A pandemia da covid-19 e os desafios de avaliar a aprendizagem

Márcio Andrade Lyrio Baldes

Especialista em Gestão Escolar (Faetec). Licenciado em Pedagogia (UENF). Licenciado em Geografia (IFF), professor de Geografia, Filosofia e Sociologia (SEEDUC/RJ) na Escola Estadual Visconde de Quissamã

Um dos assuntos mais polêmicos da educação é a avaliação. É uma das questões que mais geram dúvidas entre os professores. Neste artigo, veremos que existem algumas confusões ou incompreensões que precisam ser mais bem esclarecidas e os desafios de avaliar em uma situação calamitosa como a que estamos enfrentando. Estou nessa condição porque sou docente da Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro e estou passando por dificuldades muito semelhantes às que estão sendo encaradas por inúmeros colegas no país. No contexto da pandemia, a alternativa encontrada para ofertar ensino foi o modo remoto. O resultado em 2020 não agradou porque muitos alunos foram excluídos por não terem acesso à Internet ou por terem acesso limitado. Os sistemas de ensino foram pegos de surpresa e tiveram grandes dificuldades para reorganizar o ensino, e os professores tiveram problemas com a nova metodologia e a nova realidade.

Para o professor Cipriano Carlos Luckesi, os professores geralmente pensam estar avaliando os alunos, quando, na verdade, estão apenas examinando. Essa diferença será analisada mais adiante. Outros pesquisadores apontam a necessidade de mudar a forma de verificar a aprendizagem, pois argumentam que os tempos são outros e o aluno não é mais o mesmo de décadas e até de séculos anteriores. Hoje sabemos que existem múltiplas inteligências e que as competências ultrapassam a mera memorização conceitual. As exigências do mundo do trabalho e da sociedade são outras e a escola precisa acompanhar a locomotiva do progresso. O processo de avaliar tem implicações cognitivas, socioemocionais e ideológicas que nem sempre são compreendidas pelos educadores. Agimos, muitas vezes, sem saber, de modo tradicional ou convencional, da maneira que aprendemos na faculdade. Isso é um equívoco. Repensar as práticas avaliativas é essencial para alcançar melhores resultados na educação.

Primeiramente, a ideia é apontar as diferenças entre o ato de avaliar e o ato de examinar, bem como outras teorizações pertinentes. Apresentar sucintamente algumas teorias que afetam o processo de avaliação da aprendizagem. São assuntos abordados pela Filosofia, Pedagogia, Psicologia e Neurociência. No segundo momento, as abordagens são as questões relativas a pandemia, ensino remoto e avaliação nesse contexto de calamidade. Trata-se de uma análise teórica e contextualizada, com o objetivo de esclarecer pontos de incompreensão e atrito no corpo docente.

Avaliação da aprendizagem: apontamentos teóricos

Antes de adentrar o mérito da avaliação, cabe aqui tecer algumas considerações acerca da aprendizagem. Filosoficamente, algumas concepções enquadram a aprendizagem como um processo inato ou natural, enquanto outras consideram seu caráter aquisitivo pela experiência ou interativo. O que temos de mais evidente é o fato de todos aprenderem. A complexidade aparece mais quando discutimos os modos de aprender, que variam conforme os perfis de pessoas e contextos sociais. Para entender o processo de aprendizagem, é necessário considerar o perfil do aprendiz, a qualidade do ensino e o contexto sociocultural, dentre outras características. É um processo interno do indivíduo, mas não depende somente dele, há uma combinação de fatores, de elementos que fazem a mediação; o professor é um desses elementos importantes. O autodidata somente tem mais autonomia que os demais, pois até mesmo ele é influenciado por um conjunto de fatores externos. O processo de educação somente tem sentido porque acreditamos que por meio dele conseguimos intervir na aprendizagem dos estudantes. As características inatas existem, porém são apenas predisposições ou tendências para determinadas atividades. Classificar os alunos em capazes ou incapazes é um erro histórico que precisa ser reparado o quanto antes pelos sistemas de ensino. Essas concepções filosóficas apontadas são explicadas na sequência por Cláudia Davis e Zilma de Oliveira no livro Psicologia na Educação:

A concepção inatista parte do pressuposto de que os eventos que ocorrem após o nascimento não são essenciais e/ou importantes para o desenvolvimento. As qualidades e capacidades básicas de cada ser humano – sua personalidade, seus valores, hábitos e crenças, sua forma de pensar, suas reações emocionais e mesmo sua conduta social – já se encontram basicamente prontas [...]; a concepção ambientalista atribui um imenso poder ao ambiente no desenvolvimento humano. O homem é concebido como um ser extremamente plástico, que desenvolve suas características em função das condições presentes no meio em que se encontra [...]; os interacionistas discordam das teorias inatistas, por desprezarem o papel do ambiente e das concepções ambientalistas porque ignoram fatores maturacionais. Os interacionistas destacam que o organismo e o meio exercem ação recíproca (Davis; Oliveira, 1994, p.27-36).

O inatismo peca em praticamente desconsiderar a influência do ambiente; o ambientalismo ou empirismo peca ao dar muita ênfase à influência do ambiente. Os interacionistas consideram a influência biológica e a interferência do ambiente na formação do homem, entretanto afirmam que há uma troca permanente entre o interior humano e o exterior; portanto, o conhecimento não surge no nascimento e não é adquirido; ele é construído gradualmente na interação entre o sujeito e o objeto. O inatismo repercutiu na escola criando a crença de que o aluno com alto potencial intelectual desenvolve por si só, sem muito auxilio do professor, algo que não corresponde à realidade. Ainda conforme essa concepção, o aluno tido como incompetente natural tende a ser negligenciado, pois seria um desperdício de tempo e esforço ensinar a ele. O empirismo fez crescer as expectativas sobre o professor, pois o aprendizado do aluno depende da experiência que lhe é proporcionado pelo docente; se o ensino é bom, ele aprende; do contrário, é culpa do professor que não sabe ensinar. O interacionismo coloca professor e aluno quase que no mesmo patamar, o docente perde aquele poder que sempre lhe foi atribuído e passa a ser entendido como um entre muitos elementos mediadores da aprendizagem. O aluno é visto como ativo na própria aprendizagem. Há corresponsabilidade entre docente e discente, e um contexto sociocultural que desempenha papel importante, mas de modo algum determinante.

