Infância e criança sob o olhar de Cecília Meireles: uma leitura de suas crônicas no Diário de Notícias

Ana Letícia Couto Araujo

Bacharel e licenciada em Pedagogia (UERJ), especialista em Saberes e Práticas da Educação Básica, na área de Alfabetização, Leitura e Escrita (UFRJ), atua em Orientação Educacional e Orientação Pedagógica na Educação Básica e no Ensino Superior e em Docência nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, pedagoga da direção de Ensino do CEFET-RJ

Assim como a cidadania real está ainda esperando as crianças, precisamos de um pontapé inicial para que elas possam ter ao menos um tipo de cidadania científica.
Jens Qvortrup (2011)

Por ocasião de uma visita que fizemos à exposição “Monteiro Lobato: o homem, os livros”, que aconteceu na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro/RJ) de 18 de abril a 18 de julho de 2019, com curadoria de Ana Merege e Veronica Lessa, tivemos oportunidade de conhecer diferentes fases e faces desse intelectual brasileiro que, nascido em 1882, em Taubaté/SP, protagonizou a produção e editoração de livros infantis no Brasil na primeira metade do século XX. Ainda na exposição, na seção intitulada “Obras Raras”, deparamos com o excerto de uma carta de 1932 que a escritora carioca Cecília Meireles (1901-1964) endereçou ao professor mineiro Fernando de Azevedo (1894-1974), com considerações acerca dos livros de Lobato a que ela tivera acesso:

Recebi os livros de Lobato. Preciso saber o endereço dele para lhe agradecer diretamente. Ele é muito engraçado, escrevendo. Mas aqueles seus personagens são tudo quanto há de mais malcriado e detestável no território da infância. De modo que eu penso que os seus livros podem divertir (tenho reparado que divertem mais os adultos que as crianças), mas acho que deseducam muito. É uma pena. (...) Por nenhuma fortuna do mundo eu assinaria um livro como os do Lobato, embora não deixe de os achar interessantes (Meireles, 1996, p. 229).

Coincidência ou não, na mesma ocasião da visita à exposição, havia pouco tempo tinha concluído a leitura do livro Problemas da literatura infantil (Meireles, 2016), obra que reúne três conferências sobre o tema apresentadas por Cecília Meireles para professores da rede pública de Belo Horizonte/MG, em janeiro de 1949. Em 1951, então, a escritora decidiu publicar as conferências em forma de livro. Pela leitura dessa obra, pude conhecer as linhas mestras do pensamento da escritora, intelectual e professora Cecília Meireles sobre o papel da literatura voltada à infância.

Cecília não menciona, no excerto da carta acima, a quais livros de Lobato estava se referindo. Todavia, sendo a carta datada de novembro de 1932, já eram muitas, à ocasião, as obras infantis publicadas pelo escritor, doze anos após a publicação da primeira, A menina do narizinho arrebitado.

Em 2019, quando se completaram 70 anos da morte de Monteiro Lobato, falecido aos 66 anos na cidade de São Paulo, a obra desse que é considerado o precursor da literatura infantil brasileira entrou em domínio público (Brasil, 1988), o que significa que todas as suas publicações estão agora liberadas para uso comercial sem o ônus dos direitos autorais. Tudo indica que novas edições dos livros do autor devem ser republicadas e impulsionadas a partir dessa liberação, fomentando ainda mais o já robusto mercado editorial brasileiro de livros infantojuvenis.

Em fevereiro de 2019, por exemplo, a Companhia das Letrinhas (segmento do grupo editorial Companhia das Letras voltado para o público infantojuvenil) publicou uma edição de luxo de Reinações de Narizinho organizada pela doutora Marisa Lajolo, pesquisadora brasileira de literatura infantojuvenil e especialista em Monteiro Lobato. Esse livro, originalmente lançado em 1931, é tido como inaugural da conhecida série Sítio do Picapau Amarelo.

São duas as razões que nos levam a fazer essas observações. A primeira delas tem por fim chamar a atenção para o fato de que um livro de Lobato, possivelmente lido por Cecília Meireles – vale lembrar que a carta enviada por ela a Fernando de Azevedo é de 1932 e o livro, de 1931 – é objeto de aposta do mercado editorial nacional nos nossos dias. A segunda razão, decorrente da anterior, na verdade consiste numa indagação: se em 2019 a produção literária de Monteiro Lobato ganha “edição de luxo” e lugar de destaque nas prateleiras da seção infantojuvenil das livrarias brasileiras, por que haveria Cecília Meireles de condenar sua apreciação pelo público infantil em 1932?

