Intolerância religiosa em cena: experiência com o Teatro do Oprimido em uma escola de Ibirité/MG

Otavio Henrique Ferreira da Silva

Professor da rede municipal de Ibirité/MG

João Paulo Lisbão Nanô

Professor da rede municipal de Ibirité/MG

Ao discutir o papel da educação frente ao problema da intolerância religiosa, verifica-se a presença de uma polêmica que está colocada em torno desse debate: por um lado, a concepção opressora de que a escola não deve ser um espaço que incentive a discussão de temas como intolerância religiosa; por outro, a concepção dos oprimidos (Freire, 2005), de que a escola é um lugar apropriado para debater essa temática tendo em vista a diversidade cultural, política, social, econômica e religiosa a qual pertencem os sujeitos educandos, suas famílias e professores.

A primeira concepção, que optamos por chamar de opressora, nega a escola como lugar adequado para a construção de reflexões sobre os problemas sociais e fortalece a continuidade das práticas de intolerância religiosa, bem como a impunidade de quem as comete.

A segunda concepção, a dos oprimidos, identifica que a intolerância religiosa é um grave problema social e busca levar esse debate para dentro da escola com o objetivo de chamar a atenção dos estudantes, das famílias e dos professores para a necessidade de solidarizar-se com as pessoas que diariamente são desrespeitadas em sua liberdade de crença e não são tratadas como sujeitos possuidores de direitos.

Nesse sentido, será apresentada, ao longo deste texto, uma experiência pedagógica que realizamos em 2017 com estudantes do 6º e do 9º anos da Escola Municipal Maria das Mercês Aguiar, em Ibirité/MG, durante a Feira de Cultura intitulada “Consciência Negra”. Nessa ocasião, foi apresentada a cena teatral As religiões, nome carinhosamente escolhido pelos estudantes que participaram como atores.

O teatro As religiões

A construção da peça teatral teve influência da problemática entre a concepção dos opressores e dos oprimidos conceituadas por Paulo Freire em A Pedagogia do Oprimido (Freire, 2005). Foi motivada também pelo crime religioso ocorrido no dia 24 de outubro de 2017 na cidade de São Joaquim de Bicas/MG, em que cinco homens armados invadiram a Casa Espírita Império dos Orixás de Nossa Senhora da Conceição e São Jorge Guerreiro e ofenderam, ameaçaram os religiosos da casa e quebraram objetos que integravam parte de cultos religiosos de matrizes africanas. Conforme registrou o jornal Brasil de Fato no dia 9 de novembro, os agressores ainda disseram que na região não teriam mais “macumbeiros” e que se iniciaria ali a construção de uma igreja protestante (Brasil de Fato, 2017).

Antes de apresentar aos estudantes a proposta da peça teatral, ocorreram etapas prévias. Primeiro, foi realizado um levantamento dos percentuais de declaração religiosa da população de Ibirité, em que se constatou que a maioria dos moradores segue religiões cristãs – católicas ou evangélicas –; de acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2012), não havia na cidade nenhuma pessoa que se declarava pertencente à umbanda e/ou ao candomblé.

Esse fato trouxe incômodo para nós, professores, visto que no Brasil os percentuais dessas religiões alcançam 0,61% da população brasileira. O passo seguinte foi consultar, junto aos estudantes e aos demais professores da rede municipal, se na cidade havia casas e/ou terreiros de cultos religiosos de matrizes africanas. A partir disso, foi constatado, com cinco pessoas que colaboraram com o levantamento, que havia tanto casas e terreiros quanto pessoas que frequentavam os cultos de umbanda e/ou candomblé na cidade. Esse fato nos fez questionar os dados de declaração religiosa do Censo de 2010 do IBGE e que põem em evidência as seguintes hipóteses:

  1. as pessoas praticantes de umbanda e candomblé estariam amedrontadas para se assumirem como tais; e
  2. o poder público estaria negando a possibilidade de autodeclaração religiosa a essas pessoas.

Num segundo momento, foram trabalhados com os estudantes do 6º ano do Ensino Fundamental da escola os dados levantados sobre a declaração religiosa de Ibirité e do Brasil, para que assim os alunos verificassem a diversidade religiosa que temos em nossa cidade e em nosso país. Uma estudante disse que “pensava que somente existiam as religiões católica e evangélica”, e ficou surpresa diante das mais de 25 autodeclarações religiosas no levantamento censitário brasileiro.