Agora sim, depois que falamos de aspectos da aprendizagem, podemos tratar da avaliação. Vale ressaltar que há uma diferença fundamental entre avaliação e exame. O exame é centrado na prova como único instrumento, é centrado nos dados quantitativos e cria uma situação de classificação de melhores e piores. O lugar dos “melhores” é o ponto alto do pódio; o lugar dos “piores” é a exclusão ou o estigma de incapaz (popularmente conhecido como burro ou idiota). O processo de avaliação tem amplos instrumentos, considera a aprendizagem como um processo construtivo e visa promover, ao invés de excluir os aprendizes. A primeira perspectiva caminha na direção da seletividade, classificação e exclusão. A prova é entendida como mecanismo de controle e punição. O professor, por vezes, usa o exame como meio de punir o aluno ou deposita muitas expectativas na validade do processo, a nota alta é sinal de êxito do ensino, a nota baixa é sinal de erro do ensino e muitas vezes é motivo de sentimento de culpa do docente. Não é bem assim, pois o fracasso do aluno não é responsabilidade somente do professor, muito menos somente do aluno. É uma situação gerada por um conjunto indissociável de fatores. A culpabilização docente e a estigmatização do aluno são situações que surgem da incompreensão do assunto. Adquirir essa consciência dos limites e possibilidades do ato de avaliar é um passo decisivo para alcançar os objetivos de aprendizagem. Nesse contexto, cabe aqui apresentar o conceito formulado pelo professor Cipriano Carlos Luckesi em seu livro Avaliação da Aprendizagem Escolar:

O ato de examinar tem como função a classificação do educando minimamente em “aprovado ou reprovado”; no máximo, em uma escala mais ampla de graus, tais como as notas [...]. Ao ato de examinar não importa que todos os estudantes aprendam com qualidade, mas somente a demonstração e classificação dos que aprenderam e dos que não aprenderam [...]; o ato de avaliar tem como função investigar a qualidade do desempenho dos estudantes, tendo em vista proceder a uma intervenção para a melhoria dos resultados (Luckesi, 2011, p. 62).

O que chama a atenção é o caráter controlador do exame, a crença de que a prova controla o comportamento do aluno, obrigando-o a se ajustar ao ensino, na medida em que necessita ser aprovado. É claro que a coerção promovida pela prova move de alguma forma os alunos, cria um sentido de obrigação ou de dever; no entanto, o medo difere da responsabilidade. Estudar por medo de ser reprovado é diferente de estudar voluntariamente para aprender. O desejo natural de aprender é substituído por um senso prático que faz com que os alunos estudem por obrigação ou por necessidades mais utilitárias. Além desse pragmatismo, a prova faz com que os estudantes estudem sob pressão; esse impacto afeta os mais sensíveis e desestimula os estudantes com históricos de péssimo resultado. Então a solução é acabar com a prova e aprovar todos? Não é por aí; na verdade, o ideal é evitar superestimar os exames e não menosprezar os alunos reprovados. A ideia é usar o instrumento de modo consciente, compreendendo suas limitações, procurando ajustar e entender que existem outras maneiras de avaliar. A pesquisadora Jussara Hoffmann tem uma visão sobre avaliação que reforça as ideias colocadas por Cipriano Luckesi, como podemos constatar no trecho de sua obra Avaliação: mitos e desafios:

Configura-se a avaliação educacional, a meu ver, em mito e desafio. O mito é decorrente de sua história que vem perpetuando os fantasmas do controle e do autoritarismo há muitas gerações. O desafio, por outro lado, é superar essa história e aprofundar-se nos pressupostos teóricos que fundamentam a avaliação na concepção mediadora (Hoffmann, 2017, p. 35).

Na concepção da autora, a avaliação sempre teve associação com o autoritarismo e com o controle. Se lembrarmos do nosso passado colonial, vamos verificar uma influência forte da educação jesuítica e posteriormente as influências das ditaduras republicanas. A escola responde ao contexto social do momento histórico em que ela está inserida. É um mito porque há uma crença de que essa forma de agir é a mais adequada. Muitos entendem a educação como um processo de sujeição do ser ao controle do comportamento. É uma crença de modelagem do comportamento pela disciplina rígida, seja de conduta ou de estudo. Nostalgicamente, muitos relembram dos tempos de escola na ditadura varguista ou militar ou até mesmo de períodos não ditatoriais anteriores. É um saudosismo e uma crença na eficácia dos métodos tradicionais. O desafio é romper com esse processo, isto é, criar um ambiente mais acolhedor, evitar o controle excessivo e conceder mais liberdade aos alunos. Nesse sentido, devem prevalecer os aspectos mais qualitativos sobre os quantitativos. Enfim, a ideia é promover e não excluir. Nessa perspectiva, o erro deixa de ser visto como mera punição e passa a ser visto como parte do processo de desenvolvimento do educando.