Na perspectiva da análise do discurso, aprendemos com Bakhtin (2014) que as palavras são sempre carregadas de ideologia, ou melhor, de uma “multidão de fios ideológicos” (p. 42). Outrossim, todas as relações sociais, qualquer que seja o contexto, são atravessadas por palavras. Com efeito, para Bakhtin, “a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem-formados” (idem, p. 42, grifo do autor). Ou seja, as palavras funcionam como “registro”, porta-voz das mínimas mudanças sociais. Os sentidos que elas carregam são móveis e moldados no curso da história, no bojo da estrutura social em que tomam forma. Dito isso, perguntamos: que concepções de infância e criança sustentariam o posicionamento de Cecília Meireles sobre as obras de Lobato?

De acordo com Corsino (2017), infância e literatura são dois conceitos “inventados e reinventados ao longo do tempo”, de modo que as diferentes acepções que recebem (ou receberam) acompanham “a época, o lugar, os grupos sociais e seus valores” (p. 208). Sendo assim, “a literatura adjetivada como infantil é produzida no seio de uma cultura que define o que é ou não literatura e também o que é ou não infantil ou próprio das/para as crianças” (Corsino, 2017, p. 208).

Nesse diapasão, encontra-se o pensamento de Sarmento e Pinto (1997, p. 17), quando tratam da (in)definição dos conceitos de criança e infância:

ser criança varia entre sociedades, culturas e comunidades, pode variar no interior da frátria de uma mesma família e varia de acordo com a estratificação social. Do mesmo modo, varia com a duração histórica e com a definição institucional da infância dominante em cada época.

Dessa forma, neste texto defendemos que, para uma compreensão das (possíveis) razões que levaram Cecília Meireles a posicionar-se contrariamente à adequação dos livros que Lobato escreveu para as crianças, faz-se mister um estudo dos conceitos de infância e criança defendidos pela escritora àquela época. Ou seja, por que razões – conceituais e práticas – Lobato não seria indicado para o/a leitor/a infantil, não obstante o reconhecimento de seu valor literário? Por que os livros de Lobato teriam a pecha de “deseducar muito” a infância e seus personagens seriam “tudo quanto há de mais malcriado e detestável no território da infância”?

Para lançar luz sobre essas questões, propomos a apreciação de crônicas escritas por Cecília Meireles de 1930 a 1933 no jornal carioca Diário de Notícias, no qual manteve a chamada “Página de Educação”. Nessas publicações, podemos encontrar “as linhas mestras” do pensamento de Cecília sobre temas ligados a infância, criança, juventude, educação, família, religião, política, folclore etc.

Literatura infantil por Cecília Meireles

No trecho da carta que Cecília Meireles dirigiu a Fernando de Azevedo, inferimos que, embora reconhecesse o valor literário das produções de Monteiro Lobato, ela deixa claro que não as recomendava às crianças. Entretanto, a respeito do livro infantil, ao dirigir-se a professores em Belo Horizonte (MG), ela defendeu que,

em lugar de se classificar e julgar o livro infantil como habitualmente se faz, pelo critério comum da opinião dos adultos, mais acertado parece submetê-lo ao uso – não estou dizendo a (sic) crítica – da criança, que, afinal, sendo a pessoa diretamente interessada por essa leitura, manifestará, pela sua preferência, se ela a satisfaz ou não (Meireles, 2016, p. 18).

Cecília assinala ainda que não há uma literatura infantil “a priori”, porquanto a definição do que seria literatura infantil recairia sobre o gosto das crianças, o que elas “leem com utilidade e prazer”. A definição do que seria ou não literatura infantil aconteceria “a posteriori”, isto é, após avaliação da criança leitora (Meireles, 2016, p. 15).

Para Silva (2017, p. 66), Cecília inaugura “uma vertente bastante original para a época no que diz respeito à posição da criança”, quando o assunto é literatura infantil, porque, no contexto brasileiro, a historiografia do livro de ficção infantil registra que a literatura destinada à criança sempre esteve refém da “avaliação dos adultos, que adaptavam conteúdos, temas e suportes, valendo-se de um status de subordinação do gosto dos pequenos leitores” (Silva, 2017, p. 67).

