O fluxo da consciência: um olhar sobre o conto Viagem a Petrópolis, de Clarice Lispector

Lucas Neiva Silva

Mestre em Letras (UFJF)

Considerações iniciais

Os modos de narrar se alteram com o passar do tempo. A partir do século XX, as narrativas ditas modernas começaram a colocar o enredo em segundo plano. Em decorrência disso, as personagens passaram a ser representadas como seres fragmentados, cujas consciências são reveladas ao leitor por variadas técnicas, e, simultaneamente com o narrador, conduzem a narração. Para a pesquisadora Tânia Pellegrini (2003, p. 21), “a radicalização desse aspecto vai desembocar no fluxo da consciência, espécie de transcrição direta dos pensamentos”.

Na literatura mundial, escritores como Virgínia Woolf e James Joyce utilizaram pioneiramente esse recurso. No Brasil, Clarice Lispector, com sua prosa introspectiva e intimista, é uma das principais representantes desse estilo, sendo considerada, por alguns críticos, a Virgínia Woolf brasileira.

Desde suas primeiras obras ficcionais, ainda adolescente, Lispector utilizou com maestria o fluxo da consciência para a construção da sua narrativa. Exemplo disso é o conto Viagem a Petrópolis, escrito quando tinha apenas quatorze anos e que compõe o livro A legião estrangeira (1999).

Assim, este artigo propõe algumas considerações sobre a utilização desse método ficcional no referido conto. Nestas palavras iniciais, também é importante mencionar que o fluxo da consciência nas primeiras obras literárias de Clarice Lispector ainda é embrionário. A autora aprofundará, de fato, esse recurso narrativo em obras como Maçã no escuro (1961), A Paixão Segundo G. H. (1964), Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969) e Água viva (1973), entre outros romances e contos.

Aspectos sobre o conto

Segundo o teórico Alfredo Leme de Coelho Carvalho (1981), o fluxo da consciência é um método ficcional que pode ser definido como “a apresentação idealmente exata, não analisada, do que se passa na consciência de um ou mais personagens” (Carvalho, 1981, p. 51). Por essa razão, o recurso está intrinsecamente ligado ao foco narrativo, uma vez que ele motiva uma indefinição dos limites entre a voz do narrador e a voz das personagens, de forma que as lembranças, os anseios, as falas e as ações se misturam na narrativa.

Assim, pode-se dizer que nessa técnica narrativa os pensamentos das personagens fluem desordenada e livremente durante o discurso. Entretanto, essa desordem não implica dizer que há fragmentação, pois “a consciência não é fragmentada em pedaços sucessivos (...), mas sim em fluxo contínuo” (Carvalho, 1981, p. 51).

Ainda de acordo com esse autor, há várias formas para representar no discurso narrativo o fluxo da consciência: o monólogo interior direto, o monólogo interior indireto, a descrição por autor onisciente e o solilóquio. Dentre essas técnicas elencadas pelo teórico, o monólogo interior orientado se apresenta fortemente no conto Viagem a Petrópolis.

O texto de Clarice Lispector apresenta uma narração em terceira pessoa, entrecortada pelos fluxos da consciência da personagem – Margarida –, os quais provocam rompimentos com o tempo e com o espaço da narrativa. Fatos e objetos exteriores, aparentemente sem importância, desembocam em sucessivas reminiscências que ultrapassam a estrutura sequencial do enredo. Para Sônia Maria Machado (1981),

o fluxo da consciência na ficção se prende especialmente ao lado psicológico do personagem, quer pronunciado por ele mesmo, por outro personagem ou por outro recurso impetrado pelo narrador para exteriorizar o conteúdo existente na consciência do personagem (Machado, 1981, p. 16).

O fluxo da consciência aparece no conto pelas reflexões que Mocinha faz a respeito da sua vida, do seu estado no mundo, da natureza das coisas. Além disso, em momentos de introspecção, a angústia, a solidão e o medo, entre outros sentimentos, são revelados através desse fluxo. É possível ressaltar também o monólogo interior em algumas passagens, como em: “Foi quando Mocinha começou finalmente a não entender. Que fazia ela no carro? Como conhecera seu marido e onde? Como é que a mãe de Maria Rosa e Rafael, a própria mãe deles, estava no automóvel com aquela gente?” (Lispector, 1999, p. 57).

