Uso de biodigestor didático e técnica de animação para ensino de Química aos educandos indígenas

Cerilio Barbosa de Lima

Licenciado em Educação do Campo (UFFS)

Alexandre Monskolski

Mestre em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais (UEM), professor universitário (UFFS)

Jakeline Galvão de França

Doutora em Aquicultura (Unesp), bolsista de Apoio Técnico (UFFS)

Marciane Maria Mendes

Doutora em Educação (UFPR), professora universitária (UFFS)

Os conhecimentos produzidos pela ciência independem do tipo de linguagem, pois tem um enorme potencial de transformação e geração de condições de melhoria da qualidade de vida, possibilitando a compreensão dos fenômenos do mundo (Lopes; Costa; Mol, 2014). A apropriação dos conhecimentos da ciência esbarra nas dificuldades sociais e culturais, não atingindo as diversas parcelas da população. Essa dificuldade, apontada por Rodrigues e Leite (2015), sugere que, no campo educacional, o multiculturalismo é um fator relevante, devendo ser adotado um conjunto de estratégias para incorporar as diferenças sociais e culturais na metodologia de ensino. No multiculturalismo, a aprendizagem está atrelada à reflexão da nossa formação histórica e construção sociocultural, o que negamos e valorizamos (Candau, 2011). Tratando-se da educação em escolas indígenas, esse ponto de entendimento é crucial para a alfabetização científica, pois deve-se envolver os educandos indígenas nos saberes, de modo a dotá-los de conhecimentos e ferramentas que lhes permitam compreender a realidade na qual estão inseridos e sua relação com a sociedade.

A alfabetização científica é um dos pontos chave no ensino de ciência, pois associa a ciência com o cotidiano do aluno, desatrelando o conhecimento baseado meramente em métodos pedagógicos com a apresentação de conteúdos dogmáticos desprovidos de reflexões críticas (Oldoni; Lima, 2017).

Em relação aos elementos que permeiam a cultura indígena, observa-se despreparo dos profissionais da Educação para tratar da temática, porque as universidades ainda apresentam uma defasagem de formação dos docentes para atender às questões multiculturais (Koeppe; Borges; Lahm, 2014). As escolas costumam adotar procedimentos confortáveis em relação a neutralizar a dificuldade de se trabalhar o ensino com a pluralidade e as diferenças culturais (Moreira; Candau, 2003). Tradicionalmente, a cultura indígena trabalha com percepções práticas de mundo, expressando sua origem e conhecimentos através do artesanato e das expressões corporais, como a dança por exemplo. Por essa razão, a prática da alfabetização científica para alunos indígenas requer a adoção de um leque de estratégias, de modo que atendam a esses pressupostos, a fim de suprir as dificuldades de aprendizagem nas áreas da ciência de maneira profunda (Kundlatsch; Silva, 2017). Assim, é importante o desenvolvimento de atividades práticas como forma de complementação do ensino teórico, possibilitando diagnosticar as habilidades dos alunos e suas dificuldades reais na compreensão e nas implicações do tema proposto.

Partindo dessa perspectiva, observamos que as aulas experimentais são ferramentas didáticas relevantes e auxiliam o professor na resolução de situação problema através dos conhecimentos prévios do educando, buscando alcançar a alfabetização científica (Araujo; Chesini; Rocha-Filho, 2014).

Nesse contexto, o ensino de química oferece um rol de atividades que colaboram para essas conformidades; contudo, os livros didáticos das áreas das ciências são produzidos como moldes padronizados da educação brasileira, não considerando os aspectos socioculturais e regionais inerentes aos povos indígenas (Lopes; Costa; Mol, 2014). Os conteúdos escolares apresentados aos educandos indígenas também seguem o mesmo padrão para os nãos indígenas, valorizando excessivamente o uso da escrita em contraposição às atividades práticas típicas da cultura. O ensino de química utilizado na atualidade em escolas indígenas obedece às diretrizes curriculares da disciplina de química do Estado, assim como o plano de trabalho docente (PTD), possibilitando apenas uma visão fragmentada da disciplina de ciências e química e contribuindo pouco para o ensino e aprendizagem do educando indígena.