Dessa forma, ao reconhecer o direito de a criança expressar sua própria opinião a respeito de uma obra literária, Cecília faz pensar sobre a consideração da infância no contexto da estrutura social (Qvortrup, 2010). Segundo a perspectiva que situa a infância como uma categoria da estrutura social, as crianças são agentes sociais, produtoras de cultura; sua “ação modifica/transforma os mundos sociais nos quais estão inseridas” (Qvortrup, 2010, p. 631). Já nos idos de 1950 Cecília assumiu um posicionamento que se aproxima dos estudos da Sociologia da Infância que viriam a despontar anos mais tarde, após 1980.  

Curiosamente, essa escritora, nos anos 1930, fez objeções às obras de Lobato e não as recomendava às mãos infantis. Assim, não nos parece equivocado concluir que, na opinião de Cecília, àquela ocasião, as obras de Lobato representavam uma infração moral ao que ela defendia como próprio para a infância.

Os três aspectos da literatura infantil postulados pela escritora são: moral, instrutivo e recreativo. Entretanto, ela mesma destaca que “esses caracteres não aparecem isolados, mas, ao contrário, frequentemente se interpenetram” (Meireles, 2016, p. 58). Dessa forma, verificamos que Cecília reprovou “os livros de Lobato” sob os aspectos moral e instrutivo, não obstante tenha destacado o seu valor recreativo.

Ao discorrer sobre o livro infantil, em 1951, a escritora carioca defendeu a bandeira da livre influência da obra sobre a criança para que esta venha, então, a decidir se aquela lhe apraz ou não (Meireles, 2016, p. 20). Quando fez ressalvas ao “livro impróprio”, a escritora defendia que ele seja temido apenas “quando se apresenta como um potencial arrasador, difundido com veemência, e tão ajustado à época que o produz como se fosse o seu evangelho”. Pondera, ainda, que em situações assim “só as boas, as grandes, as eternas leituras poderão atenuar ou corrigir o perigo a que se expõe a criança na desordem de um mundo completamente abalado”, em que “os homens vacilam até nas noções a seu próprio respeito” (Meireles, 2016, p. 20). Estariam “os livros de Lobato” no rol do que Cecília classifica como “livro impróprio” e à mercê de todas as implicações subjacentes a essa classificação?

Silva (2013, p. 197) ensina que “o gênero literário talvez seja um dos mais significativos para a formação de um acervo cultural consistente”. Entretanto, a autora chama nossa atenção para o fato de que a construção desse significado se dá justamente pela afetação provocada pelos textos literários no sujeito leitor, porque o contato com a literatura pode “levar o sujeito a produzir uma forma qualitativamente diferenciada de penetrar na realidade” assim como “provocar no leitor a capacidade de experimentar algumas sensações pouco comuns em sua vida – caso em que se identifica com um personagem e passa a enxergar além de suas experiências cotidianas” (Silva, 2013, p. 197).

Vejamos, a seguir, reflexões que Cecília trouxe em torno dos conceitos de infância e criança nas crônicas escritas por ela nos anos de 1930 a 1933, com as quais iremos dialogar para tentar compreender suas ressalvas aos livros de Lobato feitas nessa mesma ocasião.

Criança e infância em jornal

Cecília Meireles (1901-1964) nasceu no município do Rio de Janeiro, na época em que a cidade era a capital da incipiente República do Brasil. Foi professora, escritora e jornalista, sempre engajada nas questões relativas à educação, à cultura e à literatura infantil, deixando um rico legado para os interessados em conhecer a História da Educação brasileira da primeira metade do século XX.

Apenas no jornal Diário de Notícias, durante os três anos em que manteve sua “Página de Educação”, publicou mais de setecentos textos, dentre os quais retiramos as unidades de análise para este trabalho.