Durante a realização das atividades que antecederam a Feira de Cultura, foi observado como ainda são grandes o preconceito e a discriminação contra as pessoas pertencentes às religiões de matriz africana. Alguns estudantes diziam: “Cruz credo” e faziam o sinal da cruz; “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém!”. Outro disse: “Professor, nada do que você disser vai mudar minha opinião”.  

Não eram somente os estudantes que sentiam desconforto em falar sobre as religiões de matriz africana e a intolerância religiosa; outros colegas professores também ficaram incomodados, assim como as famílias de nossos educandos. O fato é que falar daquilo que não é comum causa estranhamento e requer que as pessoas saiam de suas zonas de conforto para se colocarem no lugar do outro, esse mesmo que as deixa desconfortáveis. E foi buscando dar continuidade a esse processo político e pedagógico de mexer com conformidades que decidimos persistir, desconfortando e apresentando para toda a comunidade escolar, durante a Feira de Cultura, a peça As religiões.

A terceira etapa foi a seleção dos estudantes interessados em participar. A partir do convite realizado a estudantes do primeiro turno, obtivemos dezoito interessados em compor o elenco. Foram realizados dois encontros para a preparação dos estudantes. No primeiro, conversamos bastante sobre a proposta do teatro e deixou-se em aberto que, caso alguém não concordasse com a proposta, poderia fazer questionamentos e/ou não haveria problema em optar por não participar. Depois disso, permaneceram no grupo quinze estudantes.

Logo em seguida, foram realizados diversos jogos do Teatro do Oprimido, que servem para preparar os atores para a cena teatral e possibilitar ao grupo de sujeitos participantes se conhecer melhor e alcançar boa interação entre si. No segundo encontro, foi construída a proposta de encenação a ser apresentada, e aconteceram ensaios e ajustes metodológicos da cena. A reportagem do crime de intolerância religiosa ocorrido em São Joaquim de Bicas foi a referência para a construção da peça. Com base nas conversas desenvolvidas com os estudantes sobre intolerância religiosa, muitos compreenderam bem a importância de respeitar a religião de outras pessoas, independente de quais sejam seus ritos e origens, pois a liberdade de crença é um direito de cada pessoa. Nesse momento, nós, professores, permanecemos como mediadores do processo, apenas ressaltando os pontos imprescindíveis para a cena.

Os estudantes assumiram os postos de protagonistas e, de forma criativa e inovadora, foram recriando e construindo as performances. As principais características da peça teatral foram: a rapidez, a relação clara de opressão em que as pessoas que dizem pertencer ao grupo religioso dominante (religião cristã) praticam a discriminação contra um grupo religioso de matriz africana e a possibilidade de a plateia intervir no final da apresentação da cena, a partir do conceito de Teatro Fórum, metodologia desenvolvida por Augusto Boal dentro do arcabouço de cenas do Teatro do Oprimido. No Teatro Fórum, as pessoas que assistem à apresentação teatral não são meras espectadoras, mas o envolvimento com o teatro é tão grande que elas se tornaram atores e substituíram atores originais que representavam os oprimidos. Para isso, é preciso que a dinâmica do teatro mexa com o público, fazendo com que ele se movimente e saia do seu lugar de passividade na plateia.

Figura 1: Cena teatral As religiões – os oprimidos

Figura 1: Cena teatral As religiões – conflitos entre opressores e oprimidos

A quarta etapa foi a apresentação da cena; percebemos que, a partir da realização dos jogos teatrais, os estudantes estavam soltos, o que não quer dizer que deixaram a timidez de lado, pois, afinal, os atores eram meninas e meninos com idade entre doze e quinze anos. Muitos estavam atuando em teatro pela primeira vez. No dia da Feira de Cultura, a escola estava cheia, com a presença de muitos familiares, estudantes e profissionais da escola.

Os estudantes estavam entusiasmados e ansiosos. Foi combinado com os estudantes-atores de eles chegarem mais cedo para a preparação do figurino. Quanto às vestimentas, o grupo oprimido usou roupas longas confeccionadas com TNT, um pano na cabeça para representar turbantes e ficaram descalços. No grupo opressor, os estudantes usaram roupas pretas e/ou esporte fino e sapatos fechados. Como cenário, foram utilizados caixotes de madeira que representaram o espaço físico do terreiro de umbanda e candomblé.