É importante encontrar alternativas diversas e práticas em relação ao cotidiano da escola, pois a química se aplica na vida do aluno, e esses elementos devem compor as estratégias didáticas de ensino. O ensino de química é um mediador entre ciência e temas significativos que favorecem a compreensão dos aspectos sociais, ambientais, econômicos e tecnológicos, desenvolvendo atitudes e valores na vida do educando (Abreu; Camilo, 2012).

O biogás é um tema científico que possui um amplo campo de estudo e, portanto, torna-se de suma importância que os alunos tenham contato com as diferentes alternativas de produção de energia limpa em seu ambiente escolar (Freitas; Furtado; Cuevas, 2018). Uma relação de conteúdos de química como reações químicas, gases, pH, termodinâmica e processos bioquímicos pode ser abordado dentro da percepção de construção, funcionamento e aplicação do biodigestor, proporcionando aos educandos indígenas um aprendizado significativo por meio da relação dos conteúdos com soluções de problemas reais. Segundo Paixão, Batista e Cruz (2019), torna-se indispensável que as escolas formem discentes alfabetizados em Ciência e Tecnologia, na intenção de que possam vir a compreender e participar ativamente das tomadas de decisões sobre os problemas que afligem a sociedade moderna.

De acordo com Lima e Moita (2011), muitas vezes, os conteúdos complexos de Química são negligenciados, sendo trabalhados de maneira superfcial. No entanto, se trabalhados de forma planejada, podem contribuir para que os alunos se apropriem de conteúdos sociais e culturais de maneira crítica e construtiva. Uma das formas de se promover isso é por meio do emprego das tecnologias disponíveis como ferrramentas pedagógicas, possibilitando ao aluno o acesso a novos conhecimentos de forma dinâmica, autônoma, prazerosa e atual. Os autores destacam ainda que a grande variedade de recursos midiáticos e suas diversas aplicabilidades proporcionam aos docentes a criação de didáticas inovadoras, favorecendo e auxiliando no desenvolvimento de competências e habilidades dos alunos, uma vez que muitos desses recursos já fazem parte de seu meio sociocultural.

Por essa razão, a proposta do trabalho foi investigar os impactos positivos do uso de um biodigestor didático no processo de ensino e aprendizagem de química para estudantes do ensino médio de escolas indígenas, juntamente com o uso de técnicas de desenho e animação através do aplicativo Gacha Studio. Assim, o objetivo foi que os educandos, ao final da pesquisa, dominassem os princípios básicos de conteúdos complexos de química, com entendimento de fenômenos do cotidiano associado com a construção do biodigestor. Dessa maneira, há a relação entre a teoria e a prática pedagógica, permitindo a formação humana e socioambiental.

Procedimentos metodológicos

O estudo foi conduzido no Colégio Estadual Indígena Fég-Prag Fernandes, localizado na Reserva Indígena Rio das Cobras, na aldeia Campo do Dia, no município de Nova Laranjeiras/PR, durante o período de agosto a dezembro de 2018.

A estratégia pedagógica adotada no presente trabalho visou à inclusão de mecanismos práticos em conteúdos teóricos complexos da disciplina de química, tendo como objetivo, gerar discussões, questionamentos e respostas para as explicações dos fenômenos químicos. Uma vez que se observa uma grande habilidade para execução de tarefas manuais nos educandos indígenas, a proposta objetiva tornar o processo de ensino e aprendizagem num mecanismo de reflexão e educação ambiental, nesse caso, possibilitando a obtenção de energia limpa e renovável a um baixo custo.

A proposta desenvolvida se encaixa no âmbito de projeto de ensino e extensão, pois trabalhou conteúdos sobre questões pertinentes e importantes para o desenvolvimento acadêmico e estabeleceu um relacionamento entre a instituição e a comunidade em que está inserida, sensibilizando para a questão indígena. A pesquisa tem natureza do tipo exploratória, pois investiga o fenômeno de ensino aprendizagem através da prática de fenômeno já conhecido, isto é, o uso e obtenção de tecnologias e energia limpa. O procedimento adotado foi o de pesquisa-ação, pois para além de compreender um problema levantado na pesquisa, visa intervir na situação estudada a fim de modificá-la. Ela consiste da associação de uma ação com a resolução de um problema coletivo, seja social, cultural ou pedagógico.

As ações foram executadas com alunos indígenas da segunda série do Ensino Médio, levando em consideração os conhecimentos prévios teóricos aplicados em sala de aula. Os encontros foram realizados na escola, sob a supervisão e orientação do professor regente, representando o elo entre o licenciando e o espaço escolar, de forma a auxiliar e explicar os objetivos das ações realizadas com os educandos indígenas num período de seis encontros com oito horas/aula totais.