Segundo Rizzini (2011, p. 23), o século XX é herdeiro das “grandes transformações econômicas, políticas e sociais, que marcam a era industrial capitalista do século XIX”. No caso brasileiro, o momento era emblemático: sonhava-se com um Brasil reformado, “proposta que logo adquiriu a dimensão de uma ampla ‘missão saneadora e civilizadora’. Bradava-se como ideal salvar o Brasil do atraso, da ignorância e da barbárie para transformá-lo numa ‘nação culta e civilizada’” (Rizzini, 2011, p. 25, grifos da autora). Nesse contexto, o interesse pela infância ganhou novos contornos: a criança assumia lugar de destaque no rol das ações do poder público, porquanto passa a ser vista

como chave para o futuro, um ser em formação – dúctil e moldável – que tanto pode ser transformado em homem de bem (elemento útil para o progresso da nação) ou num degenerado (um vicioso inútil a pesar nos cofres públicos) (RIZZINI, 2011, p. 24, grifos da autora).

O jornal carioca Diário de Notícias foi fundado em 12 de junho de 1930 e permaneceu em circulação até 1974. Diário e matutino, o jornal tinha como proposta básica lutar contra a “estrutura oligárquica” da República Velha, ser porta-voz de um “espírito revolucionário”, ainda que não pretendesse uma revolução nas bases sociais, mas fazer frente à política antiliberal reinante até então (Ferreira, 2019).

Na “Página de Educação”, Cecília Meireles trazia entrevistas, noticiários, artigos e uma coluna denominada “Comentário” (Azevedo Filho, 2017). Aí nasceram quatro volumes da série Crônicas de Educação – a série é composta de cinco volumes; o último traz crônicas que Cecília publicou no jornal A Manhã nos anos 1940. A seção tem diversos textos versando sobre assuntos educacionais, dentre os quais se incluem conceitos de infância, criança, magistério e literatura infantil. As crônicas que usamos para escrever este texto fazem parte do volume 1. O organizador da série, na apresentação que fez do volume, afirma:

Estamos diante do espírito crítico de uma jornalista combatente e preocupada com os problemas da educação do povo brasileiro, da escritora e da professora em campo de luta, defendendo valentemente as suas ideias – melhor seria dizer os seus ideais de educação – sempre com muita dignidade e reflexão crítica. Divergiu de grandes políticos e teóricos da época, pondo na defesa de suas posições todo o potencial de sua inteligente argumentação e da sua fina sensibilidade (Azevedo Filho, 2017, p. 17).

Em termos de contexto histórico, podemos dizer que a escrita das crônicas aconteceu em momento próximo ao surgimento do trabalho literário de Monteiro Lobato voltado para a infância, inaugurando o gênero em território nacional. A literatura infantil brasileira está historicamente vinculada à institucionalização da escola como principal espaço de educação social, o que começa a tomar corpo por ocasião do advento da República e do processo de urbanização do país (Bertoletti, 2015). Com a escolarização do ensino da leitura e da escrita, criou-se a demanda de produção e distribuição de livros que servissem de suporte a esse trabalho. Desde fins do século XIX,

a literatura infantil brasileira foi produzida e criticada, sobretudo, por professores ou intelectuais engajados em projetos educacionais; associou o aspecto estético à formação de valores para as crianças, concebendo-as como seres a “vir a ser”; submeteu-se ao processo de escolarização de aprendizagem da leitura e da escrita, ou seja, esteve vinculada à instituição escolar (Bertoletti, 2015, p. 50).

Silva (2010), por sua vez, acrescenta que, no Brasil do início do século XX, não era fácil “distinguir leitura escolar de leitura literária para a infância” (p. 53), o que comprometia a “legitimidade estética” do gênero. Afinal, como “revelar a matéria literária em objeto tão comprometido com fins educativos?” (Silva, 2010, p. 54).

Foi nas décadas de 1920 e 1930, pelas mãos de Monteiro Lobato, que se iniciou uma mudança nesse cenário:

Monteiro Lobato insere-se no domínio da literatura infantil conferindo-lhe uma nova perspectiva, tanto de ordem temática quanto discursiva. A criança não é mais poupada de conflitos sociais; o ponto de vista da narrativa muitas vezes lhe é transferido; e abre-se espaço para a voz questionadora do personagem criança, metamorfoseado e exacerbado muitas vezes na polêmica figura da boneca Emília (Silva, 2010, p. 54).

A perspectiva inaugurada por Monteiro Lobato, de acordo com os esclarecimentos trazidos acima, faz pensar sobre a concepção de infância como categoria social, isto é, como segmento inscrito permanentemente na estrutura da sociedade (Qvortrup, 2010; 2010a). Defender a infância como uma categoria social implica assumir que “há uma pluralidade de infâncias” (Qvortrup, 2010a, p. 1.132), conforme os diferentes grupos sociais existentes.
Se as crianças formam uma coletividade com especificidades próprias, elas também pertencem ao conjunto social onde se inserem pessoas de outras ordens geracionais, como os adultos, por exemplo. Assim, a dinâmica social abarca todos os sujeitos, embora os afete de modo desigual, inclusive atingindo o seu poder de decisão e participação, como acontece com as crianças.