Margarida, conhecida também como Mocinha, parece não ter se dado conta de sua real condição no mundo: uma senhora que vive de favores na casa de uma família rica de Botafogo, cujos membros não mantêm laços afetivos com a protagonista. Era só no mundo, conforme o narrador revela: “tivera pai, mãe, marido, dois filhos. Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes quase cobertos por um tênue veludo branco” (Lispector, 1999, p. 61). Mesmo diante dessa situação, ela vive resignada e alheia às condições subumanas que o destino lhe reservou. “Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo” (Lispector, 1999, p. 57), como é apresentada no início do conto.

O narrador não traz para o leitor a vida de Mocinha antes de sua chegada ao Rio de Janeiro, nem a razão da sua situação que beira a mendicância. Deixa essas informações se revelarem nos fluxos de pensamento da personagem e, assim, vai-se delineando vaga e anacronicamente fatos importantes para a compreensão da história. Logo, “o narrador privilegia na intenção de conduzir o leitor a trilhar o grafo das pegadas de uma escritura que sugere mais do que diz, ou que diz o indizível”, conforme salienta Mônica Lopes (2012, p. 55).

Clarice Lispector explora bastante o discurso indireto livre no conto. Segundo Machado (1981),

se se pudesse teorizar a respeito desse tipo de discurso, dir-se-ia que ele condensa aspectos tanto do discurso direto como do indireto. Personagem e narrador caminham juntos dentro de um mesmo contexto. Tem-se a impressão de que o narrador funciona como comentarista dos fatos, dando as suas impressões diante dos acontecimentos (Machado, 1981, p. 26).

A pesquisadora complementa ainda que, “mesmo usando o monólogo interior direto, o narrador, pretendendo-se onisciente, quer dominar o conteúdo mental dos seus personagens em todos os níveis (...), inclusive aqueles que nem ele mesmo entende, posto que são expressos na forma mesma com que são concebidos, sem passar pelo burilamento literário” (Machado, 1981, p. 122).

A existência de Mocinha parece estar condicionada a um narrador empático. Segundo Alzira Leite Vieira Allegro (2007, p. 20), “a grande empatia do narrador para com a personagem (...) é marca permanente do conto”. A velha não é muito de falar, o que representa a anulação do seu discurso pela sociedade, mas o narrador onisciente traz a possibilidade de seus pensamentos virem à tona.

Assim, em doses homeopáticas, a personagem vai sendo revelada ao leitor. A migrante maranhense que agora vive praticamente em solidão no Rio de Janeiro, pois perdera seus parentes. Entretanto, “sua vida corria assim sem atropelos” (Lispector, 1999, p. 58), até que a família da casa de Botafogo resolve mandar Mocinha para a casa de Arnaldo, um membro da família que mora em Petrópolis.

Na noite anterior à viagem, entusiasmada com a mudança repentina em sua vida, a protagonista não consegue sequer dormir. Então, reminiscências e revelações vão recuperando a sua identidade perdida ou apagada, ao mesmo tempo que provocam medo e angústia em Mocinha. “Lembrou-se de coisas que dias antes juraria nunca terem existido. A começar pelo filho atropelado, morto debaixo de um bonde (...). Lembrou-se dos cabelos do filho (...). Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara (...), de como ela gritara com Maria Rosa” (Lispector, 1999, p. 59).

Essa repentina mudança na rotina da protagonista deve ser considerada na análise do fluxo da consciência no conto, pois, segundo Machado (1981), “é a partir das ações vividas pelo personagem e, principalmente, da exteriorização de seus pensamentos que se pode captar o seu mundo interior” (Machado, 1981, p. 14).

Durante a viagem a Petrópolis, ignorada pelos outros ocupantes do veículo, Mocinha mergulha em pensamentos que são provocados pela paisagem vista: o cemitério, o armazém, a árvore, as duas mulheres, soldado, gato etc. Essas imagens vão sendo registradas e apagadas de acordo com a velocidade do carro e com a percepção da personagem sobre cada uma delas. Para Machado (1981),

o fluxo da consciência, servindo-se do mecanismo da livre associação de ideias, também evoca ideias espontâneas, num estado de consciência, buscando acontecimentos passados que vêm à mente através da associação com algo que se passa no momento atual do ser humano (Machado, 1981, p. 13).

A viagem, de certa forma, é uma metáfora da passagem da vida. O fim da vida de Mocinha é algo próximo e certo, mas o narrador parece querer retardá-lo.