Na produção do material, os educandos indígenas foram divididos em dois grupos, sendo um grupo responsável pela construção de cortes e medidas para o material necessário, e o segundo grupo sendo responsável pela montagem das peças, confeccionando e finalizando o dispositivo do biodigestor. Os alunos acompanharam e contribuíram com o experimento desde a parte inicial até os resultados finais, incluindo: montagem do biodigestor, confecção do roteiro e animação, elaboração de hipóteses e apresentação de resultados. Nessas ocasiões, foram ministradas aulas sobre os conceitos químicos na abordagem do projeto e, em seguida, com maior entendimento, os alunos iniciaram a construção do biodigestor didático. Essa estratégia de ensino visa realizar discussões com os educandos indígenas sobre fontes diversas de obtenção de energia limpa, utilização de compostos orgânicos, redução da dependência de combustíveis fósseis e do desmatamento. Outros conteúdos explorados na disciplina de química foram os fenômenos que ocorrem dentro do biodigestor, como processo de produção do gás metano, velocidade das reações químicas e diferentes tipos de respirações. O intuito foi despertar no educando sua responsabilidade social e ambiental, além de mostrar a importância das aulas práticas e experimentais no auxílio da compreensão dos conteúdos complexos da disciplina de química.

O biodigestor didático foi confeccionado a partir da utilização dos seguintes materiais:

  • 1 bombona plástica de 50 litros;
  • 1 flange de 25mm;
  • 2 flanges de 20mm;
  • 1 conexão T de 20mm;
  • 3 caps. de 20mm;
  • 2 registros válvulas de 20mm;
  • 2 registros válvula de 25mm;
  • 2m de cano de PVC de 20mm;
  • 1m de cano de PVC de 25mm;
  • 2 conectores joelho de PVC de 20mm;
  • 2 abraçadeiras para mangueira;
  • 1m de mangueira de baixa pressão;
  • 1 válvula de saída de gás;
  • 1 tubo de cola plástica.

Os procedimentos de construção do biodigestor são representados na Figura 1, com o seguinte protocolo:

Etapa 1: utilize uma serra copo com o diâmetro de 25mm, acoplada na furadeira e perfure a bombona plástica a uma altura de três cm a partir da base. Em seguida, perfure a bombona plástica com uma serra copo com diâmetro de 20 mm, a uma altura de 10,5 cm a partir da base.

Etapa 2: faça também duas perfurações com a serra copo, com o diâmetro de 20 e 25mm na tampa da bombona plástica, sendo a perfuração de 25mm no centro da tampa e a perfuração de 20mm, ao lado.

Etapa 3: monte os flanges de 20 e 25mm na bombona, conectando também os registros de válvulas de 20 e 25mm aos flanges.

Etapas 4 e 5: monte os flanges de 20 e 25mm na tampa e conecte o registro de válvula de 20mm ao flange de 20mm. Depois, conecte a mangueira de gás com a abraçadeira na saída do registro de válvula de 20mm. Na outra parte da mangueira, instale o registro de saída de gás, fixando-o com a abraçadeira.

Etapas 6 e 7: após construir a pá revolvedora do composto orgânico na tampa, solde um cano de PVC de 35cm de comprimento e diâmetro de 25mm ao flange central da tampa interna. Utilize um cano de PVC com diâmetro de 20mm, com 90cm de comprimento, para a confecção da pá revolvedora. Na parte superior do cano de PVC de 90cm de comprimento, solde um conector T de PVC de 20mm. Em seguida, solde dois pedaços de PVC de 20mm e 15cm de comprimento, cada, em cada lado da saída do conector T. Solde um cap. de PVC com diâmetro de 20mm na extremidade de um lado do cano soldado no conector T e, na outra extremidade, solde uma curva de PVC de 20mm. Na saída dessa curva, solde um cano de diâmetro de 20mm, com 5cm de comprimento e finalize soldando um cap. de diâmetro de 20mm na extremidade do cano. Na parte inferior do cano de PVC, solde uma curva de PVC com diâmetro de 20mm. Nessa curva de PVC, solde um cano de PVC de diâmetro de 20mm com 15cm de comprimento e, na outra extremidade do cano, solde um cap. de 20mm.