O trecho a seguir, retirado da crônica “Ouvindo as crianças”, é sugestivo no sentido de pensar a criança como sujeito ou agente social:

A criança não é um boneco, cujas habilidades ou inabilidades se exploram. É uma criatura humana, com todas as forças e fraquezas, todas as possibilidades de evolução e involução inerentes à condição humana. Por isso mesmo, são condenáveis todas as atitudes que a rebaixem, ou que lhe estorvem o seu normal desenvolvimento (Meireles, 2017, p. 141, grifos nossos).

O reconhecimento da criança como “criatura humana” faz pensar nos aspectos que caracterizam a “condição humana”, considerando-se os diferentes segmentos geracionais que compõem o todo social. Sob essa perspectiva, o critério etário não é parâmetro para que determinado grupo se coloque acima do outro. Humanizar a criança significa inculcá-la das características que condicionam o ser humano em cada realidade social. Não se trata de fazer juízo de valor no sentido de julgar se algum aspecto é ruim ou bom simplesmente porque se trata de uma criança, mas sim porque é ruim ou bom para qualquer ser humano integrante de um grupo social específico, com sua cultura, seus valores, suas crenças etc.

Por outro lado, na crônica “Desigualdades”, encontramos uma conceituação de criança que se distancia da perspectiva enunciada antes. No caso a seguir, a criança é apresentada conforme um modelo ideal de “condição humana”, livre de defeitos, em oposição ao adulto, este sim carregado de imperfeições:

A criança, porém, é absolutamente isenta de preconceitos; a criança em estado natural estranha as deformações vindas do exterior, mediante a desconfiança e a malícia do adulto. Porque é assim, há uma espontânea atração da infância pela infância; as crianças estabelecem, com a maior naturalidade, um convívio amplo e fraternal (Meireles, 2017, p. 153).

Observamos nesse trecho uma tendência da escritora de clivar o mundo da criança do mundo do adulto, estabelecendo uma fronteira entre os dois. O estado ‘natural’ da criança seria maculado pelo que advém do adulto, considerado cheio de ‘deformações’. No nosso entendimento, essa visão vai de encontro à tese de que “ninguém, inclusive as crianças, pode evitar a influência de eventos mais amplos, que ocorrem além do microcosmo próximo” (Qvortrup, 2011, p. 207). Mesmo que crianças façam uma interpretação diferente do mundo e que suas disposições sejam diferentes das dos adultos, elas não vivem num mundo especial. A vida das crianças não é imune aos impactos que os eventos sociais, políticos e econômicos causam à vida dos adultos, conquanto os efeitos afetem diferentemente cada grupo ou segmento da estrutura social.

Na crônica “O convite para a vida”, a visão da criança como um ser ‘puro’, quase mágico, é reforçada:

As crianças têm essa qualidade admirável; sabem ver a vida com uns olhos puríssimos, que tiram os limites do espaço, do tempo, das personalidades, e reduzem tudo a um jogo maravilhoso, a um baile do espírito muito diverso deste baile de máscaras em que lá vamos, dia por dia… (Meireles, 2017, p. 169).

Em que pesem as especificidades referentes às formas de vida das crianças, alinho-me ao pensamento que as compreende como sujeitos históricos, agentes sociais e culturais, afetando e sendo afetadas pelos fenômenos da sociedade da qual fazem parte. Sendo assim, defendo que as crianças são suscetíveis de viver e sentir as mesmas dores e alegrias que podem assolar qualquer ser humano.

Na crônica “Nós e as crianças”, a escritora fala que “a infância, afinal de contas, é apenas esta coisa simples; uma etapa da vida humana, da bela, heroica e forte vida humana, com todas as suas derrotas e vitórias" (Meireles, 2017, p. 139). Esse trecho convida a estabelecer um contraponto com outra tese de Qvortrup, segundo a qual “a infância persiste: ela continua a existir – como uma classe social, por exemplo – como forma estrutural, independentemente de quantas crianças entram e quantas saem dela” (Qvortrup, 2011, p. 204). Enquanto a escritora fala de transitoriedade, o sociólogo insiste na permanência da infância. Se, do ponto de vista individual, a infância pode ser compreendida como uma “etapa” da vida de cada um, do ponto de vista social ela tem caráter permanente, constituindo uma categoria na estrutura da sociedade.