A visão de aluno como capaz e incapaz cresceu a partir da popularização dos testes psicométricos usados para determinar o QI (quociente de inteligência). A partir de então, os alunos começaram a ter suas inteligências classificadas conforme uma escala de desempenho. Assim, é como se cada um tivesse seu destino escolar traçado por um exame. Nessa perspectiva, a inteligência é entendida como única e geral. O foco desses testes é o conjunto de habilidades matemáticas e linguísticas. É como se o teste de QI fosse um indicador de ótimos ou péssimos resultados em testes escolares. Tanto o primeiro como o segundo centram-se na dimensão quantitativa e excluem outras habilidades vitais para a vida social. Contrapondo-se a essa perspectiva, a teoria das inteligências múltiplas aparece para mostrar que o cérebro e a mente humana são multifacetados e possuem conjuntos amplos de habilidades. Há a inteligência lógica, espacial, linguística, intrapessoal, interpessoal, corporal, naturalista, entre outras. Essa nova visão supera a anterior, que coloca muita expectativa em um teste de habilidade. O pensamento hoje caminha no sentido de uma avaliação global da inteligência, com dados objetivos, observáveis e considerando o contexto sociocultural. Para entender melhor os conceitos de inteligência apresentados, trago algumas ideias contidas no livro Pedagogia dos Projetos, de Nilbo Ribeiro Nogueira:

Muitos defensores do teste de QI. de alguma forma, se apoiaram no desempenho dos alunos nas escolas. Exemplificavam suas crenças com situações parecidas com a descrita em seguida: Sujeito “X”, ao realizar o teste de QI, obteve score igual a 120. Sujeito “Y”, ao realizar o teste de QI, obteve score igual a 90. Com base nesses resultados, eles previam o sucesso do sujeito “X” e o fracasso de “Y” nos bancos escolares. Por incrível que possa parecer, na grande maioria das vezes essa previsão realmente se concretizava. [...] Realizada uma análise mais apurada nos testes de QI, verificou-se que eles basicamente tratam de situações voltadas à lógica-matemática e à linguística [...]. Com a fragilidade e a incoerência demonstradas hoje pelo QI e pela concepção de inteligência como algo único, Gardner (1994) propõe então a teoria das inteligências múltiplas, em que agora a inteligência passa a ser encarada como um espectro de competências (Nogueira, 2005, p. 36-38).

Constata-se, a partir do exposto, que os testes de QI privilegiam algumas capacidades humanas enquanto negligenciam outras. Há uma correlação entre aquilo que os testes medem e o que é exigido nas escolas; por isso, o QI sempre deu certa direção do que poderia acontecer na trajetória escolar. Centrar-se apenas na lógica e na linguagem é um equívoco, pois existem muitas habilidades. Gardner percebeu que muitas pessoas conseguiam sucesso mesmo sem serem brilhantes na Matemática ou em línguas; elas eram extremamente habilidosas na música, na arte em geral, no esporte, na forma de liderar pessoas e na maneira de lidar com os próprios sentimentos e pensamentos. A partir disso, propôs a teoria das inteligências múltiplas, com o seguinte conjunto de inteligências: lógico-matemática, linguística, espacial, corporal-cinestésica, interpessoal, intrapessoal, naturalista e existencial. Cada uma delas tem um conjunto particular de habilidades. O teste de QI não deixou de existir, mas hoje há o entendimento de que a avaliação da inteligência requer a combinação de testes, observações, entrevistas, etc.

Outra visão desconstruída é aquela relacionada à aprendizagem como resultante dos sentidos e da experiência direta com o meio social, como se o aluno fosse um recipiente que vai sendo preenchido pelo professor; algo semelhante à concepção bancária de Paulo Freire. O professor transmite e o aluno passivamente recebe. A teoria psicogenética ou sociointeracionista considera que o conhecimento é resultante da ação, da interação entre o sujeito e o meio físico e social. Ninguém aprende sozinho, ninguém aprende somente escutando o professor, posicionado numa cadeira, apenas contemplando a aula. Para aprender, o aluno precisa vivenciar as experiências que são transmitidas pelo professor. No mínimo, as informações necessitam ser passadas de maneira contextualizada. Na visão de Paulo Freire, o professor deve considerar a vida do aluno, seus conhecimentos prévios. Portanto, é possível compreender do exposto que aprendizagem não é um ato solitário, não deve ser confundida com mera aquisição de informações; muito menos devemos pensá-la como sendo um processo transmissivo e receptivo. Nesse contexto, o avaliar deve se dar em conformidade com a realidade do aluno, deve prever a prática ou a ação, o protagonismo ou participação ativa do aluno, etc. Se o aprendiz é um ser com múltiplas habilidades e características, o ideal é não repetir o instrumento; é ajustar ao máximo à realidade dos alunos e procurar dar conta de variar as abordagens ou métodos.

É preciso esclarecer melhor a concepção bancária; segue uma consideração sobre o assunto:

O início na prática docente certamente é marcante para todo professor. Os desafios encontrados em sala de aula são dessemelhantes do que imaginamos. O professor iniciante, prepotentemente, adota princípios da educação bancária fundamentada no depósito de informações. Nesse contexto, a realidade do aluno é tratada como algo estático, compartimentado e distante de sua experiência existencial [...]. A necessidade de uma prática dialógica, em oposição à educação bancária, que contribua para a libertação de opressão e transformação em sujeito social cognoscente, não pode acontecer isoladamente. O docente em comunhão com o aluno, na busca do aprendizado, deve alicerçar-se no diálogo, a fim de verificar conteúdos que podem ser aproveitados pelos discentes no seu cotidiano, estruturando uma atuação que permita ações reflexivas e críticas (Purcari, 2019, p. 18).

Comumente os professores principiantes aderem a uma prática bancária sem muitos questionamentos. Isso é uma tendência, não podemos entender como regra fixa. Na verdade, essa prática muitas vezes acompanha o docente por toda a carreira, sem maiores questionamentos. Superar essa concepção de aluno como depósito de informações é fundamental para abrir caminho para a criticidade. Uma avaliação adequada é aquela que afere no educando o pensamento crítico, a criatividade e o raciocínio mais elaborado. O professor, nessa perspectiva, não é apenas uma categoria de transmissor de informações; na verdade, ele é um transformador, é aquele que faz com que o aluno pense crítica e sistematicamente. É um facilitador ou mediador da aprendizagem, um instigador da curiosidade, da reflexão, da investigação e da desconfiança, um provocador ou questionador.