Etapa 8: com a finalização da confecção da pá removedora, coloque-a dentro do flange de 25mm fixado no centro da tampa, acople a tampa e fixe a cinta de vedação na bombona.

Figura 1: Etapas da construção de um biodigestor didático

Após a etapa de montagem do biodigestor, iniciou-se a atividade de produção de animação como ferramenta de ensino-aprendizagem em química e desenvolvimento de responsabilidade social. O primeiro passo foi definir um roteiro relativo à obtenção de energia limpa atrelando a história à realidade das comunidades indígenas, definindo-se os personagens e o tempo de duração. Num segundo momento, procurou-se determinar quais recursos dentre bonecos, desenhos ou objetos seriam utilizados para desenvolver o roteiro. Como programa de edição, adotou-se o uso do aplicativo Gacha Studio para criar as lâminas ou frames de animação, a partir de templates de personagens chamados de avatares. Na escolha dos personagens, procurou-se selecionar avatares com características similares à aparência dos educandos indígenas: trejeitos, forma de vestimenta, cor de cabelo e pele. O Gacha Studio utiliza a técnica movimento parado para simular o movimento de um objeto inanimado por meio de um sequencial de fotografias de diferentes posições do objeto. Essas fotografias são chamadas de frames ou quadros, sendo fotografadas a partir de um mesmo ponto, inserindo-se pequenas mudanças e/ou leves alterações no objeto, dando a ideia, após a sequência dos frames, de movimento. Os frames produzidos foram organizados em sequência pelo software Power Point, com transição de quadros de slide de três segundos, criando a ilusão ótica que é conhecida como persistência da visão, em que um objeto visto pelo olho humano persiste na retina por uma fração de segundo após a sua percepção. Dessa maneira, quando assistimos a uma sequência de imagens de algum objeto projetado a 12 quadros por segundo, o nosso cérebro é “enganado”, causando a sensação de movimento em filmes e animações.

Resultados e discussão

A primeira etapa desenvolvida para a realização deste trabalho foi a pesquisa de campo, de modo observativo, a fim de constatar as reais dificuldades dos educandos indígenas no ensino e aprendizado de Química. Para isso, foram agendadas visitas nas escolas indígenas, conversas com direção e educadores atuantes nas áreas das ciências, de forma a identificar dificuldades relacionadas à disciplina de química, bem como propor o desenvolvimento de uma metodologia de ensino que atendesse a essa demanda.

A fim de desenvolver uma proposta de ensino atrelada aos conhecimentos culturais do educando, realizamos conversas também com professores indígenas, os quais nos relataram que a principal dificuldade dos alunos em aprender conteúdos complexos de química está relacionada com a interpretação de algumas palavras da língua portuguesa. De acordo com os estudos de Souza e Bruno (2017) relativos à construção da identidade dos alunos indígenas Guarani, Kaiowá e Terena, por exemplo, é recorrente nos discursos dos professores indígenas o relato do insucesso ou fracasso escolar nos campos da leitura e da escrita.

Outro fator, não menos importante, relatado pelos educadores indígenas foi a dificuldade dos alunos em aprender temas complexos apenas de forma teórica, uma vez que a educação escolar indígena milenar é ensinada através da visualização, da prática e da oralidade. A educação sempre esteve presente na cultura indígena, porém de maneira espontânea, o que justifica tal dificuldade. O processo de ensino-aprendizagem da criança indígena se inicia no meio das relações sociais e familiares e por inciativa própria de conhecer os ritos, saberes míticos e tradicionais, juntamente com os costumes, leis e valores que os mais velhos ensinam por meio da oralidade (Souza; Paiva, 2013). A observação e a imitação também fazem parte do processo de aprendizagem, não havendo prazo, avaliação e horário estipulado (Souza; Bruno, 2017). Dessa forma, as crianças indígenas aprendem e ensinam umas às outras o que aprenderam com seus antepassados, por meio da relação entre mais velhos e mais novos.