Para finalizar, gostaria de destacar que a simplicidade aludida pela escritora não nos parece ser característica da infância, seja ela tomada do ponto de vista individual ou social. Não vemos como simples a vida infantil tanto para quem está na infância quanto para quem acompanha ou educa – interage com, cuida da – a infância.

À guisa de conclusão

Neste trabalho, tivemos a intenção de estabelecer um diálogo com o pensamento da escritora Cecília Meireles no que concerne às ideias trazidas por ela a público sobre os temas literatura infantil, infância e criança. Para tal, lançamos mão de textos que ela apresentou no livro Problemas de literatura infantil, cuja primeira edição é de 1951; além desse livro, foi nossa fonte de pesquisa o volume 1 da série Crônicas de Educação, que traz textos que a autora, em sua face jornalista, publicou nos anos de 1930 a 1932 no jornal Diário de Notícias.

O livro Problemas de literatura infantil foi originalmente publicado em 1951, portanto quase vinte anos após a publicação das crônicas do jornal. Enquanto no livro encontramos uma Cecília defensora da liberdade de escolha da criança quanto a decidir o que ler, porquanto a compreende como um ser dotado de gosto e vontade, a Cecília que se mostra nas crônicas parece mais conservadora, com uma visão de criança como alguém que se deve proteger das asperezas do mundo. No primeiro caso, assistimos ao entendimento de que a criança deve se lançar no “mundo”, capaz que é de participar dele com voz própria; no segundo, o de que a criança deve evitar o “mundo”, especialmente o dos adultos, protegendo-se das suas “malícias”.

É justamente a Cecília do segundo caso que, em 1932, se expressa contrariamente à leitura das obras de Lobato pelas crianças, no trecho da carta que enviou a Fernando de Azevedo. As passagens das quatro crônicas que destaquei na última seção deste trabalho trazem elementos que fazem compreender as razões de Cecília quando desaconselhou as obras do escritor paulista para a educação da infância. Escritas à mesma época em que a carta, as crônicas oferecem uma perspectiva de análise da criança e da infância que se distancia da compreensão da infância como fenômeno social.

Aprendemos com Silva (2013) que as leituras de um texto são múltiplas, conforme o sentido atribuído por cada sujeito leitor. Como destaca a pesquisadora, “ler é estabelecer relações; trata-se de tentativas de retomar os sentidos pretendidos pelo autor em meio à configuração textual” (Silva, 2013, p. 191). Assim, a leitura que fizemos dos textos de Cecília é resultado da nossa interlocução com esses escritos, baseada em nossos referenciais de análise e compreensão de mundo.

Conforme dissemos, a série Crônicas de Educação é composta de cinco volumes, de modo que a fonte de pesquisa disponível para novas leituras e interpretações é bastante vasta. Nós, que nos interessamos pelos estudos da infância e da literatura infantil, temos assim um rico material aguardando nossa disposição para o trabalho de pesquisar outras contribuições que o legado de Cecília Meireles pode oferecer.

Referências

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CORSINO, Patrícia. Infância e literatura: entre conceitos, palavras e imagens. In: SILVA, Márcia Cabral da; BERTOLETTI, Estela Natalina Mantovani (Orgs.). Literatura, leitura e educação. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2017. p. 207-230.

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QVORTRUP, Jens. Nove teses sobre a “infância como um fenômeno social”. Pro-Posições, Campinas, v. 22, nº 1, p. 199-211, jan./abr. 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73072011000100015&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 12 jul. 2019.

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RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011.

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______. Leitura, pesquisa e ensino. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

______. Infância e literatura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.

Publicado em 18 de fevereiro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

ARAUJO, Ana Letícia Couto. Infância e criança sob o olhar de Cecília Meireles: uma leitura de suas crônicas no Diário de Notícias. Revista Educação Pública, v. 20, nº 7, 18 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/7/infancia-e-crianca-sob-o-olhar-de-cecilia-meireles-uma-leitura-de-suas-cronicas-no-diario-de-noticias

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