Quando falamos de avaliar, tudo parece ser fácil, não é mesmo? É como se a escola fosse harmoniosa e sem diferenças gritantes. Quem leciona em escola pública tem noção da dificuldade de trabalhar com um público heterogêneo. Cada aluno tem uma facilidade e uma dificuldade. O professor também tem suas defasagens e limitações, decorrentes de traços de sua personalidade e da sua formação acadêmica. É uma necessidade de atualização e conscientização que não é devidamente suprida. O resultado é um trabalho docente sem criatividade, sem criticidade, com o mesmo plano de sempre, os mesmos descontroles emocionais de sempre. Se o aluno não está sendo preparado devidamente, o mesmo podemos dizer dos docentes. Eles avaliam, mas não sabem ao certo o que estão de fato avaliando, apenas se concentram nos dados. O foco não é a competência e a habilidade. Isso é culpa do professor? Claro que não, é falta de formação enquanto se trabalha, no ambiente de ensino. Existe uma crença de que a formação se encerra na faculdade: pensamento completamente equivocado, porque é na prática da reflexão e na reflexão sobre a prática que construímos mais solidamente nossos métodos e comportamentos. Sobre este tema, Francisco Imbernón tece alguns comentários pertinentes:

A capacidade profissional não se esgotará na formação técnica, mas alcançará o terreno prático e as concepções pelas quais se estabelece a ação docente. A formação terá como base uma reflexão dos sujeitos sobre sua prática docente, de modo a permitir que examinem suas teorias implícitas, seus esquemas de funcionamento, suas atitudes etc., realizando um processo constante de autoavaliação que oriente seu trabalho (Imbernón, 2011, p. 51).

A grande questão atualmente não é tanto avaliar, mas sim a finalidade da avaliação num contexto de globalização e mais recentemente de pandemia. Concentro-me, por enquanto, no primeiro. O tipo de “avaliação” caracterizado por uma estratégia de perguntas e respostas fechadas ou abertas parece ter perdido muito sentido no mundo atual. Essa categoria de exame não mede nada além de memorização mecânica de conceitos, fatos e cálculos matemáticos. Aliás, nem isso tem sido tão eficiente nas escolas. O mundo do trabalho exige um trabalhador polivalente e com várias competências e habilidades. A vida social se tornou complexa, com os caixas de autoatendimento bancário, mil burocracias diárias, necessidade de uso de tecnologias em diferentes situações. Temos uma vasta quantidade de analfabetos funcionais, digitais e políticos. Pessoas com dificuldade de interpretação considerável, dificuldade de compreender a realidade e de se posicionar adequadamente frente aos desafios sociais. O objetivo da avaliação não é mais somente verificar o grau de retenção e de recuperação das informações, mas sim demonstrar pensamento crítico, capacidade de compreender o que lê e capacidade de usar os novos recursos tecnológicos. A avaliação deve ter condição de verificar se o indivíduo está ou não no caminho de um comportamento de cidadania, um comportamento inteligente, frente aos novos desafios. O crescimento do educando não deve acontecer somente no âmbito técnico e restrito a algumas habilidades que lhe atendem de imediato. O mundo contemporâneo exige uma avaliação centrada na resolução de problemas e de conflitos, na vivência de situações-problema, na arte da convivência e do diálogo com os diferentes. Para enriquecer essa análise, seguem algumas considerações do livro Aprendizagem na era das tecnologias digitais:

Graças a uma importante transformação no processo produtivo, o trabalhador deixou de ser visto como um “conjunto de músculos” que faz coisas para ser compreendido como um ser pensante que deve ter autonomia, saber intervir no que faz, melhorar cotidianamente o seu desempenho no sentido de obter maior produtividade e melhor qualidade (Baranauskas et al., 2007, p. 48).

A tendência de ampliação das habilidades exigidas no mundo do trabalho tem sido confirmada por inúmeros especialistas, assim como a necessidade de formação continuada. Pensamos muito em avaliar os estudantes e esquecemos que os docentes também precisam ser avaliados; isso vai desde a autoavaliação até a ocorrência de processos de avaliação institucional. As colocações citadas são pertinentes, porém, cabem questionamentos, pois parece que o dito progresso melhorou substancialmente a vida do trabalhador (não melhorou a vida da maioria). Considera uma evolução das relações do trabalho que parecem não se confirmar quando observamos a realidade de muitas empresas que operam ainda no regime fordista de produção. A situação melhorou para uma parte dos trabalhadores. Nesse contexto, Silvia Maria Manfredi, em seu livro Educação Profissional no Brasil, traz muitas contribuições importantes:

Entre os trabalhadores assalariados, podemos distinguir vários grupos: grupos de trabalhadores com níveis elevados de escolaridade (professores, médicos, assistentes sociais). São trabalhadores que, apesar de estarem subordinados cada vez mais a normas, ainda possuem elevado grau de autonomia [...]. Grupos de dirigentes e executivos. Tais trabalhadores comumente têm elevado grau de escolaridade e, dependendo do tipo de organização, maior ou menor poder de controle sobre o processo de trabalho [...]. E trabalhadores que ocupam posições ou postos subordinados e não possuem nenhum controle nem capacidade de decisão sobre o produto do seu trabalho (Manfredi, 2002, p. 45-46).

Cabe a pergunta: o que isso tem a ver com avaliação? Tem relação porque cabe à escola oferecer uma educação em conformidade com os novos tempos e cabe também a ela avaliar de verdade os alunos. Na avaliação, os alunos devem se confrontar com problemas, desafios que os capacitem para um mundo do trabalho competitivo e complexo. Não há mais espaço para pessoas sem autonomia, sem iniciativa. O lugar que essas estão ocupando é aquele apontado por Manfredi: um subgrupo de trabalhadores sem autonomia, sem decisão, explorados. Situação bem diferente do cenário apresentado anteriormente, otimista com relação ao novo posicionamento do trabalhador. É preciso educar para as incertezas ou instabilidades, formar os alunos para tomar decisões, para pensar globalmente e desempenhar funções mais sofisticadas nas empresas e em outras instituições.