Em relação ao perfil dos educadores, a direção escolar nos respondeu que a rotatividade ou substituição dos mesmos é muito baixa nas escolas indígenas, sendo que a maioria dos profissionais das áreas das ciências são formados e licenciados nas disciplinas em que atuam. Observamos também dificuldades enfrentadas nas escolas indígenas quanto à estrutura física, pois não existe laboratório, biblioteca e tampouco um espaço adequado para a prática da educação física. As limitações estruturais escolares dificultam a metodologia pedagógica, sendo um desafio aos educadores propor métodos alternativos de ensino no ambiente escolar. Embora existam alguns recursos multimídia disponíveis nas escolas, como TV, datashow, computador, percebe-se a pouca utilização deles por parte de educadores e educandos, devido à falta de manutenção, ficando muitas vezes o educador restrito apenas a quadro-negro, giz e livros didáticos.

Por meio dessas informações e observações, iniciamos a segunda etapa do projeto, que foi o desenvolvimento tanto da parte teórica, quanto prática, da construção do biodigestor didático. O próximo passo foi abordar, em sala de aula, com os educandos indígenas, temas ligados à obtenção de energia limpa, sendo para isso, discutidos os fundamentos básicos das reações químicas envolvidas no processo de fermentação de um biodigestor. Nessa aula, utilizamos recursos multimídia como datashow, computador e quadro negro; apresentando imagens e modelos de biodigestores existentes atualmente.

A partir da aula teórica, foi possível a montagem do biodigestor didático pelos próprios educandos, com a participação e orientação do professor regente, em aula cuja finalidade era a de atrelar o conhecimento teórico ao prático (Figura 2). Esse encontro se fez necessário, uma vez que a visualização do método de construção do biodigestor trabalha a prática e a criatividade do aluno, tendo como resultado muito mais perguntas, dúvidas e participação por parte dos mesmos durante o processo. Os conteúdo didático aplicado em aulas práticas, atrelados ainda aos conhecimentos cotidianos dos alunos, torna os assuntos complexos de química mais agradáveis e palatáveis, facilitando a sua apropriação pelos estudantes.

Figura 2: Montagem do biodigestor didático pelos alunos da 2ª série da escola Feg-Prag

No trabalho de Paixão, Batista e Cruz (2019) com alunos do Ensino Médio, os autores constataram que os estudantes não tinham inicialmente conhecimentos sobre os problemas ocasionados pelo descarte inadequado dos dejetos e de matéria orgânica, e nem de como transformá-los em energia. Os autores relataram que, durante a construção do biodigestor, além da consolidação de aprendizado de vários conteúdos relacionados à mátéria de química (conversão de energia, reações bioquímicas, digestão anaeróbia, conceitos de cinética, entre outros), os alunos conseguiram articular e refletir sobre os conhecimentos de base, sendo capazes de elaborar hipóteses, argumentos e conclusões para a construção do biodigestor. Moro, Coppi e Prsybyciem (2019) também observaram que a aprendizagem dos alunos do ensino médio durante a construção do biodigestor foi realmente significativa, uma vez que os alunos foram protagonistas de descobertas e mentores da construção do dispositivo; estabelecendo relações entre os conteúdos das diversas áreas estudadas e sua aplicabilidade.

Outro recurso inovador e tecnológico aplicado em sala de aula, pós-montagem do biodigestor didático, foi a utilização do software Gacha Studio. Esse aplicativo permite que seu usuário crie seu próprio avatar a partir de seu estilo favorito; cenários; e animações, por meio de histórias em quadrinhos. Dessa maneira, o software foi utilizado para criar um ambiente escolar com avatares escolhidos pelos educandos indígenas, a fim de iniciar uma narrativa histórica, explicando os meios de obtenção de energia limpa, bem como, os processos químicos e biológicos que ocorrem durante a fermentação do composto orgânico (Figura 3).

Na última etapa, houve a tradução da história fictícia do português para o kaingang, com auxílio dos professores indígenas, para que a narrativa histórica tivesse uma melhor compreensão, facilitando a assimilação dos conteúdos abordados. Dessa maneira, com a finalização do processo de confecção do material e sua tradução, o material adotado como recurso didático ficou disponível para a socialização com os demais alunos da escola (Figura 4).

Figura 3: Introdução ao funcionamento aplicativo e confecção do roteiro histórico

Figura 4: Apresentação do roteiro de animação realizado no aplicativo Gacha Studio pelos alunos, a partir dos conceitos do biodigestor

Nos estudos de Lima e Moita (2011), alunos do 3º ano do Ensino Médio, utilizando jogos digitais no conteúdo tabela periódica, demonstraram que, na relação de aprendizagem entre o exercício escrito e o jogo digital, 67% dos alunos afirmaram que o jogo gerou mais aprendizagem que o exercício, e 11%, disseram que o exercício escrito contribuiu para uma melhor aprendizagem; outros 11% considerarm que os dois instrumentos avaliativos desenvolveram a aprendizagem, e os demais 11% da amostra afirmaram que um instrumento completa o outro. Tais resultados revelam a contribuição e o potencial que o jogo digital pode oferecer para o processo de ensino e aprendizagem.

