo afora geralmente fundamentam-se em narrativas da tradição oral, que fazem parte da cultura de diversos povos: cantigas, poemas, lendas, fábulas, apólogos, parábolas, contos populares ou folclóricos, contos de assombração, contos de esperteza e contos de fadas, entre outros.
Conforme quem conta, a época e o contexto, as narrativas recebem interferências. Cada vez que uma história é contada é também recriada. Assim, o contador torna-se coautor da história. Tal fenômeno está ilustrado na obra O gato malhado e a andorinha Sinhá:
A história que a manhã contou ao tempo para ganhar a rosa azul foi a do gato malhado e da andorinha Sinhá; ela a escutara do vento, sussurrada com enigmática expressão e alguns suspiros – a voz plangente. Eu a transcrevo aqui por tê-la ouvido do ilustre sapo-cururu que vive em cima de uma pedra, em meio ao musgo, na margem de um lago de águas podres, em paisagem inóspita e desolada. Velho companheiro do vento, o eminente sapo-cururu contou-me o caso [...]. Se a narração não vos parecer bela, a culpa não é do vento nem da manhã, muito menos do sapiente sapo-cururu, doctor honoris causa. Posta em fala de gente não há história que resista e conserve o puro encanto; perdem-se a música e a poesia do vento (Amado, 2010, p. 26).
Muitos escritores elaboram obras literárias a partir das narrativas da tradição oral e nelas também deixam sua marca. A origem desse tipo de escrita remete a nomes como Jean de La Fontaine, que em 1668 publicou o primeiro livro de fábulas, gênero literário cuja origem é atribuída às narrativas populares da Grécia antiga, divulgadas por Esopo e Fedro; Charles Perrault, que publicou o livro Contos da mamãe gansa (1697), inaugurando o gênero literário conto de fadas. Nesse gênero, também merecem destaque a obra dos irmãos Grimm e a de Hans Christian Andersen.
A respeito dos contos de fadas tradicionais, é relevante citar que originalmente trazem narrativas que abordam violência e diversos tabus. Nesse sentido, Bettelheim (2018) defende que tais narrativas ajudam a criança a lidar com conflitos pessoais. “Num conto de fadas, os processos interiores são exteriorizados e se tornam compreensíveis e representados pelas personagens da história e por seus incidentes” (Bettelheim, 2018, p. 35). No livro A psicanálise dos contos de fadas, esse autor apresenta as histórias como eram contadas nos primeiros registros, argumentando que se trata de questões inerentes ao ser humano, o que explicaria o grande fascínio das crianças diante de algumas personagens. Também considera que a saga do herói é um aspecto importante nesse gênero literário: a busca das origens, o enfrentamento de problemas, a superação dos obstáculos para atingir o sucesso, simbolizando o desenvolvimento da criança. Brenman (2012, p. 211), corroborando o pensamento de Bettelheim, afirma acreditar "na importância das histórias que toquem em assuntos que reflitam os sentimentos das crianças, tais como amor, ódio, medo, tristeza, solidão". Tanto Bettelheim quanto Brenman reprovam a pasteurização da literatura infantil, que chamam, respectivamente, de histórias "fora de perigo" e "politicamente corretas".
No Brasil, há importantes pesquisas das narrativas populares do país, merecendo destaque o trabalho de Luís da Câmara Cascudo. Também há obras literárias de diversos gêneros influenciadas por narrativas da oralidade popular. É o caso das obras de Monteiro Lobato, Ariano Suassuna, Ricardo Azevedo e outros. Da mesma forma, Malba Tahan, Regina Machado, Ilan Brenman e outros publicaram obras influenciadas por narrativas da tradição oral de povos de diversos países, enquanto na obra de Marina Colasanti evidencia-se a influência dos contos de fada.
Contação de histórias e formação de leitores
A leitura pode ser definida como uma prática social de caráter histórico, político e cultural, que envolve a interação entre o leitor e o autor, possibilitando a construção do sentido do texto, como aponta Soares:
Leitura [...] é interação verbal entre indivíduos, e indivíduos socialmente determinados: o leitor, seu universo, seu lugar na estrutura social, suas relações com o mundo e com os outros; o autor, seu universo, seu lugar na estrutura social, suas relações com o mundo e os outros (Soares, 2000, p. 18).
Assim, o contador de histórias também participa da interação e deixa sua marca na construção do sentido do texto.
O desafio de formar leitores passa pela necessidade de escolher estratégias que despertem o interesse pela leitura. Segundo Fanny Abramovich (1997, p. 16), “é importante para a formação de qualquer criança ouvir muitas, muitas histórias... Escutá-las é o início da aprendizagem para tornar-se um leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente infinito de descoberta e de compreensão do mundo...”.