Nessa perspectiva, o ensino centrado no aspecto apenas conceitual do currículo e do conteúdo é limitado e não atende adequadamente aos anseios dos alunos e da sociedade. O ideal é contemplar os conteúdos procedimentais e atitudinais também, pôr o aluno em contato com o objeto de aprendizagem, fazê-lo interagir com esse objeto e agir sobre ele. É criar meios que façam os alunos se reconhecerem naquilo que estão estudando e incorporarem o saber em suas atitudes. Essa lógica de ensino exige, obviamente, uma avaliação centrada também no exercício contínuo e sistemático de experiências significativas de aprendizagem, focar mais na pessoa e não tanto no resultado numérico, focar mais na habilidade e não tanto na nota. Você deve estar pensando, isso é impossível de fazer. De fato, é muito difícil, faltam recursos, falta treinamento adequado, falta conhecer bem o aluno e falta, acima de tudo, disposição para a mudança. A tendência do ser humano é acostumar-se com aquilo que já é conhecido e oferece algum resultado que alivie um pouco a consciência. Sabemos ser possível fazer diferente, reconhecemos a necessidade; no entanto, ficamos, muitas vezes, paralisados aguardando mudanças partindo do topo da administração. Nilbo Ribeiro Nogueira analisa esse assunto da seguinte maneira:

De certa forma, ainda somos extremamente conteudistas, pois cumprir 100% de nosso conteúdo ao final do ano letivo parece ser um dos principais objetivos de alguns professores. Objetivo esse, em muitos casos, até mais importante do que o próprio processo de aprendizagem [...]. Os procedimentos expressam um saber fazer que envolve tomar decisões e realizar uma série de ações de forma ordenada e não aleatória, para atingir uma meta. Os conteúdos procedimentais sempre estão presentes nos projetos de ensino [...]. Impossível seria tentar desvincular conteúdos atitudinais das normas e valores, principalmente quando se pensa na escola enquanto centro socializador que possibilita ao aprendiz fazer diferentes leituras e interpretações do mundo em que vive (Nogueira, 2005, p. 17-21).

Na sequência me posiciono acerca desse tema e amarro as ideias já explicitadas. Entendo que a avaliação deve contemplar os diferentes conteúdos: conceituais, procedimentais e atitudinais. Uma prova que somente considera o saber teórico é limitada, pois deixa de verificar se o aluno desenvolveu as atitudes esperadas. Sabe-se que ele assimilou informações, mas não sabe se ele compreendeu o significado ou se ele consegue desenvolver na prática, solucionar um problema de ordem matemática, interpessoal, espacial etc. A avaliação nesse novo contexto de mudanças deve acontecer em forma de experimentação ou teste prático e contextualizado. É fundamental colocar o aluno para participar, expor seus pensamentos, executar tarefas que exigem rapidez na tomada de decisão. É preciso que a avaliação seja uma espécie de simulação da realidade com graus variáveis de complexidade para que consigamos aferir de fato se o aluno possui ou não as habilidades propostas no currículo. Do contrário, estamos desempenhando um trabalho que só adestra os jovens para um mercado de trabalho informal e precário, sem grandes perspectivas de crescimento e sucesso. O ensino e a avaliação precisam passar por um processo de redefinição, contemplando a formação integral dos sujeitos aprendizes.

A avaliação no contexto de pandemia

A pandemia da covid-19 ligou o sinal de alerta acerca dos problemas da educação. A desigualdade escolar passou a ocupar mais espaço nos debates, assim como as diferenças no que se refere ao acesso à Internet. De modo repentino, os professores se viram diante de suas defasagens e dificuldades com maior intensidade, os alunos sentiram a necessidade da presença física do professor e tiveram de lidar com tecnologias diferentes daquelas com que estavam acostumados (redes sociais, games). Todos foram apresentados às plataformas digitais; alguns já dominavam, mas muitos apresentaram alguma dificuldade. A escola teve de se reorganizar em função das novas e temporárias demandas. A discrepância entre o ensino privado e o público chamou atenção da mídia e da população; muitas escolas já contavam com infraestrutura adequada e com professores capacitados. Enquanto isso, outras ainda estavam num modelo mais tradicional. A educação em 2020, para a maioria da população, centrou-se mais em cuidados com higiene difundidos pela mídia do que outras coisas e, por vários motivos, as carências dos alunos mais pobres, a falta de infraestrutura de muitas cidades, a separação física entre professores e alunos. Sabemos que os alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio são mais dependentes e têm possibilidades inferiores de seguir com êxito uma aula online; isso vale para os estudantes das escolas particulares também. A grande pergunta é: como recuperar os conteúdos? Como avaliar os alunos se o ensino foi precário e muitos foram excluídos? Em tempos normais, a avaliação já é complicada; o que dizer de uma avaliação no contexto de pandemia? Essas e outras questões tentarei discutir mais adiante.