Antes de iniciar o teatro, orientamos a plateia quanto à possibilidade de ela intervir na cena, pois se tratava de uma peça teatral diferente, em que algumas pessoas substituiriam algum ator do grupo oprimido na busca por protagonizar outro roteiro para o teatro. Durante a apresentação, o grupo oprimido estava celebrando o seu culto religioso, cantando e dançando, buscando envolver o público e alegrá-lo com sua performance. Após aproximadamente dois minutos de apresentação, entrou o grupo opressor, com uma intensidade performática muito forte e agressiva. Os estudantes usaram frases e palavras que são empregadas no dia a dia por pessoas ou grupos que praticam a intolerância religiosa. Toda a cena teatral durou cerca de três minutos; percebeu-se que o impacto da apresentação foi muito forte e que o público esboçou diferentes reações: sustos, risos e desconfortos.

A quinta e última etapa foi a intervenção do público. A primeira a se manifestar foi uma mãe. Ela mostrou certa indignação com o que havia sido apresentado e alegou que não se sentiu representada na agressividade dos cristãos que foram retratados pelo grupo opressor do teatro. Para ela, Jesus prega o amor, e os cristãos também pregam o amor em Cristo; por isso não estavam corretamente representados por aquela agressividade que foi apresentada em cena. Várias pessoas da plateia concordaram com ela e aplaudiram a sua manifestação.

A segunda intervenção foi de outra mãe, que disse que discordava da mãe que falou anteriormente, argumentando que o preconceito religioso é algo que existe e está velado em nossa sociedade. Ela relatou que, para entrar com uma bonequinha preta, que era trabalho de escola de seu filho, na casa de um parente, este alegou que precisaria consultar o pastor de sua igreja para saber se era permitido. Assim, ela concluiu dizendo que percebe que existe, sim, o preconceito por parte da maioria das grandes religiões.

A terceira intervenção foi de um pai que afirmou que a cena apresentada representava o que acontece de fato no Brasil. Esse pai, além de brevemente argumentar sobre o que havia compreendido, escolheu um dos atores oprimidos para substituir e intervir na cena. Tivemos um pouco de dificuldade, a princípio, em encaminhar a intervenção com a participação dele, mas, após entender o processo e ao reproduzir-se a cena pela segunda vez, o pai conseguiu propor um novo sentido para a cena, em que a interação entre as religiões não mais ocorria por meio de opressão, e sim do respeito.

Considerações finais

Pela realização desse teatro, percebemos a necessidade de debater mais a intolerância religiosa na escola e na comunidade escolar. O impacto da peça teatral foi profundo e, na semana posterior, outros familiares queriam mais esclarecimento sobre o teor do que havia sido apresentado na escola, tanto no sentido de contribuir para a construção do debate quanto de reforçar que aquilo não era tema para se discutir na escola.

Com os estudantes, identificamos que o impacto foi positivo, e muitos relataram, em atividades posteriores realizadas em sala e nos momentos de diálogos pedagógicos, o quão necessário é o respeito à religião do próximo. Alguns estudantes mencionaram o teatro apresentado na Feira de Cultura como uma atividade que os ensinou a ser mais tolerantes e a procurar conhecer a religião do outro, evitando, desse modo, tecer quaisquer julgamentos etnocêntricos sobre aquilo que é de direito subjetivo do outro e que lhes causa desconforto por não ser de seu conhecimento.

Referências

BRASIL DE FATO. Cinco homens invadem e quebram terreiro de Umbanda em Mário Campos/MG. 2017. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2017/11/01/cinco-homens-invadem-e-quebram-terreiro-de-umbanda-em-mario-campos-mg/. Acesso em: 09 nov. 2018.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 44ª ed. Rio de Janeiro: Paz Terra, 2005.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.

Publicado em 12 de janeiro de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

SILVA, Otavio Henrique Ferreira da; NANÔ, João Paulo Lisbão. Intolerância religiosa em cena: experiência com o Teatro do Oprimido em uma escola de Ibirité/MG. Revista Educação Pública, v. 21, nº 1, 12 de janeiro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/1/intolerancia-religiosa-em-cena-experiencia-com-o-teatro-do-oprimido-em-uma-escola-de-ibiritemg

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