Em seu ensaio sobre leitura e formação de leitores, Pennac (1993, p. 13) alerta para a inutilidade de tentar impor a leitura; ele afirma que “O verbo ler não suporta o imperativo”. O autor também aconselha:
Ler em voz alta não é suficiente, é preciso contar também, oferecer nossos tesouros, desembrulhá-los [...]. Escutem, escutem e vejam como é bom ouvir uma história. Não há melhor maneira de abrir o apetite de um leitor do que lhe dar a farejar uma orgia de leitura (Pennac, 1993, p. 124).
Confirmando os pensamentos de Abramovich e de Pennac, a prática mostra que contar histórias é um importante procedimento de mediação da leitura literária. Na minha atuação, durante doze anos, como professora orientadora de Sala de Leitura na Rede Municipal de Ensino de São Paulo, a contação de histórias mostra-se uma importante ferramenta de estímulo à leitura para alunos de diferentes etapas do Ensino Fundamental. Assim, ao contar uma história que remete a determinado tema, gênero literário ou autor, é possível despertar o interesse pela leitura de obras literárias.
Muitas vezes, a apreciação de uma história contada desperta no ouvinte o desejo de também contar histórias. Jean Foucambert (1994, p. 135) afirma que não é possível ser um mediador de leitura sem “possuir uma teoria oriunda de uma autêntica prática de leitura”. Diante desse pensamento e da possibilidade de a contação de histórias contribuir para a formação de leitores, podemos considerar que um contador de histórias é, antes de tudo, um leitor crítico que, considerando sua leitura de mundo, seleciona em seu repertório as narrativas que favorecem seus objetivos diante do espectador.
Nessa perspectiva, o professor que adota a contação de histórias como procedimento para formar leitores da palavra, estará formando também leitores de mundo. Para tanto, é necessário criar situações que possibilitem ao aluno ouvir e apreciar diversas histórias; fortalecer o espírito crítico; desenvolver preferências, criando um repertório único.
Considerações finais
Desde os primórdios da humanidade, contar e ouvir histórias são duas faces da mesma moeda, de valor inestimável, que possibilita o resgate e a preservação da memória, o compartilhamento do conhecimento, da cultura e da arte.
Inicialmente, as histórias fundamentavam-se exclusivamente nas narrativas orais. Ao longo do tempo, a literatura tornou-se uma importante referência. Assim, a contação de histórias pode ser uma boa estratégia na mediação de leitura literária.
Por ser um ato essencialmente interativo, o resultado de cada contação de história é exclusivo. Da mesma forma, o percurso de cada contador de histórias é único. Cada um define que histórias quer contar, como e para quem.
Referências
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: Gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1997.
AMADO, Jorge. O gato malhado e a andorinha Sinhá. São Paulo: Claro Enigma, 2010.
ANDERSEN, Hans Christian. Contos e histórias. Seleção e tradução de Renata Maria Pereira Cordeiro. São Paulo: Landy, 2004.
BRENMAN, Ilan. A condenação de Emília – o politicamente correto na literatura infantil. Belo Horizonte: Aletria, 2012.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 36ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
COELHO, Betty. Contar histórias: uma arte sem idade. São Paulo: Ática, 1999.
FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1989.
GOMES, Elaine. A arte de narrar histórias. São Paulo: Editora Senac, 2018.
GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Os contos de Grimm. Trad. Tatiana Belinky. São Paulo: Paulus, 2014.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 2001.
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana – danças piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
MACHADO, Regina. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: DCL, 2004.
PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
PERRAULT, Charles. Histórias ou contos de outrora. Seleção e tradução de Renata Maria Pereira Cordeiro. São Paulo: Landy, 2004.
PRIETO, Beatriz. Curiosidades sobre La Fontaine e suas fábulas. Disponível em: <https://www.aliancafrancesa.com.br/novidades/curiosidades-sobre-la-fontaine-e-suas-fabulas/>. Acesso em 10 fev. 2019.
SOARES, Magda Becker. As condições sociais da leitura: uma reflexão em contraponto. In: ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel (Orgs.). Leitura –perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática, 2000.
YUNES, Eliana. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009.
______. Prefácio difícil. In: GREGÓRIO FILHO, Francisco. Guardados do coração: memorial para contadores de histórias. Rio de Janeiro: Amais, 1998.
Publicado em 04 de fevereiro de 2020
Como citar este artigo (ABNT)
SANTOS, Rita de Cássia Alves Lopes dos. Reflexões sobre a arte de contar histórias. Revista Educação Pública, v. 20, nº 5, 4 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/5/reflexoes-sobre-a-arte-de-contar-historias
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1 Comentário sobre este artigo
Deixe seu comentárioExcelente texto. Bastante orientador e útil para a contação de histórias na era digital. Parabéns, Professora!
Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.