Vimos antes que geralmente estamos examinando os alunos, quando deveríamos estar avaliando, isto é, aferindo de fato suas competências e habilidades e usando os resultados para orientar a prática docente. Nem sempre isso acontece; comumente acreditamos fielmente nos testes, por vezes até cegamente. É como se cada aluno fosse uma mercadoria que recebe um selo de qualidade ou não. Aquele que não se enquadra no controle de qualidade é descartado, ou melhor, na realidade educacional, é reprovado. Numa realidade de pandemia, é complicado falar em avaliar, pois não foram dadas as condições adequadas para que ela se efetivasse. Uma condição é a infraestrutura, a outra tem cunho pedagógico. Sabemos que os alunos da Educação Básica não tiveram acompanhamento presencial dos seus professores. Então fica a pergunta: o que fazer? Aprovação automática? Suspensão do ano letivo? Reprovação em massa? Fusão dos anos letivos e oferta dos instrumentos de recuperação dos conteúdos? Muitas dúvidas e poucas respostas. O ano de 2021, para a educação, é uma continuidade de 2020, com o desafio de avaliar mais pelo bom senso do que tecnicamente. A ideia é acolher, manter o vínculo dos alunos com a escola. A avaliação conscientemente deve caminhar na direção da inclusão. Uma certeza tenho sobre esse assunto: o foco deve ser identificar as dificuldades, realizar um diagnóstico. Encher os alunos de testes e atividades avaliativas não é o caminho correto – pelo menos é o que penso. Com base nas dificuldades detectadas, saberemos os trajetos que devem ser seguidos. Tem que compactar conteúdos e priorizar competências, avaliar o estado socioemocional dos alunos diante de um cenário sanitário e político tão desolador que estamos vivenciando.

A educação tem como foco os sujeitos com suas necessidades e limitações. O período de pandemia em curso criou uma sensação de desamparo por conta do medo, do desemprego e das mortes e adoecimentos. É um período atípico que exige da escola uma postura diferente. Essa situação de calamidade é uma oportunidade para dar mais atenção à educação emocional dos alunos, já que a escola tem se dedicado bem mais às habilidades lógica e linguística. Dar suporte emocional e acolher é vital, principalmente em tempos de pandemia. Vimos que as escolas se preocupam demais com os aspectos cognitivos e conteudistas, esquecendo-se de dar também atenção ao atendimento emocional dos alunos ou acolhimento. Este ano de 2021 exige um tipo de currículo adaptado, em consonância com a situação problemática da pandemia. Nada contra a educação voltada para os aspectos técnicos; no entanto, há necessidade de considerar outros aspectos, tanto no ensino como na avaliação. Sobre esse assunto, o médico Augusto Cury (2018, p. 66) afirma: “Eduque a emoção com inteligência. E o que é educar a emoção? É estimular o aluno a pensar antes de reagir, a não ter medo do medo, a ser líder de si mesmo, autor de sua história”. Ele reconhece a importância dos aspectos cognitivos, mas entende que o ensino deve abarcar todas as dimensões do ser. Entendo que talvez este seja o momento mais adequado para repensar os caminhos do ensino e da avaliação. Quem conhece ou já conheceu um professor que usa os testes para amedrontar ou punir os alunos? Aposto que todos conhecemos. É o chamado “poder da caneta”, usando uma linguagem coloquial para ficar mais claro o que estou afirmando.

O assunto é avaliação educacional ou psicológica? As duas coisas juntas. Numa situação de pandemia, todos ou quase todos precisam de uma avaliação psicológica em algum nível. Seria importante promover isso com alunos e professores. Agora é importante deixar claro que a educação da emoção não é terapia, é estimular o aluno a se controlar diante de situações estressantes, aliviar a pressão exercida pelas provas e por aí vai. Antes da pandemia, já aumentavam os números de jovens com depressão e outros transtornos psiquiátricos. Avaliar ou pelo menos considerar isso é fundamental para estruturar o currículo e a avaliação. Para Augusto Cury, a sociedade adoece as pessoas, sobretudo os jovens:

Uma das consequências da hiperconstrução de pensamentos é a simulação de sintomas tais quais as pessoas hiperativas apresentam, como déficit de concentração, inquietação, conversas paralelas, teimosia, dificuldade de se colocar no lugar dos outros e de elaborar experiências de dor, perdas e frustrações [...]. É provável que entre 1% e 2% dos jovens hiperativos tenham um viés genético. Mas por que, então, entre 70% e 80% estão apresentando os mesmos simtomas? São vítimas de um vírus contagiante como nos filmes hollywoodianos? Não! São vítimas do nosso sistema social contagiante, que produz coletivamente a Síndrome do Pensamento Acelerado [...]. Essa sociedade insana e frenética tornou-se algoz da mente dos nossos filhos e alunos (Cury, 2017, p. 13-14).

A análise do psiquiatra e pesquisador Augusto Cury serve para ligar o sinal de alerta acerca da sociedade. Em tempos normais, já há muitos problemas; com a covid-19, a tendência é o aumento de casos de problemas mentais. A partir disso, uma pergunta paira no ar: como avaliar rigorosamente os alunos nesse contexto? Muitos estão abalados e desorientados, até mesmo os adultos estão. Nesse contexto, penso não ser adequado falar em aprovação ou reprovação, mas sim considerar o currículo e a avaliação como uma continuidade perpassando os anos de 2020, 2021 e, por que não, 2022. O que tem de mais urgente e necessário no momento é acolher os alunos, dar novas oportunidades e “esticar” ao máximo o tempo para que eles tenham chances de estudar os conteúdos e ser adequadamente avaliados. Para isso acontecer, é vital deixar de lado as crenças de eficácia absoluta dos instrumentos avaliativos inculcadas durante anos nas mentes dos professores. Em algumas reuniões de que participei com colegas, notei o possível sentimento de culpa em ter que dar mais oportunidades aos alunos em função da pandemia. É como se cada um sentisse estar sabotando o próprio trabalho. É como se houvesse um “apagão” e eles esquecessem que a situação é inusitada e surpreendente – para o mal. É uma dificuldade de relativizar a responsabilidade e uma crença de que o aluno está em “vantagem” por estar tendo os caminhos mais facilitados. Essa “facilitação”, no sentido positivo, é vista negativamente como perda do poder docente. Se avaliar é focar na pessoa, esse é o momento ideal para mostrar isso. É hora de repensar as práticas avaliativas.