De acordo com Johnson (2001), nossa memória visual é muito mais duradoura que a memória textual. Então, os jogos, uma vez que já fazem parte do nosso dia a dia e estão presentes nos mais diversos lugares, seja em casa, em lan houses, games e aplicativos, são capazes de estimular a nossa memória visual, contribuindo para a construção de novos conhecimentos. Além disso, a inserção dos recursos tecnológicos no ambiente escolar, por meio da utilização do jogo digital, como recurso didático para o ensino de química, por exemplo, permite ao docente trabalhar com vários fatores, entre eles o prazer de aprender brincando, diagnosticar criticamente a realidade, o conteúdo cognitivo e simbólico, a capacidade de memória, a coordenação visual e motora, a criatividade, entre outros (Lima; Moita, 2011). Dessa forma, os jogos digitais, desde que direcionados à aquisição de conhecimentos, podem ser inseridos no meio escolar como instrumentos educativos.

Considerações finais

A práxis pedagógica aplicada durante a realização deste trabalho visou discutir a problematização da educação escolar indígena em seu ambiente. Para se estabelecer as relações entre ensino e aprendizagem, o respeito cultural deve ser mútuo entre educando e educador, adequando o espaço escolar de forma a revitalizar a afirmação e identidade da cultura indígena, alicerçados aos seus conhecimentos tradicionais.

Dessa maneira, observou-se a importância da experimentação de aulas práticas em sala de aula com educandos indígenas, contribuindo no processo de ensino-aprendizagem e na internalização dos conceitos complexos de química. Além disso, a observação e participação coletiva dos alunos em todas as etapas, desde a confecção do biodigestor até a animação dos processos químicos, através do uso de software, promoveu a socialização dos conteúdos propostos de química, despertando o senso crítico social, bem como, sua responsabilidade socioambiental.

Durante e após a montagem do biodigestor observou-se o interesse e a vontade de participação na construção dos conhecimentos relacionados aos processos químicos e biológicos, referentes à fermentação, reações químicas e produtos finais. Assim, o molde educacional atual, engessado e voltado somente à metodologia de ensino tradicional teórico, aos poucos, foi se desfazendo, criando uma nova perspectiva de práxis pedagógica, que valoriza não só o sujeito, mas também sua bagagem cultural.

Quando o educador considera a troca de conhecimentos pautada no pluralismo social e étnico dentro da escola, desenvolve-se o caráter mediador do processo ensino-aprendizagem, levando a práticas inovadoras, que culminam em uma aprendizagem significativa. Portanto, a familiaridade com os procedimentos de investigação e com o processo histórico de produção e disseminação de conhecimentos apresenta grande relevância na formação dos futuros professores. É responsabilidade do educador nos vários contextos de sua atuação, o aprimoramento quanto ao desempenho das funções de docência em diferentes níveis de ensino, utilizando-se de diversas ferramentas pedagógicas. As ferramentas educacionais possibilitam o desenvolvimento do espírito crítico, raciocínio científico e criatividade, desvinculando o educador do mero papel de transmissor de conhecimento e transformando-o num agente modificador da sociedade.

Referências

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Agradecimentos

À Escola Estadual Indígena Fég-Prag Fernandes, pela abertura do espaço escolar para a realização deste estudo. Ao Professor Dr. Thiago Bergler Bitencourt, da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), pelas valiosas considerações e sugestões prestadas, que guiaram a confecção final deste trabalho.

Publicado em 12 de janeiro de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

LIMA, Cerílio Barbosa de; MONSKOLSKI, Alexandre; FRANÇA, Jakeline Galvão de; MENDES, Marciane Maria. Uso de biodigestor didático e técnica de animação para ensino de Química aos educandos indígenas. Revista Educação Pública, v. 21, nº 1, 12 de janeiro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/1/uso-de-biodigestor-didatico-e-tecnica-de-animacao-para-ensino-de-quimica-aos-educandos-indigenas

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