Ao chegar à casa de Arnaldo, um dos filhos da família de Botafogo, Mocinha tenta encontrar uma razão para estar ali e seus pensamentos fluem, a despeito do silenciamento de sua voz. “O que fazia naquela casa? Mandavam-na à toa de um lado para outro, mas ela contaria tudo, iam ver. Sorriu encabulada: não contaria era nada, pois o que queria mesmo era café” (Lispector, 1999, p. 62).

É importante salientar que o monólogo interior travado pela personagem apresenta uma memória com registros desconexos, “que lhe aparecem como algo jamais vivido: marido, filhos e todos os elos afetivos que tivera um dia. Essas oscilações acabam por acentuar sua marginalização, isolamento e senilidade” (Lopes, 2012, p. 57). Nessa mesma perspectiva, Allegro (2007, p. 22) diz que “Mocinha faz, sem dúvida, parte do grupo de marginalizados e destituídos que frequenta a escrita de Clarice Lispector e por quem ela, por via de seu narrador polifônico, demonstra profunda empatia e compaixão”.

Ainda segundo Allegro, “o aspecto social da rejeição e exclusão do velho fica definitivamente caracterizado quando Arnaldo recusa-se a alojar Mocinha” (Allegro, 2007, p. 23). Ao ser rejeitada pelo dono da casa, Mocinha recolhe-se à sua insignificância. Parece aceitar a sentença de que já não há lugar para ela no mundo. Diante do abandono, agradece a Arnaldo dizendo: “Obrigado, Deus lhe ajude” (Lispector, 1999, p. 63).

Assim, sem abrigo, sem carinho, sem rumo, sem ter algo para chamar de seu, a não ser sua parca existência, Mocinha parte para o acaso. Suas reminiscências sempre voltam de formas bem vivas, pois elas são ativadas por imagens, sons, sabores etc. Nos momentos finais do conto, Margarida tem seu momento de epifania, cuja descrição é a seguinte: “O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que voava no abismo para a estrada. A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça e morreu” (Lispector, 1999, p. 64).

Segundo Lopes (2012), entender o caráter epifânico nos contos de Clarice é essencial para a compreensão de sua obra, “uma vez que o importante se revela na dinâmica interna das personagens, em fluxo da consciência que afasta definições e prioriza o sentido das coisas” (Lopes, 2012, p. 56).

Considerações finais

Como mencionado, na prosa de Clarice Lispector encontra-se a radicalização do método ficcional do fluxo da consciência, em se tratando da literatura brasileira. Porém a obra da escritora não deve ser analisada apenas por esse prisma, pois haveria o risco de apresentar uma visão reducionista de sua vasta produção literária e jornalística. Assim, com este artigo, procurou-se demonstrar que, desde as produções iniciais de Clarice, o fluxo da consciência já era um recurso presente na sua prosa, ainda que de forma embrionária. É o caso do conto Viagem a Petrópolis, objeto deste estudo. À medida que ocorrem as intercepções do narrador onisciente nos monólogos interiores da personagem Mocinha, a narrativa torna-se representativa do fluxo da consciência.

Referências

ALLEGRO, Alzira Leite Vieira. Viagem a Petrópolis: uma voz que fala em silêncio. Ângulo 111, p.19-26, out./dez. 2007.

CARVALHO, Alfredo Leme de Coelho. Foco narrativo e fluxo da consciência. São Paulo: Enio Matheus Guazzelli & Cia., 1981.

LISPECTOR, Clarice. Viagem a Petrópolis. In: ______. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 57-64.

LOPES, Mônica. Viagem a Petrópolis: a narrativa de Clarice Lispector utiliza-se de sutilezas que dizem mais do que o aparente em uma primeira lida. Conhecimento Prático: Literatura, v. 46, p. 50-57, 2012.

MACHADO, Sônia Maria. O fluxo da consciência e o tempo em A maçã no escuro. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1981.

PELLEGRINI, Tânia. Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações. In: ______. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac-SP, 2003.

Publicado em 12 de janeiro de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

SILVA, Lucas Neiva. O fluxo da consciência: um olhar sobre o conto Viagem a Petrópolis, de Clarice Lispector. Revista Educação Pública, v. 21, nº 1, 12 de janeiro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/1/o-fluxo-da-consciencia-um-olhar-sobre-o-conto-iviagem-a-petropolisi-de-clarice-lispector

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