Além da dimensão cognitiva, conteudista e socioemocional, a avaliação tem sua dimensão ideológica. Quem avalia é o detentor do conhecimento e o avaliado é aquele que está numa condição de comprovar que possui o conhecimento. A relação entre avaliador e avaliado é, por vezes, vertical e autoritária, lembrando a relação entre patrões e empregados. É como se a escola fosse um treinamento para adequar o estudante para o mercado de trabalho. No ambiente de trabalho, o sujeito tem que seguir ordens, agir de modo disciplinado, é submetido aos testes. Esse tipo de relação está presente nas escolas e o professor reproduz esses padrões de controle do aluno ou disciplinação no momento em que exige exageradamente o cumprimento de horários, submete o aluno a inúmeros exames e cobra resultados com afinco. Quero dizer que é errado cobrar? É óbvio que não. Acontece que o ensino não deve ser confundido com treinamento para o trabalho ou adestramento do aluno, assim como a avaliação não deve ser entendida como uma correção do comportamento ou aferição de aquisição de informações úteis para o mundo do trabalho. Nada contra a preparação para o trabalho; no entanto, o que me preocupa é o modo como acontece essa formação. Além disso, temos de considerar que a escola deve preparar os alunos para o exercício da cidadania, e isso acontece com uma educação voltada para o pensamento crítico. Quando damos muita ênfase ao lado técnico, estamos criando pessoas emocionalmente frágeis ou instáveis e sem senso de coletivo, sem criticidade, que agem como manadas de búfalos, sem compreender a realidade na qual estão inseridas e submetidas. O pesquisador Gaudêncio Frigotto, em seu livro Educação e a crise do capitalismo real, analisa a questão que estou considerando:

Na perspectiva das classes dominantes, historicamente, a educação dos diferentes grupos sociais de trabalhadores deve dar-se a fim de habilitá-los técnica, social e ideologicamente para o trabalho. Trata-se de subordinar a função social da educação de forma controlada para responder às demandas do capital (Frigotto, 2010, p. 28).

As suas considerações são fundamentais, porque revelam o compromisso que a escola tem firmado com a sociedade capitalista, de preparar os jovens para que se ajustem ao sistema, quando deveriam preparar os alunos para mudar todo o sistema ou aperfeiçoá-lo. Para que isso aconteça, é necessário ofertar uma educação integral, abarcando todas as esferas: cognitiva, psicológica e crítico-social. Do contrário, estamos formando mão de obra barata para o capitalismo, cidadãos conformistas e passivos.

Como ajustar a avaliação para que ela atenda a outro propósito? Se não quero preparar alunos para apenas executar tarefas ou dar respostas repetitivas, tenho que elaborar uma avaliação que o coloque para pensar e refletir, exponha-os aos desafios diários para que possam demonstrar suas capacidades. Existem várias formas: seminários, trabalhos de campo, dramatizações, debates, rodas de conversa, observações, textos para interpretação, entrevistas, pesquisas etc. As formas de avaliar devem abarcar as múltiplas inteligências, os diferentes conteúdos apresentados e as dimensões citadas (cognitiva, psicológica e crítico-social). É uma busca repleta de incertezas e difícil, mas é possível. Para que isso aconteça é fundamental a mudança na formação docente, no currículo e na avaliação.

A condição de pandemia e ensino remoto retirou ou reduziu provisoriamente o controle do professor sobre os processos de ensino e avaliação. Não foi possível fazer acompanhamento e exercer pressão presencialmente nos estudantes. Muitos ficaram à deriva e sem saber ao certo o que fazer até a escola se organizar melhor. Na verdade, essa situação persiste em muitos casos. Sem a coerção tão costumeira dos exames e sem o exercício pleno da autoridade ou do autoritarismo do professor, muitos alunos não cumpriram os requisitos mínimos avaliativos, deixaram de fazer exames ou apenas ignoraram as cobranças. Longe da rotina de cobranças da escola, grande parte deve ter se sentido livre de compromissos. É uma mudança repentina de relações: muitos anos de controle e acompanhamento de perto e de repente surge o elemento da distância e o despreparo com novas tecnologias. É como se surgisse um abismo separando os docentes e os discentes, amenizado pelas redes sociais, que, por serem mais populares entre os alunos, possibilitaram melhor acompanhamento. A distância não é apenas entre o professor e o estudante. É uma distância considerável entre a escola e o mundo, entre a escola e a vida do aluno. Todos no mesmo barco, tentando sobreviver, tentando ensinar, tentando aprender; talvez tenham crescido os laços de solidariedade e amizade entre os membros da comunidade escolar ou, em muitos casos, tenham crescido as situações de desavença entre eles. A pandemia e o ensino remoto são experiências novas para muitos, ninguém sabe ao certo os efeitos na comunidade escolar depois da situação de calamidade.

No que se refere aos aspectos cognitivos da avaliação, cabe reforçar que seu predomínio tem uma relação próxima com as competências profissionais e sociais da vida social, conforme as normas e rotinas do sistema capitalista. O educar é visto como o enquadramento do aluno num esquema de funcionamento predeterminado, como se fosse uma peça de uma enorme engrenagem. O foco é o teste escolar, o teste de QI, porque fornecem dados objetivos sobre os alunos. A intenção é que o aluno de escola pública aprenda o mínimo suficiente para viver em sociedade, aderindo ao seu funcionamento e que desenvolva algumas habilidades que colaborem para que se torne profissional em qualquer área. Nesse esquema, os aspectos socioemocionais e crítico-sociais são negligenciados, porque o objetivo é prepará-lo para ajustar-se à sociedade e não para transformá-la. O professor Luckesi analisa essa questão:

A prática escolar predominante hoje se realiza dentro de um modelo teórico de compreensão que pressupõe a educação como um mecanismo de conservação e reprodução da sociedade. O autoritarismo é elemento necessário para a garantia desse modelo social, daí a prática da avaliação manifestar-se de forma autoritária [...]. A prática da avaliação escolar, dentro do modelo liberal conservador, terá de, obrigatoriamente, ser autoritária, pois esse caráter pertence à essência dessa perspectiva de sociedade, que exige controle e enquadramento dos indivíduos nos parâmetros previamente estabelecidos de equilíbrio social [...]. A avaliação educacional será, assim, um instrumento disciplinador não só das condutas cognitivas como também das sociais, no contexto da escola (Luckesi, 2011, p. 76-80).

O que podemos concluir é que, com ou sem pandemia, a avaliação é um desafio que se apresenta aos educadores. Compreender é o começo da mudança; colocar em prática um novo modelo é mais complicado, posto que as demandas são diversas e as características dos educandos também. Antes de avaliar, há necessidade de definir adequadamente o aluno, saber ao certo que tipo de pessoa queremos formar para o mundo. Ter isto em mente, isto é, objetivos de ensino e avaliação claros e definidos, é um ponto de partida. A execução exige criatividade e criticidade do docente, exige abertura para o novo, habilidade de agir na incerteza. Vimos que a avaliação tem várias dimensões e que elas devem estar sempre em conexão umas com as outras. A pandemia apenas acentuou o que já estava ruim, quem não percebia é porque se cercou de certezas e convicções acerca do ensino e da avaliação. Saber avaliar é ter a consciência de que nem todos vão se transformar em cientistas, médicos ou engenheiros, mas podem trilhar um caminho de sucesso no esporte, na arte, no empreendedorismo. Não é só isso. É um dever da escola formar cidadãos compromissados com o país, com senso crítico e sensibilidade, fortes emocionalmente e capazes de ter empatia. Esse é o desafio maior. Não importa que seu aluno se torne um mecânico ou uma empregada doméstica; se ele se tornar um cidadão ativo, ético, sensível, criativo e crítico, você terá cumprido sua função como professor e a sociedade ganhará com isso, com possibilidade de valorização de todas as profissões, independente de hierarquia e status social.

Considerações finais

A superação da pedagogia dos exames demanda tomada de consciência e readequação das escolas. Entender a avaliação como diagnóstico que aponta os caminhos para a inclusão é fundamental. A finalidade é detectar dificuldades para dar suporte e não para excluir. O exame é seletivo, classificatório e excludente, porque a própria sociedade é dessa forma. Vivemos numa sociedade capitalista altamente desigual. Isso significa que examinar é o único caminho? Não; uma das tarefas da escola é – ou pelo menos deveria ser – desenvolver nos alunos o espírito contestador ou investigador. A sociedade deve realizar um movimento de acolhimento ou de inclusão, e a escola também deve realizar esse movimento. Não é correto pensar que a escola deve iniciar isso, nem é correto pensar que a sociedade deve começar. A escola e a sociedade são igualmente responsáveis por extrair o melhor das pessoas. A avaliação não é apenas escolar; na verdade, ela é um processo social que acontece dentro das instituições e dentro dos indivíduos cotidianamente. Os sujeitos avaliam uns aos outros constantemente.

Nesse sentido, o fundamental é substituir o julgamento de valor pela avaliação mais consciente e priorizar o aspecto mais qualitativo. O conceito de inteligência foi ampliado e revisto, as metas do ensino foram ampliadas e as expectativas formativas são outras. Então, continuar seguindo as mesmas estratégias é um equívoco. Escuto pessoas dizendo que a família não está cumprindo a sua parte, mas pergunto: o que a escola está fazendo em relação a isso? É dever da escola orientar e estimular o acompanhamento da vida escolar pelas famílias. Os pais de hoje foram alunos no passado, estiveram sentados nos bancos escolares. O que mudou? Muito pouco, os exames continuam imperando e prevalecendo, a nota é vista como reveladora absoluta da qualidade ou capacidade do aluno.

Sabemos que não é bem assim. Muitas vezes os professores erram em seus prognósticos; a escola tem muitos desafios e somente conseguirá alcançar os objetivos com o devido suporte de governos e com disposição para mudar de atitude. Não adianta a escola ser inovadora na educação se a pátria não é educadora. A educação é sempre um dever ou compromisso de todos. A pandemia serviu para mostrar o modo como a escola está sujeita às variáveis sociais e sanitárias. A ação da comunidade deve extrapolar os muros da escola e ganhar espaço e visibilidade na sociedade. É um papel pedagógico, mas também político.  

Referências

BARANAUSKAS, M. Cecília C.; MAZZONE, Jaures; VALENTE, José Armando (Orgs.). Aprendizagem na era das tecnologias digitais. São Paulo: Cortez, 2007.

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DAVIS, Cláudia; OLIVEIRA, Zilma. Psicologia na educação. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1994.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2010.

HOFFMANN, Jussara. Avaliação: mito & desafio. Uma perspectiva construtivista. 45ª ed. Porto Alegre: Mediação, 2017.

IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 9ª ed. v. 14. São Paulo: Cortez, 2011.

LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições. 22ª ed. São Paulo: Cortez, 2011.

MANFREDI, Silvia Maria. Educação profissional no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.

NOGUEIRA, Nilbo Ribeiro. Pedagogia dos projetos: uma jornada interdisciplinar rumo ao desenvolvimento das múltiplas inteligências. 6ª ed. São Paulo: Érica, 2005.

PURCARI, Cleiton. Pedagogia que liberta mediante a do-discência. In: ABREU, Janaina; ANTUNES, Ângela Biz; GADOTTI, Moacir; PADILHA, Paulo Roberto (Orgs.). 50 olhares sobre os 50 anos da Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2019. p. 18-19. Disponível em: https://www.paulofreire.org/download/eadfreiriana/E-book_50_Olhares.pdf. Acesso em: 1 fev. 2021.

Publicado em 23 de março de 2021

Como citar este artigo (ABNT)

BALDES, Márcio Andrade Lyrio. A pandemia da covid-19 e os desafios de avaliar a aprendizagem. Revista Educação Pública, v. 21, nº 10, 23 de março de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/10/a-pandemia-da-covid-19-e-os-desafios-de-avaliar-a-aprendizagem

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